Vale a pena contrastar a noção de universidade que a Helena identifica no seu post com uma noção diferente, baseada no valor intrínseco do conhecimento. No jornal Público (11/04/2007) Rui Tavares escreveu palavras plenas de lucidez:
“Há qualquer coisa no ideal universitário que o torna difícil de explicar, apesar de ser tão simples. O ideal universitário é as ideias. Ideias sobre como são as coisas, sobre como funcionam, sobre como deveriam funcionar, ideias sobre ideias. Algumas dessas ideias são conhecimento, outra são comentário, outras criatividade, a maior parte delas um pouco disso tudo. Mas é difícil explicar aos alunos, ou até ao resto da sociedade, que dentro daquelas paredes (metafóricas: pode ser cá fora, na esplanada, no trabalho de campo, na visita de estudo) essas ideias devem ter precedência sobre tudo o resto. Se os alunos querem um diploma e os pais pagam por um bom emprego, não é fácil dizer-lhes que por agora a única coisa importante é o que escreveram alguns mortos de há mais de cem anos, ou como se comporta a partícula x, ou que interpretação dar à arte de y. Só depois de ganhar verdadeiro interesse ou paixão por tais coisas chega a altura de se poder começar a tratar de notas, de diplomas e de empregos.”
“Isto parece idealista, e é. Não poderia deixar de sê-lo, porque a razão de ser da Universidade é precisamente o idealismo, e não falo da doutrina filosófica do mesmo nome mas do projecto e da experiência histórica de haver um lugar inventado pelas ideias e só para as ideias. O resto pode ser importantíssimo. Mas quando se salta a etapa do ideal universitário tudo o resto, por importante que seja, corre mal.”
Vejamos, a título de exemplo, o que aconteceu com as universidades americanas. Até à segunda guerra mundial, as universidades americanas pouco mais eram do que provincianos centros de formação profissional, onde pouca ou nenhuma investigação de ponta se fazia — porque na mentalidade dos dirigentes universitários tudo o que não fosse de aplicação muito pragmática e imediata era pura perda de tempo e dinheiro. Uma mentalidade muito semelhante, pois, ao erro denunciado por Rui Tavares. Mas nem todos os académicos tinham esta mentalidade.
Em 1930, Abraham Flexner (1866-1959), que não concordava com a noção utilitária das universidades então prevalecente no seu país, aproveitou a fuga de cérebros da Europa para reformar as universidades americanas. Na revista Atlantic Monthly de 1974 atribui-se uma expressão curiosa a um educador norte-americano que viu a oportunidade que a fuga de cérebros da Europa representava: “Hitler abana as árvores, e eu apanho as maçãs”. Em 1930 Flexner conseguiu convencer uns milionários a financiar um instituto dedicado, como ele próprio dizia, “à utilidade do conhecimento inútil”. Foi assim que nasceu o Instituto de Estudos Avançados de Princeton — a que pertenceram alguns dos mais importantes intelectuais do séc. XX, como Einstein e Gödel.
Foi graças às maçãs que começaram a cair aos rodos das grandes universidades europeias da altura, nomeadamente alemãs, que o Instituto se notabilizou. Entretanto, por razões diversas, os responsáveis políticos americanos aperceberam-se de que afinal o tal conhecimento inútil fazia uma diferença do camandro em termos práticos, e investiram numa campanha nacional de estímulo ao estudo das ciências. Algumas das universidades americanas mais importantes ultrapassaram a sua visão algo primária do que é uma universidade, e o investimento intenso na produção de “conhecimento inútil” tornou-se uma política comum nas universidades de topo. O resultado é que hoje não deve haver praticamente área alguma do conhecimento que não seja liderado pelas universidades americanas. E este resultado conseguiu-se em apenas trinta anos.
Sem uma noção clara do valor intrínseco do conhecimento não é possível ter uma noção clara do que é uma universidade. E sem esta noção, as pessoas que fazem das grandes universidades grandes universidades afastam-se do país à procura de melhores pastagens. Seria bom que em Portugal se seguisse o exemplo norte-americano, cujo pragmatismo é lendário. Mas foi precisamente o pragmatismo que lhes mostrou que a visão provinciana e utilitária de universidade, que recusa o valor intrínseco do conhecimento, só produz universidades rascas e sempre à rasca, com medo de desaparecer. A ironia é mesmo esta: quanto mais se procura que a universidade seja um centro de formação de competências alheias ao valor intrínseco do conhecimento, com a ilusão de que fazer isso é abrir a universidade ao "mundo real", mais a universidade se torna vácua e inútil e afinal fechada ao mundo real, que é também o mundo das ideias.
Um dos problemas da mentalidade portuguesa, que resulta de séculos de más práticas académicas, é associar-se por vezes a pureza da investigação e das ideias a comentários sobre comentários sobre comentários, que nada mudam no mundo. Mas isso é apenas má investigação, a que falta rigor e criatividade. Entre os grandes factores que mudaram o mundo, incluindo a economia, estão ideias produzidas e acarinhadas pelas mais importantes universidades do mundo, que cultivavam de cara levantada o valor intrínseco do conhecimento e a procura honesta da verdade. É por isso mesmo que são universidades importantes.
sábado, 14 de abril de 2007
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4 comentários:
Excelente post! Mesmo muito bom! E acerta em cheio no alvo:
"A ironia é mesmo esta: quanto mais se procura que a universidade seja um centro de formação de competências alheias ao valor intrínseco do conhecimento, com a ilusão de que fazer isso é abrir a universidade ao "mundo real", mais a universidade se torna vácua e inútil e afinal fechada ao mundo real, que é também o mundo das ideias."
Mas vá-se lá explicar uma coisa tão simples aos nossos políticos. Que vão para a Universidade só para ter um título a anteceder o nome...
Poderia faltar explicar todo o relativismo que está a destruir a sociedade americana apresentada pela academia americana. Cada um procura defender as suas ideias, mais e mais e já se chega ao ridiculo dos alunos dizerem aos professores o que devem ensinar. Expliquem-me para que é que querem tantas ideias, criatividade numa universidade se depois não são práticas. Porque o que é certo para um, poderá nao ser para outro. E se se convencer disso, será a opinião de um contra a de outro. E portanto, vamos querer mais relativismo nas universidades?
Não há dúvida. Existem ainda páginas da internet que funcionam melhor com o cérebro ligado.
(dou comigo a verter o primeiro comentário absolutamente não sulfuroso na blogosfera)
Segundo já ouvi dizer a muitos professores universitários 80 ou mais por cento da investigação que é feita nas universidades americanas tem directa ou indirectamente que ver com os militares e com industria militar, em todas as áreas e com maior ou menor nível de profundidade.
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