“O cosmos é tudo o que existe, existiu ou existirá. A mais insignificante contemplação do cosmos emociona-nos – provoca-nos um arrepio, embarga-nos a voz, causa-nos a sensação suave de uma recordação distante. Sabemos que nos estamos a aproximar do maior de todos os mistérios” (início do 1º capítulo, “As costas do oceano cósmico”, do livro "Cosmos", de Carl Sagan)
Carl Sagan (na foto) já não está infelizmente entre nós. Mas continua entre nós através dos livros e filmes que nos deixou. Um livro é sempre a voz de um autor que perdura. Sagan afirma-o de uma forma sublime em “Cosmos”:
“Um livro é feito de uma árvore. É um conjunto de partes lisas e flexíveis (que ainda se chamam folhas) impressas em caracteres de pigmentação escura. Dá-se uma vista de olhos e ouve-se a voz de uma outra pessoa – talvez alguém que já tenha morrido há milhares de anos. Através dos milénios, o autor está a falar, com clareza e em silêncio, dentro da nossa cabeça, directamente para nós. (...) Os livros quebram as cadeias do tempo, provam que os seres humanos são capazes de exercer magia” (do capítulo XI, “A persistência da memória”).
Pois é de pura magia que se trata quando o astrofísico norte-americano nos apresenta o Cosmos, desde a Terra que pisamos até aos “biliões e biliões” de estrelas a muitos anos luz de nós. É essa distância enorme entre a Terra e o céu que Sagan tenta encurtar, comunicando-nos que somos filhos das estrelas (“Devemos a nossa obrigação de sobreviver não só a nós próprios, mas ao Cosmos, vasto e antigo, de onde despontámos”, nas palavras finais do livro) e que somos a maneira que as estrelas “inventaram” para se compreenderem a si mesmas (“Somos a encarnação local de um Cosmos que toma consciência de si próprio”).
A Terra é decerto um pequeno ponto mas nele, devido à inteligência humana, pode-se tocar o infinito. Sagan ensaiou dar-nos na prática uma “perspectiva extraterrestre” da Terra e do homem através de experiências efectuadas por sondas da NASA no espaço. Assim, para melhor realçar a insignificância no Cosmos do planeta Terra, conseguiu que uma câmara da sonda Voyager, na periferia do sistema solar, se orientasse para a Terra. Vistos de longe, não passamos, de facto, de um minúsculo “ponto azul claro”. Um ponto na imensa vastidão do universo... E, para melhor revelar a quase inexpressão cósmica da acção humana na Terra, conseguiu que as câmaras da sonda Galileo, a caminho de Júpiter, apontassem para a Terra procurando vida inteligente. Só foram encontrados modestos vestígios... Estas duas observações foram divulgadas “urbi et orbi” pela comunicação social. Por exemplo, o título “Descoberta vida inteligente na Terra” fez furor.
Como poucos cientistas, Sagan conseguiu fazer chegar a ciência ao público. Foi um cientista eminente, com cerca de 500 publicações em revistas científicas (incluindo 37 na “Science” e 30 na “Nature”, as duas revistas de maior prestígio e onde é mais difícil publicar). Foi director científico no programa de várias décadas da NASA dedicado à exploração do sistema solar. Mas, ao mesmo tempo, conseguiu alcançar “biliões e biliões” de leitores através da revista “Parade”, um suplemento dominical incluído em muitos jornais norte-americanos. Entrou por nossas casas adentro através da televisão. Ocupou as nossas bibliotecas com os seus livros, incluindo todos aqueles que a Gradiva publicou em português. Escreveu um romance de ficção coientífica. Conseguiu juntar a NASA e Hollywood para ficar na nossa memória (quem não recorda o filme “Contacto”, com Jodie Foster?).
Depois de Sagan e por causa de Sagan, para o comum dos cidadãos o mundo já não é o mesmo. O mundo tornou-se maior e nós tornámo-nos, com isso, também maiores!
PARA SABER MAIS:
-Carl Sagan, «Cosmos», Gradiva, 2001.
“Cosmos”, saído do prelo da Random House em 1980, é o livro de ciência em língua inglesa mais vendido de sempre. Divide-se em 13 capítulos tantos quantos os episódios da série televisiva que tanto êxito causou em todo o mundo há pouco mais de 20 anos. A tradução portuguesa, sem data e de vários autores (entre os quais o próprio editor Guilherme Valente), saiu do prelo da Gradiva em meados da década de 80, mas, por razões de direitos editoriais, não trazia a notável iconografia a cores que caracterizava a edição original. Mas, passada década e meia, em 2001 a Gradiva publicou a versão original. Além de "Cosmos", Sagan tem em português “Os Dragões do Éden”, “O Cérebro de Broca”, “O Cometa” (com Ann Druyan), “O Ponto Azul Claro”, “Sombras de Antepassados esquecidos” (com Ann Druyan), “Um Mundo Infestado de Demónios” e “Biliões e Biliões”. Em breve sairá outro livro de Sagan, este póstumo.
sexta-feira, 17 de agosto de 2007
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8 comentários:
"Contacto" também está em português, se bem que com uma tradução deplorável, tal como o meu exemplar, lido múltiplas vezes, pode comprovar.
Pessoalmente prefiro a tradução "ponto azul pálido" ("pale blue dot" no original).
Sagan foi um dos motivos (entre vários, bem entendido) para a minha orientação na direcção da ciência. Nunca me arrependi.
Carl Sagan democratizou a ciência. Penso que a humanidade tem para com ele uma enorme dívida de gratidão.
Curiosamente ele também era um homem de fé. Acreditava na existência de extra-terrestres, mas reconhecia que não tinha forma de provar a sua existência.
Sem dúvida e embora de um cientista se trate, estes dois belíssimos excertos trazidos para aqui pelo Carlos Fiolhais do Livro COSMOS de CARL SAGAN dão-nos de uma forma indiscutível, o sentido da razão enquanto poética de vida.
Sagan não era um homem de fé. Ele não acreditava em extraterrestres. Apenas achava muito importante investigar se eles existiam. Numa ocasião um jornalista perguntou-lhe se ele "sentia nas suas entranhas" que havia extraterrestres e ele respondeu memoravelmente: "Não faço ciência com as minhas entranhas". Um homem de fé teria dito: "Sim, como sinto no meu fígado que há extraterrestre, é porque os há e quem não pensa assim é porque não tem sensibilidade para sentir esta realidade maravilhosa".
Desidério,
Você não anda a confundir "homem de fé" (aquele que acredita sem provas) com "homem alucinado" (aquele que já não bate bem)?
:-)
Só não percebo, seguindo a perspectiva do Desidério, porque é que Carl Sagan se deu ao trabalho de escrever "O Contacto"...
E a propósito de Carl Sagan, eu acho que a série "Cosmos" devia ser um conteúdo obrigatório da escolaridade em Portugal. Acho que alguém devia pensar seriamente nisto.
Foi a partir da edição do "COSMOS", que comecei a conhecer melhor a ciência, SAGAN foi e continua a ser um marco na história da ciência em todo o mundo, já li todos os livros dele publicados pela Gradiva, agora que já tenho o último "As Variedades da Experiência Científica"razões não me faltam para ficar mais enriquecido.
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