sábado, 18 de agosto de 2007

ORFEU REBELDE

Minha crónica do "Público" de ontem:

No parque da cidade de Coimbra existe uma estátua erguida pela Câmara social-democrata a um poeta e político vivo e activo. Pois foi o estatuado Manuel Alegre quem, no dia 12 de Agosto, inaugurou um monumento a Miguel Torga situado perto da estátua a si próprio – o novo monumento não é uma estátua a Torga apesar de a Câmara, ter em tempos, por unanimidade, aprovado a construção de uma estátua a Torga, num pacote que incluía várias outras.

No mesmo dia, em que se comemorava o nascimento de Miguel Torga, foi inaugurada uma casa-museu a Miguel Torga, em cujo quintal a Câmara quer construir um Centro de Estudos Torguianos. A ocasião foi aproveitada por António Arnaut, um dos fundadores do Partido Socialista, e por Carlos Encarnação, Presidente da Câmara de Coimbra, para lamentar a ausência de um representante do governo. Se me é permitido uma opinião e com o devido respeito pela opinião contrária, o governo fez muito bem em não estar presente. Não, não é por ser férias e os membros do governo terem tanto direito a férias como nós. É, em primeiro lugar, porque já tinha estado presente e em força – o Primeiro Ministro e a Ministra da Cultura – no dia 24 de Junho no lançamento do Espaço Miguel Torga em São Martinho de Anta, Vila Real, terra-natal do escritor. Trata-se de uma obra do arquitecto Souto Moura que custará ao Estado 1,7 milhões de euros, o que contrasta flagrantemente com a modéstia do projecto coimbrão, que orçou em 324 mil euros (não sei quanto custará o Centro de Estudos, mas deve ser barato para caber no jardim). O projecto em Trás-os-Montes, que albergará um centro de estudos a funcionar em rede com outros, poderá constituir um excelente pólo de desenvolvimento numa zona interior que bem necessita de investimentos como esse. Em segundo lugar, por muita consideração que Miguel Torga nos mereça – e merece! - não penso que seja uma boa ideia multiplicar casas e centros de estudos em sua homenagem, na tentativa ridícula de cada terra ou cada pessoa ter mais protagonismo político-cultural. A quantidade de pequenas casas-museus sem meios decentes nem actividades visíveis que pululam pelo país dever-nos-ia fazer pensar! E os centros de estudos sortidos e avulsos pouco fazem avançar a investigação… A Câmara de Coimbra, nesse aspecto de casas dedicadas à literatura, é um enorme desatino: além da nova Casa-Museu, planeia há muito um Fórum Miguel Torga na Estação Nova, que não se sabe quando estará pronto nem para que servirá, e está a fazer na Alta uma “Casa da Escrita” num prédio que foi de João José Cochofel (um poeta neo-realista coimbrão que poucos conhecem). Não seria mais útil projectar uma grande biblioteca e arquivo com projecção nacional e internacional?

Há também neste caso um problema político. O PSD quis aproveitar a ausência da Ministra da Cultura na homenagem da câmara coimbrã a Torga como mais uma munição de arremesso ao governo. Tanto foi assim que o seu deputado que tinha apresentado um texto condenatório da sanção a Dalila, a afastada Directora do Museu da Arte Antiga, logo acrescentou um P.S. (post-scriptum) relativo a Miguel Torga. E, pasme-se, nesse PS foi ajudado pela oposição interna no PS… Isso só mostra a debilidade da oposição ao governo e a debilidade da alternativa dentro do partido do governo. Há um óbvio equívoco do maior partido da oposição pois a adenda sobre Torga só desvaloriza a crítica justa e oportuna que merece o Ministério da Cultura por desbaratar uma profissional competentíssima, com provas dadas no lugar que ocupava. Pensará o governo que está a fazer um bom serviço à “res publica” ao desperdiçar os melhores talentos? E pensará que se devem desperdiçar as sugestões, comentários e críticas de quem tem uma bem sucedida experiência de gestão?

Além do mais, o aproveitamento político do centenário de Torga é uma perfeita tontaria, que nem mesmo a “silly season” justifica. O escritor deve estar a dar voltas na sua campa de São Martinho de Anta, pois ele sempre foi um homem íntegro e independente que não usava ninguém nem gostava de ser usado. O Orfeu rebelde revoltar-se-ia!

Post Scriptum: Na versão deste artigo publicada no "Público", por deficiente informação, escrevi que o deputado Manuel Alegre teria criticado, tal como o Presidente da Câmara coimbrã, a ausência do governo da cerimónia. Ele teve a amabilidade de me esclarecer que, apesar de achar lamentável a ausência do governo, de facto não afirmou isso em público. Agradeço a correcção.

9 comentários:

Anónimo disse...

Caro Professor Fiolhais

S. Martinho de Anta não fica na Serra do Marão! Se em alguma Serra for, será a do Alvão.

Anónimo disse...

Claro que o Governo fez mal em faltar, independetemente de ter inaugurado algo em S. Martinho de Anta. Como Físico, saberá que centenários não os há todos os dias.

Anónimo disse...

Anónimo e Carlos Fiolhais:
S. Martinho de Anta não fica nem na serra do Marão nem na do Alvão. É bem mais para oriente de uma e outra.

Carlos Fiolhais disse...

Pus so Tras-os-Montes em vez de referir a Serra, obrigado aos dois.
Carlos Fiolhais

Anónimo disse...

Eu concordo inteiramente com esta ideia do professor Fiolhais: “A quantidade de pequenas casas-museus sem meios decentes nem actividades visíveis que pululam pelo país dever-nos-ia fazer pensar! E os centros de estudos sortidos e avulsos pouco fazem avançar a investigação”

Maior parte destes “museus” não pretende ser mais do que pólos de atracção turística. E muitas vezes até nesse objectivo são maus. Este reavivar e hiper valorizar o tradicional, o regional, o etno, esta ou aquela característica de uma minoria ao invés de servir para aumentar o nosso conhecimento de memórias perdidas, serve frequentemente para relativizar e desvalorizar o conhecimento. Não que esse exemplos não tenham valor, mas são utilizados de uma forma insensata ou errada.

No fim, temos muito mais folclore mas maior parte dele é pimba, muitas áreas protegidas são ditaduras das espécies autóctones e os seus habitantes estão fartos de integrarem os roteiros de turismo cultural e nem sequer verem o seu nível de vida melhorado. Acabam por ser meios de difusão de pseudo história, pseudo antropologia, pseudo ciência, pseudo artes, pseudo etc., concebidos sobretudo para o turismo.

Ao fim do ano, pelo poder central e pelas autarquias são gastos milhões de euros em construção e manutenção de projectos deste tipo. Penso que deviam ser mais criticamente ponderados. (Aviso desde já possíveis leitores especialistas em "ler nas entrelinhas", que nem pensei como é que tal podia ser feito, mas não estou a propor a criação de nenhuma comissão de censura formada por doutos especialistas culturais para vigiarem os investimentos dos Srs. autarcas e dos Srs. de vários ministérios).

Muitas vezes até dói saber o valor dos investimentos e ver o estado de abandono a que estão deixados, tanto por não cumprirem a função para que foram projectados como pela insuficiência de meios humanos que dispõem. Mas felizmente também há excelentes exemplos do contrário!

Artur Figueiredo

J. Norberto Pires disse...

O problema é que se faz isto e aquilo, mas disso não resulta a promoção da única coisa que interessaria a Torga: que os portugueses lessem mais.

E para esse fim, estou certo que Torga não se importaria de ser usado.

Sendo Coimbra a cidade de Torga, claro que a cidade teria de assinalar o seu centenário. Até porque neste país do futebol, das novelas, etc., que vive em permanente "silly season", lembrar um homem de cultura com uma personalidade tão apaixonante não pode nunca ser considerado exagero.

Anónimo disse...

No dia 28 de Julho passou despercebida em Coimbra uma singela homenagem a Torga, na Cerca de S. Bernardo. Nela participou um grupo interessante, contemporâneo, de músicos e compositores profissionais de música clássica / erudita, entre eles Rudesindo Soutelo (Galiza) e Eurico Carrapatoso (Portugal), e foram lidos vários excertos da obra de Miguel Torga, de resto por um declamador que era fisicamente parecidíssimo com ele. Rudesindo Soutelo compôs uma obra, «O corvo da liberdade», apresentada nessa ocasião, em torno do último conto da colectânea «Os Bichos», «Vicente» (parcialmente lido durante o espectáculo).
Pois eu bem gostaria de vos dar mais pormenores acerca deste evento, mas o extraordinário é que este concerto quase não foi anunciado (não encontrei referência nenhuma na página da Câmara, e nem sei mesmo se teria havido, de facto, colaboração entre a organização do concerto e a Câmara conimbricense, que é quem gere aquele espaço, por detrás do Pátio da Inquisição). Chegou-se mesmo ao ponto de o espectáculo se iniciar sem que ao público fosse distribuído um programa - ao menos, para que ficasse a saber os nomes das peças e respectivos compositores / instrumentistas...! Se bem me lembro, nem mesmo houve o cuidado de apresentar singelamente as várias peças a serem ali tocadas / cantadas, antes da respectiva execução (e o mesmo se diga da identificação correcta dos trechos de Miguel Torga que lhes serviram de base). Achei este facto absolutamente inaudito, e penso mesmo que ele confirma a ideia aventada neste post de que há alguma concorrência no que toca a uma certa apropriação de Torga (de facto, este espectáculo já tinha circulado por vários lugares do Norte de Portugal, antes de vir a Coimbra).
Em todo o caso, aproveitem também os autores e comentadores deste blogue para, tal como fiz, (re)lerem esse lindíssmo conto de Miguel Torga, o Vicente. Tem bastante a ver com algumas discussões aqui havidas, por sinal.
Adelaide Chichorro Ferreira

Anónimo disse...

Embora não conheça a estátua espero que não se repita a história da que foi erguida em Moscovo em honra de Pushkin: Stalin lendo um livro do poeta.

Anónimo disse...

Lendo os jornais atrasados só agora verifico que afinal havia também um espectáculo intitulado «Ode à liberdade» preparado mais ou menos para a mesma altura da apresentação do museu. Facto que não invalida que, a 28 de Julho, tenha estado no mesmo local um outro espectáculo musical, em que uma das peças tocadas, alusiva a um conto da mesma colectânea, era, precisamente, uma composição intitulada «o corvo da liberdade», que todavia não teve direito a qualquer prospecto de divulgação. Porquê, não sei! E também não sei o que pensaria Torga, lui même, de tudo isto.
Adelaide Chichorro Ferreira

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