A ciência não pode viver sem comunicação. Ciência que não é comunicada é ciência morta. Ou melhor, nem sequer chega a ser ciência. O processo do desenvolvimento científico alimenta-se precisamente do processo de comunicação, já que a informação científica é validada pela comunidade e não por um único indivíduo. Por vezes essa validação demora um pouco e sofre alguns acidentes de percurso, como aconteceu com a teoria da relatividade. Quando um movimento de cem cientistas alemães se levantou contra Einstein, este respondeu: “Porquê cem? Se eu estivesse errado, um só chegaria para apontar o erro.”
A comunicação, oral ou escrita, tem que se lhe diga. Mas o essencial da comunicação, como diria um teórico da comunicação, é que haja um transmissor, um receptor, um canal de comunicação e uma mensagem. Quando se trata de apresentar nova ciência, seja o assunto a teoria da relatividade ou, como pitorescamente sugeriu Umberto Eco (na foto) no seu livro "Como se faz uma tese em ciências humanas", “Variações na venda de jornais diários no quiosque da esquina da Via Pisacane com a Via Gustavo Modena de 24 a 28 de Agosto de 1976”, os receptores são naturalmente os especialistas no assunto (pode não haver ainda especialistas do assunto, sendo o autor da comunicação a máxima autoridade viva e, nesse caso, há que esperar um pouco). O canal pode ser uma conferência num congresso, um livro (tese, ensaio, etc.) ou, o que é mais comum, revistas especializadas, quer em papel quer de circulação virtual na Internet. Apesar de o emissor poder e dever imprimir a sua marca, uma mensagem tem de obedecer a certas regras de modo a melhor ser lida e compreendida pelos receptores. O estilo próprio do autor terá de ser enquadrado num certo referencial. Comunicar torna-se assim por vezes mais uma arte do que uma ciência. Dizer muito por poucas palavras é sempre uma virtude, qualquer que seja o assunto em causa (o grande físico soviético Lev Landau sofria a bem sofrer para comprimir ao máximo e de uma maneira elegante tudo o que queria comunicar, mas o mesmo se passa com muitos autores literários). Dizer claro é outra recomendação essencial. Mas há mais: comunicar pausada e ordenadamente; seleccionar o mais importante sobre o tema em causa; evitar as ambiguidades e formas de discurso que possam ser incompreendidas ou mal compreendidas; definir da forma mais razoável as expressões utilizadas. Ouçamos o que nos diz Umberto Eco sobre a escrita de uma tese em ciências humanas, mas que se poderão aplicar num quadro mais geral:
- “Não imitem Proust. Nada de períodos longos. Se vos acontecer fazê-los, dividam-nos depois.”
- “Não pretendam ser e.e. cummings (...) Vocês não são poetas de vanguarda”.
- “Façam parágrafos com frequência. Quando for necessário, quando a pausa do texto o exigir, mas quanto mais vezes melhor.”
- “Escrevam tudo o que vos passar pela cabeça mas só no rascunho”.
- “Não usem reticências ou pontos de exclamação. Não usem a ironia”.
- “Definam sempre um termo quando o introduzirem pela primeira vez.”
- “Não comecem a explicar onde é Roma para depois não explicar onde é Tombuctu”.
Estas recomendações, embora com algumas excepções, aplicam-se também naquela que é hoje uma componente importante da comunicação da ciência: a comunicação não aos “pares”, aos colegas de profissão que partilham os mesmos códigos, mas sim aos cidadãos em geral, não qualificados no ramo do saber em questão (podem sê-lo noutro). As regras da boa comunicação são extrapoláveis do quadro estritamente científico para situações de divulgação científica. Por isso, um bom apresentador de saber científico, um bom professor, é, em princípio, também um bom divulgador para o público em geral. Ele apenas tem de usar uma linguagem diferente para chegar ao público que não domina os mesmos códigos. Mas pode tratar-se qualquer assunto a diferentes níveis de profundidade e, portanto, usando diferentes níveis de linguagem. Há que descodificar o que estiver codificado entre os especialistas do assunto!
Na divulgação da ciência a componente de arte que a comunicação sempre tem torna-se mais importante. O referencial é mais fluido. Revela-se absolutamente necessário estabelecer uma empatia com os destinatários. Além de descodificar conteúdos, é preciso seduzir os receptores. Por isso são permitidas e até recomendadas algumas excepções ao cânone de Umberto Eco. Tem de se continuar a ser conciso e claro. Mas pode escrever-se tudo o que nos passar pela cabeça sem ser só no rascunho, numa porfiada tentativa de descodificar o que estiver mais codificado. E podem usar-se reticências, pontos de exclamação e até ironia, numa evidente tentativa de sedução do leitor...
PARA SABER MAIS
- Umberto Eco, «Como se faz uma tese em ciências humanas», Editorial Presença, 1984.
O famoso professor italiano (da Universidade de Bolonha, a mais antiga do mundo) e também romancista ("O Nome da Rosa", "O Pêndulo de Foucault", etc.) ensina neste livro a fazer uma tese (apesar do título e do que vem na introdução, grande parte do que o autor diz tanto se aplica a ciências humanas como a ciências exactas e naturais), começando pela escolha do tema, continuando pela organização do trabalho de investigação e, finalmente, a redacção do trabalho. Para ele, o sentido do estudo é “adquirir uma capacidade para identificar os problemas, encará-los com método e expô-los segundo certas técnicas de investigação”. Neste livro é patente um humor fino, nomeadamente no final, quando o autor se dirige aos jovens autores exortando-os a terem orgulho em vez de falsa modéstia: “No momento em que estão a falar, são um especialista. Se se descobrir que são um falso especialista, tanto pior para vocês, mas não têm o direito de hesitar. Vocês são o representante da humanidade que fala em nome da colectividade sobre um determinado assunto. Sejam modestos e prudentes antes de abrir a boca mas, quando a abrirem, sejam arrogantes e orgulhosos”. Li este livro já depois de ter concluído a minha tese de doutoramento, mas revelou-se de um grande conforto intelectual.
sexta-feira, 17 de agosto de 2007
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5 comentários:
Pelo que li do post, o livro deve ser uma ferramenta essencial para aspirantes a cientistas (e não só).
Obrigado pela dica!
A. Marques
Este livro devia ser obrigatório no primeiro ano de todas as Universidades.
Li este texto de Eco tempos atrás. Assim como li depois os romances, os ensaios...
Continuo a gostar de Eco!!!!
Agora, não sei se os jovens universitãrios actuais...saberiam lê-lo!!!!!!!
Tenho muitas e fundadas dúvidas!!!!!
São artigos como este que fazem com que este blogue seja de consulta obrigatória por pessoas que se interessam pela Ciência, quer em posição iniciática ou avançada. Nem todos podemos ascender ao estatuto de cientista, mas todos, sem excepção devemos estar atentos aos conhecimentos e avanços científicos. Infelizmente, conspurcados por pseudo-ciência, mezinhas e rezas culturais quejandas. Parabéns, Prof. Carlos Fiolhais por continuar igual a si próprio para chegar a todos os recantos que não devem permanecer lugares de culto de charlatães ou, pior doque isso, ignorantes encartados em obscuras ciências humanas (!), terreno fértil para os grandes e pomposos nacos de prosa de uma mão cheia de nada e outra vazia de tudo. Fascínio de que algumas provas de doutoramento não se conseguem libertar.
Na antítese deste post não resisto a um impulso a roçar o mau gosto.
Transcrevo um resumo da notícia do Courrier Internacional de 16 de Março deste ano:
"O Governo regional da Catalunha subsidia filmes pornográficos no intuito de contribuir para a difusão do catalão. O Departamento de Política Linguística atribuiu 14 700 euros ao realizador Conrad Son para exibir num festival os filmes eróticos...Conrad Son, simpatizante da Esquerda Republicana da Catalunha (nacionalista), realizou uma série de filmes em catalão... O realizador sabe que uma língua "deve poder penetrar nos mínimos recantos", declarou ao diário ABC o líder nacionalista Josep-Lluis Carod Rovira."
Estes senhores que gerem os impostos das pessoas não devem ter que ler Umberto Eco. Mas, filmes pornográficos para difundir uma língua? Poderia fazer algum sentido se fosse para difundir uma imagem. Agora, para difundir uma língua...
Sinceramente, eu acho que para explicar isto não chegam relativismos ou conflitos de razão/ausência de razão..., eu acho que é dormência.
Artur Figueiredo
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