terça-feira, 14 de agosto de 2007

Mais coisas estranhas

O post do Carlos levanta uma questão sempre sensível, e à qual Carl Sagan respondeu admiravelmente: devemos manter a mente aberta a novas ideias — mas não tão aberta que nos caia o cérebro. O tipo de investigação amadora que consiste em pouco mais do que disparates sem sentido é comum não apenas em ciência, como o testemunha o Carlos, como em filosofia. E talvez seja até mais grave em filosofia. O Carlos argumenta, e com razão, que os artigos de falsa originalidade se baseiam sempre numa óbvia incompetência científica dos seus autores: não dominam correctamente a ciência do seu tempo, nem os seus métodos, que contudo querem ultrapassar por se julgarem génios injustamente menosprezados pela academia. O mesmo acontece em filosofia, mas com maior intensidade — e por vezes os tais ingénuos que se julgam génios filosóficos são... cientistas. Fico sempre aterrado quando vejo isto acontecer, mas é algo muito comum: os cientistas têm muitas vezes a mania de que para fazer filosofia não é preciso o mesmo tipo de formação, treino e conhecimento que é necessário para fazer, por exemplo, matemática. Ou seja: um diletante em matemática não passa disso mesmo, e não pode ser levado a sério, mas qualquer pessoa pode fazer filosofia sem nada saber da área, e isso não é diletantismo — é ter uma vasta “cultura geral” e uma “rara inteligência”. Isto é pura e simplesmente um disparate. A filosofia exige um domínio tão profissional como a musicologia ou a biologia, e quem não a domina faz erros filosóficos básicos que nenhum estudante meu do primeiro ano pode fazer e passar de ano.

O que provoca então tal falta de sensibilidade à formação filosófica? Poderá ser duas coisas.

A primeira é que a filosofia é uma disciplina especulativa, e não um corpo imenso de resultados solidamente alcançados ao longo de séculos, ainda que revisíveis, como a ciência. É tentador pensar que se os filósofos são tão parvos que não conseguem resolver os problemas centrais da filosofia, então toda a gente está na mesma situação cognitiva no que respeita a tentar resolver esses problemas. Só que isto é uma ilusão. Os problemas da filosofia resistem a ser resolvidos porque são intrinsecamente difíceis, e porque não são susceptíveis de investigação empírica nem formal. Tentar resolvê-los implica um domínio sui generis de instrumentos conceptuais e de raciocínio, assim como talentos específicos. Do facto de uma disciplina não ter conseguido resolver um determinado problema não se segue que qualquer pessoa tem o mesmo domínio dessa disciplina, mesmo sem ter estudado a bibliografia relevante nem dominar os instrumentos do ofício.

O segundo factor que provoca tal falta de sensibilidade é talvez um desconhecimento da filosofia contemporânea. A filosofia tornou-se profissional muito recentemente, depois de o profissionalismo da área ter sido destruído pelos filósofos dos séculos XVII e XVIII — muitos deles eram amadores, de facto, que viam o profissionalismo da filosofia medieval como um entrave ao desenvolvimento de novas ideias, libertas do jugo religioso e das dogmáticas universidades da altura (herdámos dos modernos o sentido pejorativo do termo “escolástica” — que na realidade é um preconceito porque muita filosofia escolástica era de altíssima qualidade). Tal como não podemos pensar hoje que um cientista profissional é como eram os cientistas profissionais do tempo de Galileu, os professores universitários que conspiraram para que ele fosse condenado pela igreja, também não podemos pensar que os filósofos profissionais são hoje meros tecnocratas académicos, estéreis de ideias e destituídos de criatividade. A filosofia precisa tanto de profissionalismo como qualquer outra área — como a musicologia, ou a pintura ou a física ou a biologia. E estaremos a desprezar este aspecto sempre que, sem dominar nem ter qualquer curiosidade sobre a bibliografia filosófica fundamental nem sobre os seus instrumentos, desatamos a filosofar ingénua e arrogantemente.

Uma nota final, relacionada com tudo isto. É disparatada a ideia de que um leigo pode ler um ensaio sofisticado de física, ou uma monografia, e compreendê-la. É igualmente disparatado pensar que um leigo pode ler um ensaio sofisticado de filosofia, ou uma monografia, e compreendê-lo. Mas as reacções nas duas situações ao infelizmente diferentes, como sublinha Fernando Pessoa:

“Um indivíduo qualquer, desconhecedor do que seja o cálculo diferencial, não diz, ao folhear um livro sobre o assunto: «isto é incompreensível», ou, «este homem não sabe o que diz»; diz simplesmente, «não compreendo isto.» Mas o mesmo indivíduo, se for também desconhecedor de metafísica, já vulgarmente não diz, ao folhear um livro sobre esse assunto: «não compreendo isto»; a sua tendência é para dizer: «que confuso que é este homem!», ou, «isto é incompreensível».”

A ideia de que podemos começar a ler um livro ou ensaio avançado de filosofia sem preparação é um sintoma da ideia de que em filosofia não há profissionalismo. Daí que algumas pessoas tenham reagido mal à divulgação que fiz durante mais de um ano, nas páginas do Público, de livros de carácter introdutório e de divulgação filosófica: elas queriam tratados sofisticados, filosofia de ponta, porque têm a ilusão de que podem ler tais coisas e compreendê-las, sem passar pelo (para elas penoso) processo de estudar filosofia profissionalmente, como quem estuda matemática. E a ninguém ocorre estudar matemática lendo clássicos do século XIX ou lendo artigos avançados publicados nas revistas de ponta.

11 comentários:

José Oliveira disse...

Boa noite Desidério:

Queria só dizer (mesmo sendo apenas um curioso em relação à Filosofia - pelo menos por agora!) que acho que o estudo desta disciplina exige, de certo modo de muito mais rigor exactamente pela razão exposta: não tem métodos de prova empírica. Desta forma põe-se, ainda de forma mais premente, a questão da seriedade, e do esforço em tentar construir um conhecimento sólido...

Cumprimentos,

José Manuel Oliveira.

Alexandre Sousa disse...

Uma coisa eu prometo:
- A partir de hoje deixo de usar o termo «escolástica» com sentido pejorativo.

Um abraço

Anónimo disse...

Anos atrás - tantos que lhes perdi a conta -, vi um filme (intitulado "O Cantor não a Canção) cujo enredo era mais ou menos este.Numa povoação mexicana viviam um bandido e um padre católico. O padre,no decorrer da história, tentava chamar o bandido aos caminhos de Deus.Sem qualquer resultado! No final do filme há uma troca de tiros entre o bandido e a polícia tendo este sido ferido de morte. Pondo em perigo a própria vida, correndo em zigue-zagues para não ser apanhado por uma bala perdida, o padre acerca-se do bandido para lhe dar o sacramento da extrema-unção. Num último sopro de vida,perante esta prova de abnegação ao seu semelhante, o bandido diz-lhe acreditar no cantor, mas não na canção. Pelo contrário, na Filosofia não se dará o caso de uns tantos professores da disciplina, sujeitos a programas inconcebíveis,serem coniventes, ainda que a contragosto,do descrédito da disciplina tornando-a maçuda? Ou seja o mal não está na canção, nem nos professores que a ministram mas nos cantores que se responsabilizam pelos respectivos programas. Claro que o mesmo se passa noutras disciplinas. Mas a Filosofia, pela sua complexidade e descrença na sua utilidade prática num mundo em que a Ciência e a Tecnologia se apoderaram do mundo, tem um caminho mais espinhoso a percorrer.Ou não? Gostaria de saber a sua opinião, Prof. Desidério, acerca do atrevimento crítico de um amador (aquele que ama) da Filosofia que tem como como única atenuante o facto de ter feito todo o seu percurso académico no domínio das chamadas ciências, embora sempre rendido a um amor longe de ser serôdio,por ter raízes no término do seu ensino liceal, pelos caminhos espinhosos da Sabedoria. De forma alguma, pretendi ir além da chinela!

Anónimo disse...

Por isso, meu Caro Desidério, é tão importante que pessoas como você ou o Carlos Fiolhais publiquem livros ou artigos cuja compreensão esteja ao alcance dos mais ignorantes nas matérias. August Comte fazia gala de não ler filósofos, e deu início a uma escola dita filosófica que era a negação da capacidade de pensar. Resta a Igreja Positivista do Brasil (lá há de tudo, já se sabe)e pouco mais. No entanto, há umas semanas esteve em Portugal um rapaz de 33 anos que se nega a ler filosofia mas foi recebido como um génio da dita.
Um abraço.
Daniel

Anónimo disse...

Newton e Leibniz seriam filósofos profissionais? De que ambos se consideravam Filósofos Naturais, não há dúvida, como a não há de que ambos se consideravam (e eram) Matemáticos. Newton considerava-se, além disto, um alquimista - para grande consternação do seu quase-rival Leibniz, que não levava a bem tamanha irracionalidade num homem tão racional.
E também é certo que ambos tentaram muito seriamente elaborar uma explicação coerente do Homem e do Mundo. Não é isto que faz um filósofo?

Anónimo disse...

E o problema da bioética? São os profissionais da filosofia que resolvem o problema?

Anónimo disse...

O conceito de Sagan, reproduzido muito a propósito por Desidério, "devemos manter a mente aberta a novas ideias - mas não tanto que nos caia o cérebro", traz-me à lembrança duas atitudes diametralmente opostas perante a novidade. A do indivíduo "tipo esponja" que absorve tudo quanto é novo sem sequer fazer a necessária triagem e a do "indivíduo tipo gabardine" que fica imune aos simples pingos ou às tempestades até de tudo aquilo que colida com ideias feitas e de há muito cristalizadas. Ambas as atitudes são reprováveis, sem dúvida, por contrariarem o Pensamento Crítico e travarem a Curiosidade Científica, quase diria, de "ver para crer". Espero não estar a dizer nenhuma "boutade". Se assim for, Desidério e Carlos Fiolhais terão a caridade de mo dizerem e eu de lhes agradecer.

Anónimo disse...

A derradeira frase do meu comentário das 12:28 pode dar ensejo a que a palavra caridade seja interpretada como extensível à minha pessoa: "Vade retro, Satanas!" Assim a sua redacção correcta deveria ter sido:"Se assim for, Desidério e Carlos Fiolhais terão a caridade de mo dizerem e eu a grata oportundade de lhes agradecer". Aqui fica feita a necessária correcção, com o pedido de desculpas.

Desidério Murcho disse...

Caros leitores

Obrigado pelos vossos comentários!

Concordo com o José Manuel: precisamente por carecer de métodos empíricos ou formais de prova, a filosofia exige muito maior rigor por parte dos seus praticantes — o rigor não nos é dado, digamos assim, pela própria natureza do método seguido.

Daniel, essa é a razão pela qual os divulgadores divulgam! :-)

Sarmento, Leibniz não era matemático profissional — nunca teve lugar na universidade da altura, e tinha de viver de patronos. Newton era físico profissional, dado que trabalhava na universidade como tal. Mas é claro que muitos amadores podem ser bem melhores do que muitos profissionais. No tempo de Leibniz havia muitos matemáticos e filósofos profissionais, nas universidades, dos quais nada nos chegou senão o pó dos nomes deles em algum livro de registo esquecido — mas de Leibniz chegou-nos o cálculo e as suas teorias e argumentos filosóficos. Newton não fez qualquer trabalho reconhecível como filosofia, ao contrário de Leibniz — mas é claro que naquele tempo se chamava “filosofia natural” às ciências da natureza. Não, o que faz um filósofo não é dar uma explicação coerente do Homem e do mundo, um filósofo pode nunca fazer tal coisa e muitas pessoas que fazem tal coisa não são filósofas. A melhor maneira de saber o que faz um filósofo é ler uma boa introdução à filosofia. Aí verá que se pode fazer filosofia durante 30 anos sem nunca tratar de nada relacionado com o Homem. É falso que a filosofia seja exclusivamente uma “ciência” humana ou parte das tolamente chamadas “humanidades”. A filosofia tem uma natureza própria e resiste a estas classificações positivistas.

Anónimo, há muitos problemas na bioética, e não “o problema” da bioética. E, claro, quem escreve sobre isso nas publicações da especialidade são filósofos — quem haveria de ser? Bispos, como na comissão portuguesa da ética para a vida, ou cientistas que desconhecem os elementos básicos da ética? Desculpe-me a pergunta retórica, mas irrita-me de facto este tipo de coisa, até porque há tantos bons livros de introdução à bioética, sobretudo em inglês. Bastaria ler um deles para ficar a perceber o que é a bioética e como se faz academicamente, e não amadoristicamente, nos intervalos da nossa profissão como bispos ou cientistas. É tão absurdo perguntar a um biólogo que se pronuncie sobre os problemas fundamentais da bioética como é absurdo perguntar-me a mim sobre os problemas fundamentais da biologia. A bioética trata dos problemas éticos levantados pelas ciências da vida, mas os problemas são éticos, e portanto filosóficos, e não biológicos. Na bioética os cientistas fornecem os dados científicos relevantes para que os filósofos possam pensar sobre os problemas filosóficos que tais dados levantam.

Caro Rui, a dificuldade de muitas pessoas é manter o equilíbrio de que falava Sagan entre a abertura de espírito e a crendice. Penso que isso se consegue com a disposição para avaliar crítica e cuidadosamente as ideias, venham elas de onde vierem, sejam elas quais forem.

Anónimo disse...

Se me permitem tenho uma questão que não se tem querido resolver. Como é que o trabalho dos filósofos modernos se tem permeado e feito evoluir a nossa maneira de viver e de estar com os outros nestes últimos tempos?

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Bom dia!

A coisa estranha?!

Vazia.

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