Confesso a minha ignorância: só há cerca de meio ano descobri que existe uma área de estudo e de intervenção pedagógica designada especificamente por Etnomatemática.
Quando percebi que não é uma área propriamente recente, e que em torno dela existe teoria e investigação publicada, que decorrem projectos educativos em escolas e salas de aula, que várias universidades acolhem cursos de pós-graduação, conferências, grupos de estudo, etc., fiquei um bocado preocupada com a minha capacidade de actualização de conhecimentos académicos que tenho obrigação profissional de leccionar.
É claro que conheço as teorias críticas e pós-críticas do currículo, bem como as teorias sócio-construtivistas e as emancipatórias, que sublinham a importância do ethos na organização das aprendizagens, mas a verdade, é só uma: nunca tinha dado conta desta expressão.
Tentei remediar a circunstância e fiz uma pesquisa na Internet. Tal como eu esperava, atendendo à designação, a Etnomatemática parte do princípio que não existe, como eu suponha, (apenas) uma matemática com carácter universal, civilizacional, mas sim, diversas expressões matemáticas que emergem em culturas particulares, únicas, e nelas encontram sentido. Decorrente deste pressuposto, considera-se que, para ensinar matemática, é preciso contextualizar as aprendizagens nos quadros culturais, sociais, étnicos dos sujeitos.
Devo dizer, no entanto, que não garanto que seja exactamente isto. De facto, não sei se entendi bem o discurso, dados os inúmeros conceitos, de carácter político, ideológico, literário, epistemológico que lhe estão associados e que parecem dispor-se de maneira mais ou menos aleatória. Entre eles contam-se os seguintes: pós-modernismo, respeito pelas culturas, raízes culturais, multiculturalismo, educação holística, educação para a paz, contextualização, ambientalismo, educação progressista, dualismo qualitativo/quantitativo, ciência ocidental, cultura europeia, culturas não ocidentais, minorias étnicas e sociais, imperialismo e capitalismo, construtivismo, matemática natural, relativismo, incerteza.
Essa pesquisa permitiu-me também saber que o conceito foi criado por um professor da Universidade de Campinas, de seu nome Ubiratan d'Ambrósio. Dele registei esta frase enigmática: “A etnomatemática privilegia o raciocínio qualitativo. Um enfoque etnomatemático sempre está ligado a uma questão maior, de natureza ambiental ou de produção, e a etnomatemática raramente se apresenta desvinculada de outras manifestações culturais, tais como arte e religião. A etnomatemática se enquadra perfeitamente numa concepção multicultural e holística de educação.”
Para a decifrar, um amigo emprestou-me um livro deste autor, que tem por título “Educação matemática: da teoria à prática” (São Paulo: Papirus Editora), e que li de imediato. Lamentavelmente, a minha confusão aumentou. Não vou poder aqui explicar todas as perplexidades que contribuíram para esse estado, e que foram muitas (talvez venha a retomar e discutir uma ou outra), mas não posso deixar de referir duas delas: não é importante que um aluno com de 12 anos conjugue correctamente verbos, extraia a raiz quadrada dum número e faça uma soma com fracções!? E conseguir fazer estas três coisas não será importante para o exercício da cidadania!?
Para não haver equívocos, reproduzo, tal e qual, o extracto onde me parece que d'Ambrósio sugere que essas aprendizagens não são (muito) importantes: “…qual o interesse, do ponto de vista do indivíduo e da sociedade, em chegar-se à conclusão de que os jovens brasileiros chegam aos 12 anos sabendo conjugar correctamente o verbo ‘sentar’? Talvez eles jamais tenham percebido o que significa, socialmente, estar sentado. E que importa saber se nessa idade eles são capazes de extrair a raiz quadrada de 12.764? Ou se somar 5/39 + 7/65? Qual a relação disso com a satisfação e a amplificação de seu potencial com indivíduos e de seu exercício pleno de cidadania?” (página 62).
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16 comentários:
Este pensamento é o que há de mais absurdo, e perigoso, actualmente. Sob a capa de um pensamento progressista, é de facto um pensamento racista, classista, profundamente de direita e ainda por cima fundado em confusões conceptuais básicas. Como é que os norte-americanos conseguiram exportar com tanto sucesso este tipo de pensamento é algo que me deixa perplexo. A ironia disto tudo: este pensamento quer-se anti-colonialista, mas limita-se a importar acriticamente a cultura colonialista norte-americana...
A limite, apetece perguntar o que raio se vai ensinar a um índio se a cultura dele é tudo o que conta para ele. Nesse caso, para que raio precisamos da escola? Por detrás deste pensamento está sempre o pensamento racista: os índios não precisam do mesmo ensino que os meus filhos brancos precisam. Os meus, vão para a faculdade estudar direito e medicina e depois vão ganhar 9 mil reais por mês. Os filhos dos índios só têm de aprofundar a sua própria cultura... e vender na rua suco de cana a 1 real o copo.
E o pior é que há gente que acredita profundamente que é assim que se deve ensinar... É realmente muito preocupante!
Também Ivan Illich proclamava que a sociedade deveria proceder a uma "des-escolarização" para que todos se pudessem tornar cidadãos de pleno direito. Foi só pena que ele não tenha pensado também que isso faria a Humanidade reverter à Idade da Pedra e prejudicar seriamente todos os alunos que ele queria ajudar.
Cumprimentos,
José Oliveira.
É precisamente por isso que eu acho que a escola continuar a reproduzir e consolidar clivagens sociais, aliás, como alerta Steiner e Ladjali em "O elogio da transmissão". E se vivemos na ilusão de que a escola que contextualiza todas as aprendiagens é a que nos faz felizes... coitados dos filhos dos índios ou dos filhos dos operários porque mesmo que tenham vocação para serem excelentes advogados ou engenheiros, não podem porque não tiveram a sorte de nascer numa família abastada...
Por muito que me desagrade aceitar, a escola do início do séc. XXI está a acentuar as desigualdades de oportunidades, o que prova que as (des)orientações curriculares hã-de continuar a conduzir ao abismo aqueles que sempre conduziu (os de condições sócio-culturais desfaforecidas), porque os que têm famílias que podem e têm música clássica e livros em casa, esses podem safar-se...
Devemos de facto ser mais exigentes e críticos em relação a falsidades aparentemente vantajosas mas muito ilusórias. Crenças, doutrinas e sistemas falsos já têm matado quanto baste. É um erro pensar que podemos adaptar à nossa vontade o conceito de verdade. Em busca da verdade e de um mundo melhor, Karl Popper continua actual e compatível com uma sociedade aberta, ao considerar que corremos o risco de catástrofes da pior espécie se nos tentarmos libertar da noção de verdade ou se tentarmos adaptá-la às nossas conveniências.
Também soube recentemente desta coisa da etnomatemática. pior, descobri que o tal de Ubiratan tem seguidores em Portugal...
Sobre o tema, que referi de passagem nas Histórias da aviação, o blog de um colunista da Veja, de que linkei o post «Matemática achada na rua: o trinômio de 2º grau e o ovo frito> é absolutamente imperdível.
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Pesquisa no blog: Etnomatemática
D'ambrosio
Como diz a Profª Palmira, em Portugal há seguidores, pois há. E no ensino superior: Raul Iturra é um deles e tem ideias semelhantes a estas. Dá uma cadeira de antropologia da educação, Iscte, Lisboa.
Da mesma escola há outra autora portuguesa: Teresa Vergani, (1990). O Zero e os Infinitos - Uma experiência de antropologia cognitiva e educação matemática intercultural: Minerva
Ubiratan d’Ambrósio é um exemplo que serve à perfeição para fundamentar a impiedosa crítica formulada por Mario Perniola, professor de Ética da Universidade de Roma e destacada figura da filosofia italiana contemporânea: “Os fautores da tradição, que apelam para os valores, para o classicismo, para o cânon, são postos fora de jogo por esses funâmbulos, esses equilibristas, esses acrobatas, que também querem ser eternizados no bronze e no mármore. E quem diz que o não conseguem? Há sempre uma caterva de ingénuos prontos a escrever a história da última idiotice, a solenizar as tolices, a encontrar significados recônditos nas nulidades, a conceder entrada às imbecilidades no ensino de toda a ordem e graus, pensando que fazem obra democrática e progressista, que vão ao encontro dos jovens e do povo, que realizam a reunião da escola com a vida”. Aliás, Desidério, no seu comentário inicial, autopsia, com mãos hábeis e escapelo impiedoso, toda esta falácia que, segundo ele, "sob a capa de um pensamento progressista é de facto um pensamento racista". Numa cruzada de louvar, cabe a Helena Damião o mérito de pôr a nu toda esta andrajosa arteirice "etnomatemática" que deve "ser eternizada no bronze e no mármore", mas do Panteão da Ignorância. Sem dúvida, a Matemática (despojada do "etno") acaba de contrair para com ela uma dívida de gratidão.
O pouco que tinha lido sobre etnomatemática tinha-me deixado a impressão de se tratar de mais uma ideia bucólica de revivalismos de uso de ábacos e das características de organização das geometrias da arte tribal. Gostei deste esclarecimento e que bem explícito pelo post e pelos comentários. Oportuno o Rui Batista ter deixado o excelente juízo do Perniola que bem põe o dedo na ferida: comunicação social, divulgadores e pedagogos. "Há sempre uma caterva de ingénuos prontos a escrever a história da última idiotice..." e a disponibilidade para não só a ler, como a assumir, ainda é maior.
Artur Figueiredo
No Brasil, tendências como essas do Ubiratan surgem porque a nossa escola (sou educadora brasileira, moro no estado do Paraná, Brasil)vive (creio que sempre viveu) no mais profundo abandono. Há uma escola pública (estatal) para os miseráveis e uma escola privada para a classe média ou rica. Ambas não privilegiam a educação das ciências, mas na escola estatal o desprezo pelas crianças é terrível. Livros didáticos cheios de erros, não há laborat[órios, bibliotecas sem livros... crianças semi alfabetizadas chegam à oitava série. Nem os professores estão alfabetizados cientificamente.
O Ubiratan, de fato, fez uma salada epistemológica. A tendência nasceu de um grupo de matemáticos e físicos da Unicamp que queriam alternativas didáticas para o ensino de matemática. Apenas isso, mas a salada ampliou-se. Uma pena.
Conheço etnomatemáticos que trabalham com indigenas tentando relacionar os saberes da cultura indígena traduzindo para os professores ensinarem matemática... Afinal, temos centenas de grupos indígenas que não falam o português. Eu mesma (sou formada em biologia) trabalhei com crianças Kaingangs e senti dificuldade na época em compreender sistemas de classificação animal e de planta com elas. Depois fizemos um livro bilingue com as duas linguas.
Abraços
Marta Bellini
martabellini@uol.com.br
Este tema traz à colação a revista "Ethnopsychologie. Revue de Psychologie des peuples", editada pelo Centre Universitaire de Psychologie des Peuples (Le Havre, França). Logo, Etnomatemática será o estudo da matemática dos povos, como a Etnologia o estudo dos povos; a Etnosociologia, o estudo sociológico dos povos; a Etnohistória, o estudo da história dos povos; a Etnometodologia, o estudo dos métodos dos povos; a Etnopedagogia, o estudo da pedagogia dos povos; a Etnocultura, o estudo da cultura dos povos. E não se esgota aqui a etnicidade. A melhor forma de tecer algum juízo sobre a Etnomatemática seria a de ler alguns trabalhos do autor no link
http://vello.sites.uol.com.br/aprendida.htm. É provável que a Etnomatemática não passe de uma etiqueta, com os seus seguidores, tal como Goffman classificava o interaccionismo simbólico, ou que o propulsor da etnomatemática (elementar, aplicada ou pura) se encontre numa encruzilhada entre o discernir o seu verdadeiro significado e o descobrir um novo paradigma. Relativamente às considerações racistas ou discriminatórias já muito foi dito sobre a matéria, relativamente à acção colonizadora dos franceses, belgas, portugueses e britânicos, no continente africano. Enquanto os britânicos e belgas consideravam que os indígenas deveriam aprender a ler e escrever na língua materna, os portugueses e franceses, optavam pela língua europeia. Mas, em qualquer dos dois casos, mais políticos do que de ordem pedagógica, as respectivas colónias, se aplicada a língua materna, entendiam que os colonizadores cortavam a acessibilidade dos filhos aos padrões culturais europeus; se aplicada a língua europeia, então os colonizadores pretendiam apagar a língua materna. O exemplo mais paradigmático é o do antigo Congo Belga, na margem esquerda do rio Congo, e o do Congo francês, na margem direita do mesmo rio, e cujas capitais, Leopolville e Brazzaville, se encontravam uma em frente da outra. Os habitantes de Leopolville (Congo belga, língua materna) atravessavam o rio para inscreverem os filhos nas escolas de Brazzaville (Congo francês, língua europeia). Depois da independência a maioria optou pela língua inculcada pelos colonizadores.
Acresce que o inventor e industrial Nobel, não criou um prémio para a Matemática, dado o desinteresse que nutria pelas ciências teóricas, optando pelas invenções ou descobertas que aportassem benefícios práticos, quer de ordem política, humanitária ou social.
Segundo Iturra, eis a causa do insucesso escolar, entre outros, da matemática (exemplo de um relativismo cultural anti-universalista):
"treinar mentes, que já têm um conhecimento cultural do real, em matérias que o movimento liberal recolheu do
positivismo e tentou converter em termos universalistas do conhecimento".
(Iturra, R. (1990). Fugirás à Escola Para Trabalhar a Terra. Lisboa: Escher Publicações)
Cheguei aqui porque um dos comentários cita o livro de Teresa Vergani "O Zero e os Infinitos". Verifico que está enquadrado, classificado e desprezado no contexto da etnomatemática. Não é a primeira vez que encontro neste blog execuções sumárias como esta. Não ía comentar mas acabei por o fazer. Este livro é muito interessante por muitos motivos, destaco apenas que se pode aprender sobre a matemática na sociedade maia, na antiga China e em África.
Caros colegas educadores, (pois penso que para criticarem a etnomatemática devem ser no mínimo educadores),
Acredito que os que criticaram essa forma de ensinar não devem saber de seu mecanismo. Primeiramente, etnomatemática não é ensinar de forma fragmentada, sendo assim sugiro que leiam mais sobre o assunto pois pelos comentários acima, acredito que não leram o suficiente.
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