sábado, 14 de abril de 2007

O que é uma universidade?

Vale a pena contrastar a noção de universidade que a Helena identifica no seu post com uma noção diferente, baseada no valor intrínseco do conhecimento. No jornal Público (11/04/2007) Rui Tavares escreveu palavras plenas de lucidez:

“Há qualquer coisa no ideal universitário que o torna difícil de explicar, apesar de ser tão simples. O ideal universitário é as ideias. Ideias sobre como são as coisas, sobre como funcionam, sobre como deveriam funcionar, ideias sobre ideias. Algumas dessas ideias são conhecimento, outra são comentário, outras criatividade, a maior parte delas um pouco disso tudo. Mas é difícil explicar aos alunos, ou até ao resto da sociedade, que dentro daquelas paredes (metafóricas: pode ser cá fora, na esplanada, no trabalho de campo, na visita de estudo) essas ideias devem ter precedência sobre tudo o resto. Se os alunos querem um diploma e os pais pagam por um bom emprego, não é fácil dizer-lhes que por agora a única coisa importante é o que escreveram alguns mortos de há mais de cem anos, ou como se comporta a partícula x, ou que interpretação dar à arte de y. Só depois de ganhar verdadeiro interesse ou paixão por tais coisas chega a altura de se poder começar a tratar de notas, de diplomas e de empregos.”

“Isto parece idealista, e é. Não poderia deixar de sê-lo, porque a razão de ser da Universidade é precisamente o idealismo, e não falo da doutrina filosófica do mesmo nome mas do projecto e da experiência histórica de haver um lugar inventado pelas ideias e só para as ideias. O resto pode ser importantíssimo. Mas quando se salta a etapa do ideal universitário tudo o resto, por importante que seja, corre mal.”


Vejamos, a título de exemplo, o que aconteceu com as universidades americanas. Até à segunda guerra mundial, as universidades americanas pouco mais eram do que provincianos centros de formação profissional, onde pouca ou nenhuma investigação de ponta se fazia — porque na mentalidade dos dirigentes universitários tudo o que não fosse de aplicação muito pragmática e imediata era pura perda de tempo e dinheiro. Uma mentalidade muito semelhante, pois, ao erro denunciado por Rui Tavares. Mas nem todos os académicos tinham esta mentalidade.

Em 1930, Abraham Flexner (1866-1959), que não concordava com a noção utilitária das universidades então prevalecente no seu país, aproveitou a fuga de cérebros da Europa para reformar as universidades americanas. Na revista Atlantic Monthly de 1974 atribui-se uma expressão curiosa a um educador norte-americano que viu a oportunidade que a fuga de cérebros da Europa representava: “Hitler abana as árvores, e eu apanho as maçãs”. Em 1930 Flexner conseguiu convencer uns milionários a financiar um instituto dedicado, como ele próprio dizia, “à utilidade do conhecimento inútil”. Foi assim que nasceu o Instituto de Estudos Avançados de Princeton — a que pertenceram alguns dos mais importantes intelectuais do séc. XX, como Einstein e Gödel.

Foi graças às maçãs que começaram a cair aos rodos das grandes universidades europeias da altura, nomeadamente alemãs, que o Instituto se notabilizou. Entretanto, por razões diversas, os responsáveis políticos americanos aperceberam-se de que afinal o tal conhecimento inútil fazia uma diferença do camandro em termos práticos, e investiram numa campanha nacional de estímulo ao estudo das ciências. Algumas das universidades americanas mais importantes ultrapassaram a sua visão algo primária do que é uma universidade, e o investimento intenso na produção de “conhecimento inútil” tornou-se uma política comum nas universidades de topo. O resultado é que hoje não deve haver praticamente área alguma do conhecimento que não seja liderado pelas universidades americanas. E este resultado conseguiu-se em apenas trinta anos.

Sem uma noção clara do valor intrínseco do conhecimento não é possível ter uma noção clara do que é uma universidade. E sem esta noção, as pessoas que fazem das grandes universidades grandes universidades afastam-se do país à procura de melhores pastagens. Seria bom que em Portugal se seguisse o exemplo norte-americano, cujo pragmatismo é lendário. Mas foi precisamente o pragmatismo que lhes mostrou que a visão provinciana e utilitária de universidade, que recusa o valor intrínseco do conhecimento, só produz universidades rascas e sempre à rasca, com medo de desaparecer. A ironia é mesmo esta: quanto mais se procura que a universidade seja um centro de formação de competências alheias ao valor intrínseco do conhecimento, com a ilusão de que fazer isso é abrir a universidade ao "mundo real", mais a universidade se torna vácua e inútil e afinal fechada ao mundo real, que é também o mundo das ideias.

Um dos problemas da mentalidade portuguesa, que resulta de séculos de más práticas académicas, é associar-se por vezes a pureza da investigação e das ideias a comentários sobre comentários sobre comentários, que nada mudam no mundo. Mas isso é apenas má investigação, a que falta rigor e criatividade. Entre os grandes factores que mudaram o mundo, incluindo a economia, estão ideias produzidas e acarinhadas pelas mais importantes universidades do mundo, que cultivavam de cara levantada o valor intrínseco do conhecimento e a procura honesta da verdade. É por isso mesmo que são universidades importantes.

4 comentários:

Joana disse...

Excelente post! Mesmo muito bom! E acerta em cheio no alvo:

"A ironia é mesmo esta: quanto mais se procura que a universidade seja um centro de formação de competências alheias ao valor intrínseco do conhecimento, com a ilusão de que fazer isso é abrir a universidade ao "mundo real", mais a universidade se torna vácua e inútil e afinal fechada ao mundo real, que é também o mundo das ideias."

Mas vá-se lá explicar uma coisa tão simples aos nossos políticos. Que vão para a Universidade só para ter um título a anteceder o nome...

Anónimo disse...

Poderia faltar explicar todo o relativismo que está a destruir a sociedade americana apresentada pela academia americana. Cada um procura defender as suas ideias, mais e mais e já se chega ao ridiculo dos alunos dizerem aos professores o que devem ensinar. Expliquem-me para que é que querem tantas ideias, criatividade numa universidade se depois não são práticas. Porque o que é certo para um, poderá nao ser para outro. E se se convencer disso, será a opinião de um contra a de outro. E portanto, vamos querer mais relativismo nas universidades?

Bruce Lóse disse...

Não há dúvida. Existem ainda páginas da internet que funcionam melhor com o cérebro ligado.

(dou comigo a verter o primeiro comentário absolutamente não sulfuroso na blogosfera)

antfilfon disse...

Segundo já ouvi dizer a muitos professores universitários 80 ou mais por cento da investigação que é feita nas universidades americanas tem directa ou indirectamente que ver com os militares e com industria militar, em todas as áreas e com maior ou menor nível de profundidade.

"O PODER DA LITERATURA". UMA HISTÓRIA, UM LIVRO

Talvez haja quem se recorde de, nos anos oitenta do passado século, certa professora, chamada Maria do Carmo Vieira, e os seus alunos do 11....