Uma vez que os dois últimos posts foram sobre o ensino básico, recupero um escrito meu de há cinco anos publicado na "Gazeta de Física" sobre o ensino secundário (que não é nada secundário!)
A Hungria entre as duas guerras mundiais (ambas perdidas pelo lado em que a Hungria estava) foi um autêntico viveiro de cientistas. Houve um grupo que nasceu e estudou em Budapeste a que até chamaram os “marcianos”, pois não pareciam deste mundo: Eugene Wigner, o físico da foto (originalmente engenheiro químico) que desenvolveu a mecânica quântica e lançou as bases da engenharia de reactores nucleares; John von Neumann, um dos grandes responsáveis pela computação moderna e talvez o maior matemático do século XX; Edward Teller, um físico que explicou a origem da energia das estrelas e desenvolveu armas termonucleares, etc. Todos estes “marcianos” emigraram para os Estados Unidos, à semelhança de muitos outros cientistas europeus confrontados com a ameaça nazi.
Budapeste, a capital húngara à beira do rio Danúbio, é ainda a terra natal de Dennis Gabor (inventor da holografia), Andrew Grove (fundador da empresa de microprocessadores Intel), Theodor von Karman (especialista em mecânica de fluidos e em astronáutica), Arthur Koestler (romancista e crítico que se aventurou por temas de ciência, nomeadamente nesse livro notável que é “Os Sonâmbulos”), Leo Szilard (cientista atómico, que pediu a Einstein para escrever ao presidente Roosevelt alertando-a para a possibilidade de uma arma atómica), Albert Szent-Gyoergy (o médico que identificou a vitamina C), Erno Rubik (o criador do famoso cubo de Rubik), George Soros (financeiro e filantropo), etc., etc. Para não falar já de génios da música como Bela Bartok ou Franz Liszt, ou de pintores como Victor Vasarely ou, embora menos conhecido, Arpad Szenes (o marido da “nossa” Vieira da Silva a quem um dia impediram de ser português).
Como explicar esta proliferação de cientistas e outras personalidades notáveis da cultura? A resposta a esta questão é muito simples: porque a Hungria, e em particular a sua capital, teve (tem!) uma boa escola, uma escola que permitiu desenvolver da melhor maneira as potencialidades dos alunos que a frequenta. E a boa escola é feita pelos bons professores.
Tomemos o caso de Eugene Wigner, Prémio Nobel da Física, que nasceu em 1902, tal como outros dois grandes físicos – o italiano Enrico Fermi e o inglês Paul Dirac – e faleceu em 1995, com a avançada idade de 93 anos. Wigner nasceu no lado de Peste, o centro comercial e económico de Budapeste (do outro lado, Buda, é o centro histórico) e frequentou o Liceu Luterano de Budapeste, uma escola do mesmo lado do Danúbio. O Liceu Luterano é uma escola extraordinária (além de Wigner acolheu o seu amigo John von Neumann). A memória dos seus professores do liceu, em particular o seu professor de matemática de nome Lászlo Rácz, nunca abandonou Wigner ao longo da sua longa vida. Ouçamo-lo muitos anos mais tarde (como outros textos adiante, este foi retirado do livro “Eugene P. Wigner and his Hungarian Teachers”, de Lásló Kovács, Szombathely / Hungria, 2002):
“Muita água passou no Danúbio desde que me banhei nele. O tempo, porém, não apagou a gratidão que tenho pela minha terra natal. Não esqueci que foi o meu berço e que me apoiou nos meus primeiros estudos. Raramente deixo passar uma oportunidade de expressar a minha gratidão aos meus professores e ao Liceu Luterano de Budapeste. Nunca esquecerei os meus professores, entre os quais o meu professor de matemática László Rácz, um pedagogo autêntico e um homem muito cordial, que despertou em mim o amor pela matemática”.
No mesmo escrito, Wigner rememora também o seu professor de Física, Sándor Mikola:
“Tenho orgulho em dizer que depois de dois anos de estudo da Física com ele no liceu, os cursos de Física na Universidade Técnica de Budapeste e na Escola Técnica Superior de Berlim pareciam quase ser uma mera repetição.”
Wigner que depois foi professor e investigador em Princeton, nos Estados Unidos, conservou sempre no seu gabinete de trabalho uma fotografia do seu antigo professor de matemática. Mais: nos seus anos mais avançados fazia regularmente os exercícios de matemática do liceu, do seu antigo professor. Tendo-lhe um jornalista perguntado por que é que um Prémio Nobel da Física fazia exercícios de matemática elementar ele respondeu: “Como sabe, as faculdade mentais diminuem com a idade se não forem devidamente exercitadas”.
O segredo da escola luterana era, de facto, os seus bons professores. Entre 1873 e 1924 nove professores desse liceu foram nomeados membros da Academia das Ciências Húngara (situada num belo edifício, em Peste, logo depois da Ponte das Correntes). O professor de matemática de Laszlo era editor de um jornal de matemática para o ensino secundário. O professor de Física Mikola foi autor de vários artigos de investigação. Ambos conviviam com professores universitários, a quem passaram os seus famosos alunos quando verificaram que já não lhes podiam ensinar mais nada (também conviviam com os alunos fora da escola, reunindo-se com alguns deles num café aos sábados). Quanto aos equipamentos do liceu, bastará referir que a biblioteca tinha em 1900 mais de dez mil volumes e assinava 27 periódicos, o laboratório de história natural 2600 espécimes de minerais e 2357 exemplares de borboletas. O ensino da Física e da Química era, claro, experimental.
Para se entender melhor o que é um bom professor de Matemática, vejamos o que um colega de Rátz escreveu na ocasião do seu óbito:
“Ele reflectia cuidadosamente o melhor material para cada lição e mantinha os alunos atentos pela sua dedicação pedagógica e pela sua cativante personalidade. O interesse e a vitalidade das suas aulas não diminuiu com o tempo – continuava a ensinar com o mesmo ardor juvenil nos anos anteriores à sua reforma. Para além da sua formação científica, ele conseguia entrar no mundo interior dos seus alunos, uma habilidade que usava para escolher da matéria e transmitir aos seus alunos o que tinha mais valor de uma maneira que todos o compreendiam. Não apresentava a matemática como uma disciplina teórica e abstracta mas mostrava aos seus alunos permanentemente a sua relação estreita com o dia a dia. Tentava desenvolver nos seus alunos a capacidade de pensar matematicamente e, em virtude de uma preparação sistemática, as verdades matemáticas apareciam naturalmente aos estudantes. Devido a essa técnica, a matemática, que tantas vezes é vista como uma disciplina difícil, tornava-se um assunto estudado com entusiasmo e interesse. Os seus alunos não conheciam a ansiedade com os exames, porque aqueles que seguissem as lições bem preparadas e bem conduzidas de Rász conseguiam resolver os problemas com facilidade”.
A Hungria entre as duas guerras mundiais (ambas perdidas pelo lado em que a Hungria estava) foi um autêntico viveiro de cientistas. Houve um grupo que nasceu e estudou em Budapeste a que até chamaram os “marcianos”, pois não pareciam deste mundo: Eugene Wigner, o físico da foto (originalmente engenheiro químico) que desenvolveu a mecânica quântica e lançou as bases da engenharia de reactores nucleares; John von Neumann, um dos grandes responsáveis pela computação moderna e talvez o maior matemático do século XX; Edward Teller, um físico que explicou a origem da energia das estrelas e desenvolveu armas termonucleares, etc. Todos estes “marcianos” emigraram para os Estados Unidos, à semelhança de muitos outros cientistas europeus confrontados com a ameaça nazi.
Budapeste, a capital húngara à beira do rio Danúbio, é ainda a terra natal de Dennis Gabor (inventor da holografia), Andrew Grove (fundador da empresa de microprocessadores Intel), Theodor von Karman (especialista em mecânica de fluidos e em astronáutica), Arthur Koestler (romancista e crítico que se aventurou por temas de ciência, nomeadamente nesse livro notável que é “Os Sonâmbulos”), Leo Szilard (cientista atómico, que pediu a Einstein para escrever ao presidente Roosevelt alertando-a para a possibilidade de uma arma atómica), Albert Szent-Gyoergy (o médico que identificou a vitamina C), Erno Rubik (o criador do famoso cubo de Rubik), George Soros (financeiro e filantropo), etc., etc. Para não falar já de génios da música como Bela Bartok ou Franz Liszt, ou de pintores como Victor Vasarely ou, embora menos conhecido, Arpad Szenes (o marido da “nossa” Vieira da Silva a quem um dia impediram de ser português).
Como explicar esta proliferação de cientistas e outras personalidades notáveis da cultura? A resposta a esta questão é muito simples: porque a Hungria, e em particular a sua capital, teve (tem!) uma boa escola, uma escola que permitiu desenvolver da melhor maneira as potencialidades dos alunos que a frequenta. E a boa escola é feita pelos bons professores.
Tomemos o caso de Eugene Wigner, Prémio Nobel da Física, que nasceu em 1902, tal como outros dois grandes físicos – o italiano Enrico Fermi e o inglês Paul Dirac – e faleceu em 1995, com a avançada idade de 93 anos. Wigner nasceu no lado de Peste, o centro comercial e económico de Budapeste (do outro lado, Buda, é o centro histórico) e frequentou o Liceu Luterano de Budapeste, uma escola do mesmo lado do Danúbio. O Liceu Luterano é uma escola extraordinária (além de Wigner acolheu o seu amigo John von Neumann). A memória dos seus professores do liceu, em particular o seu professor de matemática de nome Lászlo Rácz, nunca abandonou Wigner ao longo da sua longa vida. Ouçamo-lo muitos anos mais tarde (como outros textos adiante, este foi retirado do livro “Eugene P. Wigner and his Hungarian Teachers”, de Lásló Kovács, Szombathely / Hungria, 2002):
“Muita água passou no Danúbio desde que me banhei nele. O tempo, porém, não apagou a gratidão que tenho pela minha terra natal. Não esqueci que foi o meu berço e que me apoiou nos meus primeiros estudos. Raramente deixo passar uma oportunidade de expressar a minha gratidão aos meus professores e ao Liceu Luterano de Budapeste. Nunca esquecerei os meus professores, entre os quais o meu professor de matemática László Rácz, um pedagogo autêntico e um homem muito cordial, que despertou em mim o amor pela matemática”.
No mesmo escrito, Wigner rememora também o seu professor de Física, Sándor Mikola:
“Tenho orgulho em dizer que depois de dois anos de estudo da Física com ele no liceu, os cursos de Física na Universidade Técnica de Budapeste e na Escola Técnica Superior de Berlim pareciam quase ser uma mera repetição.”
Wigner que depois foi professor e investigador em Princeton, nos Estados Unidos, conservou sempre no seu gabinete de trabalho uma fotografia do seu antigo professor de matemática. Mais: nos seus anos mais avançados fazia regularmente os exercícios de matemática do liceu, do seu antigo professor. Tendo-lhe um jornalista perguntado por que é que um Prémio Nobel da Física fazia exercícios de matemática elementar ele respondeu: “Como sabe, as faculdade mentais diminuem com a idade se não forem devidamente exercitadas”.
O segredo da escola luterana era, de facto, os seus bons professores. Entre 1873 e 1924 nove professores desse liceu foram nomeados membros da Academia das Ciências Húngara (situada num belo edifício, em Peste, logo depois da Ponte das Correntes). O professor de matemática de Laszlo era editor de um jornal de matemática para o ensino secundário. O professor de Física Mikola foi autor de vários artigos de investigação. Ambos conviviam com professores universitários, a quem passaram os seus famosos alunos quando verificaram que já não lhes podiam ensinar mais nada (também conviviam com os alunos fora da escola, reunindo-se com alguns deles num café aos sábados). Quanto aos equipamentos do liceu, bastará referir que a biblioteca tinha em 1900 mais de dez mil volumes e assinava 27 periódicos, o laboratório de história natural 2600 espécimes de minerais e 2357 exemplares de borboletas. O ensino da Física e da Química era, claro, experimental.
Para se entender melhor o que é um bom professor de Matemática, vejamos o que um colega de Rátz escreveu na ocasião do seu óbito:
“Ele reflectia cuidadosamente o melhor material para cada lição e mantinha os alunos atentos pela sua dedicação pedagógica e pela sua cativante personalidade. O interesse e a vitalidade das suas aulas não diminuiu com o tempo – continuava a ensinar com o mesmo ardor juvenil nos anos anteriores à sua reforma. Para além da sua formação científica, ele conseguia entrar no mundo interior dos seus alunos, uma habilidade que usava para escolher da matéria e transmitir aos seus alunos o que tinha mais valor de uma maneira que todos o compreendiam. Não apresentava a matemática como uma disciplina teórica e abstracta mas mostrava aos seus alunos permanentemente a sua relação estreita com o dia a dia. Tentava desenvolver nos seus alunos a capacidade de pensar matematicamente e, em virtude de uma preparação sistemática, as verdades matemáticas apareciam naturalmente aos estudantes. Devido a essa técnica, a matemática, que tantas vezes é vista como uma disciplina difícil, tornava-se um assunto estudado com entusiasmo e interesse. Os seus alunos não conheciam a ansiedade com os exames, porque aqueles que seguissem as lições bem preparadas e bem conduzidas de Rász conseguiam resolver os problemas com facilidade”.
Quanto a Mikola, o professor de Física de Wigner e von Neumann, ele próprio foi autor de textos pedagógicos onde expunha a sua maneira de ensinar Física:
“Há uma técnica especial que parece que foi pensada para a Física: é o método ‘heurístico’ de ensino. Colocando questões apropriadas, o professor consegue orientar o pensamento do aluno em direcção ao assunto, promover a apreciação das experiências e das reacções instintivas que estão no limiar do conhecimento, e direccionar os pensamentos dos estudantes para a busca do essencial [o escrito é dos anos 20, muito antes da moderna psicopedagogia]”.
Com professores como estes, o insucesso é impossível. Afinal o segredo dos génios, dos “marcianos” de Budapeste, reside nos professores deles.
5 comentários:
Obrigada pelo texto! Informativo e bem escrito.
A questão já foi muito discutida e há outras interpretações avançadas com boas bases: o regime político, não permitindo muita actividade independente, "empurrava" os jovens para a Matemática e a Física Teórica onde o controlo do pensamento era impossível: ou seja, era a única rebeldia possível.... E a existência de escolas de elite (ao bom estilo exibicionista-estalinista?) é muito contestada...
CARO ANONIMO:
estes rapazinhos andaram nas escolas hungaras no principio do século, ainda o estaline andava de calções...
treria 20 e poucos anos, duvido que fosse grande influencia na hungria, deixe lá de envenenar politicamente este belo post faxavôr...
São também de Budapeste, entre outros, Eric Weiss ("Houdini"), Judit Polgar (melhor xadrezista feminina de todos os tempos) e Paul Erdos, também ele candidato a melhor matemático do séc. XX.
Desde sempre, a arte, a cultura e o conhecimento se desenvolveram em ambientes e sociedades que previligiavam e incentivavam a saudável competição entre os protagonistas dessas práticas, sendo de realçar em Budapeste, não só a excelência dos seus professores mas também (neste aspecto em particular) a influência da outrora forte comunidade judaica do centro da Europa...
Ter-se-ão esquecido de um dos maiores matemáticos de sempre?
Certamente, Paul Erdos.
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