sexta-feira, 3 de agosto de 2007
ESTAS NOVAS IDEIAS ANTIGAS
Quando o moderno e boémio engenheiro mecânico, escritor e poeta, músico e cantor e outras tantas coisas, Boris Vian escreveu: “o lado deprimente dos tempos modernos reside na deplorável necessidade de implicarem a anulação dos tempos antigos” não estava, tanto quanto sabemos, a referir-se à educação, mas podia estar.
Efectivamente, se fizermos uma incursão pela história da educação ocidental, rapidamente percebemos a necessidade reequacionar as noções de tradição e de inovação, de antigo e de novo, dicotomias que nos habituámos a usar como grelhas de leitura, sem nos darmos conta da sua vacuidade.
Nessa incursão, um primeiro aspecto que se destaca é o facto de as ideias pedagógicas variarem não só de época para época, como é vulgar salientar-se, mas também numa mesma época. Explicamos melhor com a ajuda de um exemplo: as ideias que foram ensaiadas pela vulgarmente designada Educação Tradicional, a qual costumamos situar num tempo distante, são apresentadas, na sua generalidade, como discrepantes daquelas que, reactivamente, o Movimento da Escola Moderna, emergente em finais do século XIX, procurou consolidar.
Nada se verá aqui de extraordinário, uma vez que esta informação está de acordo com o modo progressivo como, talvez por comodidade, costumamos olhar para a educação: organizada por etapas com contornos nítidos e, portanto, fáceis de apreender. Mas, não precisamos sair deste caso, para darmos conta de que tal visão não corresponde exactamente à realidade.
Consideremos, pois, um aspecto que, sendo bastante óbvio, nos escapa com muita frequência: esse Movimento, não obstante a sua ampla divulgação pelos sectores académicos e intelectuais mais vanguardistas, e a sua implantação de raiz em muitas escolas espalhadas por diversos países, esteve muito longe de substituir o funcionamento da instituição escolar que, tendencial e serenamente, continuou a ser tradicional, ainda que tivesse vindo a introduzir, neste ou naquele particular, um toque de novidade. Por outro lado, nem tudo na Educação Moderna é novo: uma análise, por exemplo, do plano de estudos da famosa École des Roches - a primeira escola nova francesa, criada em 1899, por Edmond Demolins, que serviu de modelo a diversas outras que se inauguraram pela Europa fora - denota inúmeros pontos de continuidade com a tradição, como talvez não pudesse deixar de ser. Curioso é que, no presente, esse plano, como talvez também não possa deixar de ser, afigura-se como… um tanto antigo!
Desta maneira, não é possível continuar a aceitar acriticamente a muito propagada tese da “revolução copernicana” no campo da pedagogia, que remete para uma substituição do modo de ensinar e de aprender tradicional pelo novo.
Por outro lado, a concepção antinómica de educação, para que a dita expressão remete, tem uma longa história, muito anterior ao próprio Copérnico, que lhe emprestou o nome. De facto, se recuarmos, até à Antiguidade, temos de reparar em diversas e apaixonantes contendas que ocuparam filósofos contemporâneos e de entre as quais destacamos, pelo proveito e vivacidade de argumentos que envolveram, as de Sócrates e Sofistas ou de Platão e Aristóteles. Contendas, curiosamente, em tudo semelhantes àquelas que na segunda metade do século XX, tiveram lugar entre teóricos de inspiração behaviorista, sócio-construtivista e cognitivista, e que vislumbramos ocuparem uma parte significativa do século em que nos situamos.
Outro aspecto digno de nota é que uma mesma corrente de pensamento, surgida numa certa época e na sua aparência uniforme, pode produzir várias e distintas propostas educativas. Voltamos ao Movimento da Escola Moderna, que ilustra bem esta ideia: tantas foram as apropriações educativas a que deu origem que, a partir dum determinado momento, foi necessário distinguir duas orientações: a da Educação Activa, em que se inscreve, por exemplo, a incontornável Escola de Maria Montessori; e a da Educação Libertária, onde se toma em geral como padrão a Escola de Alexander S. Neill.
Aprofundando um pouco mais, se deitarmos o olhar para cada uma dessas escolas, verificamos que, mesmo mantendo a identidade, não deixaram de introduzir, paulatinamente, actualizações mais ou menos acentuadas, em função de condicionantes sociais, filosóficas, políticas, ideológicas ou científicas.
Prosseguindo no nosso raciocínio, pensamos ser possível afirmar que muito daquilo que consideramos inovação em educação já foi proposto e experimentado antes, por vezes abandonado durante algum tempo e depois retomado sob outras roupagens, as quais, em geral e curiosamente, não fazem alusão às origens. Mais uma vez recorremos a exemplos para nos fazermos entender: a valorização das artes e da prática desportiva que constituiu, na passagem do século XIX para o XX, uma bandeira de várias escolas modernas, teve uma forte presença em inúmeros planos de estudos antigos, como os atenienses e os espartanos (Ribeiro Ferreira, 2006); o desenvolvimento do espírito científico, materializado na curiosidade e na capacidade de observação, hoje tão valorizado foi enaltecido, no século XVI, por Michel de Montaigne no seu Três Ensaios, como a base do ensino formal; também a ideia, hoje comum, de organizar os estudos segundo a idade dos aprendizes foi, no século XVII, enunciada detalhadamente por J. Amós Coménio na sua Didáctica Magna; no século seguinte, Luís António Verney fez, no Verdadeiro Método de Estudar, a apologia do ensino divertido e dos manuais ilustrados, de modo que “o estudo entrasse na cabeça dos meninos, sem parecer que estudavam”, aspecto que constitui, na actualidade, uma importante fonte de polémica.
Situando-nos no presente, e para concluirmos, devemos aceitar a hipótese de as concepções educativas mais afastados no tempo, poderem ser válidas. Desta maneira, é de toda a conveniência que as submetamos a avaliações cuidadas, com base em critérios científicos, em vez de os negligenciarmos ou, mesmo, hostilizarmos, apenas e só porque as supomos ultrapassadas, acreditando que as melhores soluções se encontram no nosso limitado horizonte histórico, ainda que nesse horizonte possam existir excelentes soluções.
A propósito, Borghesi (2005, 27), num capítulo dedicado a este assunto, afirma cruamente não haver nos nossos quadros mentais, “actualidade possível para o passado”. Assim, o saber que nele se gerou é visto, ora como erro, devendo ser negado, ora como peça de museu, devendo ser guardado, não se tornando, em qualquer dos casos, saber vivo, fonte de ideias e práticas.
Só assim se compreende que a tradição educativa, entendida como um legado que permite iluminar o passado e abrir as portas do futuro, seja com tanta frequência rebatida por teóricos e decisores, que constantemente fazem menção à necessidade de se mudar, ficando no ar a ideia de que isso significa apenas é só fazer outra coisa, uma coisa diferente, ainda que não esteja bem delineado o que se vai fazer, nem se coordene com o que foi feito antes, ou o que se há-de vir a fazer.
Maria Helena Damião e João Manuel Ribeiro
Referências bibliográficas:
Borghesi, M. (2005). El sujeto ausente: Educación y escuela entre el nihilismo y la memoria. Madrid: Ediciones Encuentro.
Coménio, J. A. (1976). Didáctica magna: Tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Montaigne, M. (1993). Três Ensaios: do professorado, da educação das crianças, da arte de discutir. Lisboa: Vega
Ribeiro Ferreira, J. (2006). “Educação em Esparta e Atenas: dois métodos e dois paradigmas” in D. Leão, J. Ribeiro Ferreira & M. C. Fialho. Paideia e cidadania na Grécia Antiga. Coimbra: Editora Ariadne.
Verney, L. A. (s.d.). Verdadeiro método de estudar. Porto: Editorial Domingos Barreira.
Vian, B. (2006). Boris Vian por Boris Vian: palavras e aforismos. Lisboa: Fenda.
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5 comentários:
A doutrina sobre a educação é pelo menos tão vasta como a que se tem produzido sobre o direito. Pudessem ser todas essa produções tão interessantes como esta.
erra referência ao grande Boris Vian fez-me pensar como ele, relacionando tudo com tudo... - e a conclusão a que cheguei é que - seria deveras profícuo utilizar obras anti racistas como "Ei-de Cuspir-Vos nos Túmulos" e "Morte aos Feios" em aulas de filosofia, o chanfrado "Cantilenas em Geleia", o magno "O Arranca Corações" ou o supremíssimo "O Outono em Pequim" para diversificar os métodos interpretativos a Língua Portuguesa, "LE DESÉRTEUR" ou "As Formigas" para história, "O Colégio de Patafísica" para as ciências, e, por fim, como se os livros que aconselhei para filosofia não bastassem, "Elas Não Percebem nada" para as aulas de educação sexual!
isto sim, seria uma educação verdadeiramente Surrealista!
A crítica a "teóricos e decisores, que constantemente fazem menção à necessidade de se mudar, ficando no ar a ideia de que isso significa apenas é só fazer outra coisa, uma coisa diferente, ainda que não esteja bem delineado o que se vai fazer, nem se coordene com o que foi feito antes, ou o que se há-de vir a fazer" é demasiado injusta para ser escrita. Pode-se discordar do que é proposto mas não é bonito dizer que os outros não passam de "tontinhos". Justificações são avançadas muitas, se são convincentes ou não é outra coisa que deve ser discutida e é isso que se deve discutir.
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