sexta-feira, 10 de agosto de 2007

A resistência do “eduquês” aos exames nacionais


Nova contribuição de Rui Baptista:

“(…) num país onde a inteligência é um capital inútil e onde oúnico capital deveras produtivo é a falta de vergonha e de escrúpulos – o diagnóstico impõe-se ‘per se’”.
Manuel Laranjeira (“O Norte”, 1908)

Só por absurdo, pode passar pela cabeça de alguém conceber um treinador de atletismo a adestrar um atleta para uma maratona olímpica sem que o resultado dos treinos seja sujeito à avaliação de uma cronometragem rigorosa. Pois é precisamente isto que acontece no nosso sistema educativo em que o aluno, por vezes, sai mal preparado por não terem sido avaliadas, em exames nacionais, as suas “performances” que atestem os conhecimentos adquiridos nos diversos e sucessivos patamares até ao 9.º ano de escolaridade. Desta forma, e a partir daí, é o aluno lançado nas pistas da exigente competição do ensino secundário (ante-câmara de acesso ao ensino superior) em que corre o risco de cortar a linha da meta nos últimos lugares com os bofes do desânimo a saltarem-lhe da boca para fora. Outras vezes, nem sequer termina a prova, desistindo a meio e engrossando, assim, as percentagens do insucesso escolar.

Ter a decantada avaliação contínua isenta de qualquer crítica passando-lhe um cheque em branco em assunto tão sério, transforma a educação num embuste de proporções nacionais que pode servir para denegrir os que devem ser honrados e honrar os que devem ser denegridos.

Debrucemo-nos sobre a velha questão dos conteúdos científicos e pedagógicos do ensino. Como é possível, por exemplo, formar um professor para o 2.º ciclo do ensino básico, em escolas superiores de educação, para ministrar, simultaneamente, matemática e ciências da natureza e exigir-se a um outro, do mesmo grau de ensinança, uma formação universitária específica para cada uma destas disciplinas? O facto de naquelas escolas haver uma excessiva preocupação com uma formação pedagógica, divorciada de uma forte componente científica da matéria a ensinar, faz com que este “modus faciendi” se possa tornar num perigosíssimo meio de inculcar no aluno a asneira científica, qual lapa incrustada na rocha para sempre.

Segundo Filomena Mónica, esta prevalência pedagógica, sobre o conhecimento científico, remonta às teorias de Rousseau que “introduziu a ideia de que a criança era um botão de rosa, competindo ao professor estrumar a alma infantil: foi assim que a Pedagogia substituiu o Saber”. Mas para além destas duas “ferramentas”, de natureza pedagógica, uma, e científica, outra, deve ser tomado em linha de conta o papel da empatia na relação professor/aluno.

“Last but not least”, retornemos à velha, mas sempre actual, questão dos exames nacionais em guerra aberta com o “eduquês” (que deu o título a um “best-seller” de Nuno Crato), definido por Desidério Murcho, em feliz chiste, como “sinónimo de conversa de tias de Cascais à hora do chá”. Parafraseando o conceito de democracia de Churchill, os exames podem ser a pior forma de avaliação, mas ainda não se descobriu outra melhor em turmas grandes com alunos indisciplinados. Assim, o cerne da questão não reside nos exames propriamente ditos, mas na forma como são elaborados em vassalagem a programas demasiado extensos e, “ipso facto”, nem sempre cumpridos, com enunciados repletos de respostas do tipo totobola, ainda mesmo na interpretação de textos linguísticos, e erros de forma e conteúdo científicos por parte de equipas encarregadas da respectiva elaboração que se abrigam de intempéries de responsabilidade no alpendre tutelar do próprio Ministério da Educação.

De caminho, reporto-me a um caso de que fui testemunha e bem atesta a alergia dos cábulas pelos exames. Durante o período de transição de Moçambique para a Independência, realizaram-se várias sessões de esclarecimento nas escolas. Numa delas, na antiga Lourenço Marques, levada a efeito por professores da ex-União Soviética, os alunos queixaram-se de um sistema de ensino que, na sua opinião, contemplava um exagerado número de provas de exame, culpando, com isso, um sistema de ensino opressor classificado de fascista. Os soviéticos quiseram saber o montante de provas de exames até ao ingresso no ensino superior. Em resposta, os alunos enumeraram o respectivo rol. Aí, retorquiram: “No nosso sistema de ensino, a avaliação inclui um maior número de exames”. E concluíram: “Por isso é que caminhamos na vanguarda da exploração espacial!”

Num sistema educativo permissivo em que a entrega ao estudo chega a ser responsabilizada por traumas da infância e da adolescência, em que a memória é associada à estupidez, em que a cabulice se fez rainha e o hedonismo socrático se fez rei, vivem os responsáveis por este verdadeiro reino do caos em sobressalto constante pelo perigo de aparecer um coro de gente inconformada que grite que o rei vai nu! Aliás, de há muito, dizem-no, os muitos “rankings” internacionais que vieram desassossegar a felicidade de uma academia que julgava poder continuar a viver num mar de rosas sem os espinhos dos exames.

Nesta hora de uma quase apatia geral, surge a férrea determinação de Carlos Fiolhais em contrariar este “statu quo”, expressa no prefácio de um dos seus livros: “Ousei, no volume anterior, atirar-me, de caneta em riste, a uma das nossas maiores fragilidades: a fragilidade que é patente no nosso défice de ciência e de educação. Supondo que ela não saiu suficientemente ferida, ataco-a de novo”. Os defensores de uma ciência e de uma educação fortalecidas agradecem!

3 comentários:

Anónimo disse...

Não comento, porque o principal está dito e bem dito, e é verdade, infelizmente. Refiro apenas alguns casos que me deixaram perplexo pela ignorância espantosa em questões que deveriam ser parte essencial dos cursos superiores respectivos.
Num dos concursos televisivos que põem a nu a ignorância assustadora de muito boa gente, um licenciado em arqueologia não sabia se a parte da frente de um barco se chama proa ou popa. No mesmoo concurso, um bacharel em engenharia não sabia se a Sé de Lisboa, onde ele já entrara várias vezes, é românica ou barroca.
Num telejornal, foi perguntado a uma licenciada em farmácia por que razão quem toma Aspirina para prevenir problemas cardíacos deve optar pela de cem miligramas em vez da de quinhentos. Ela respondeu que esta (a de 500) não faz efeito porque não é tão forte (como a de 100, note-se)!

Anónimo disse...

Infelizmente, estes casos, e outros, vêm demonstrar a pobreza franciscana do nosso ensino e a conivência de várias tutelas ministeriais na sua manutenção, fiéis, ao princípio, pelos vistos, de quanto pior melhor para numa atitude messiânica se arvorarem em salvadores de uma pátria em que os caboucos de uma boa instrução primária (actual 1.º ciclo do ensino básico) deixaram de suportar o peso de estudos subsequentes, inclusivamente estudos universitários. Aliás, aos exemplos trazidos por Daniel de Sá, numa atitude de responsabilidade cívica de louvar, acrescento parte de um texto por mim publicado no "Diário de Coimbra", em 20 de Fevereiro de 2003, intitulado "O Estado da Educação em Portugal": "Alunos da Faculdade de Letras de Lisboa são entrevistados [Jornal Nacional da TVI, 29.Janeiro.2003] a fim de responderem a perguntas comezinhas relacionadas com Literatura, i.e.,os autores de "Os Maias" e de "A Cidade as Serras ou, ainda, a grafia da palavra "assessoria". As respostas dadas não deixam lugar a dúvidas. Os alunos universitários interrogados mostraram um ignorância confrangedora. Um deles, atribui a autoria de "Os Maias" a Egas Moniz, deixando a alternativa da escolha: Egas Moniz, do século XII, fidalgo, exemplo de honradez, ou Egas Moniz, Prémio Nobel, 1949? Um outro, disse escrever-se a palvra assessoria com dois esses e um cê cedilhado!O facto destes alunos trazerem atrás de si vários diplomas que os habilitaram para a respectiva frequência, justifica o remoque do falecido Francisco de Sosa Tavares, quando, com pena impiedosa, deixou escrito: 'Estamos não a formar um País de analfabetos, como até aqui, mas um País de burros diplomados'". É este o verdadeiro "Estado de Sítio" do Sistema Educativo Nacional. As mentes brilhantes que o excepcionam, são isso mesmo: excepções que confirmam uma regra confrangedora de um ensino que não presta e que, por isso, nos deve envergonhar a todos nós, mesmo aqueles que com ele não pactuam. E não pactuar é precisamente apresentar exemplos que diagnostiquem o seu estado mórbido que não cede a aspirinas de cem ou quinhentas miligramas!...

Anónimo disse...

Mal andaria com a minha consciência, se não acrescentasse ao nomes de Carlos Fiolhais e Nuno Crato, os nomes de Filomena Mónica e Desidério Murcho. Aliás, citados no meu artigo com toda a justiça pelo contributo que têm dado para uma Educação melhor. Aqui fica a devida rectificação que tenho como da maior justiça. Aliás, as citações referidas, só por si, foram esse tributo público que lhes prestei, mas que ficaria incompleto sem este acrescento.

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