sábado, 31 de dezembro de 2011
Química das coisas boas: da farinha de trigo, ovos e açúcar aos pastéis de Tentúgal
Uma versão inicial deste texto foi escrita para a Noite da Química no Laboratório Chimico, mas acabou por ficar inédita. Procurava-se, de forma simples, mas tão completa quanto possível, dar uma ideia da química envolvida neste doce maravilhoso
A farinha é um pó desidratado rico em amido, contendo também proteínas, obtido por moagem de cereais. O que torna a farinha de trigo única é o glúten, uma proteína amorfa muito elástica devido às suas ligações de enxofre e de hidrogénio. Esta proteína encontra-se na farinha em partículas de uma grande variedade de diâmetros em torno de um décimo de milímetro. O processo tradicional de peneirar a farinha serve para separar as partículas mais pequenas, obtendo-se assim farinhas adequadas para massas finas, ou seja com espessuras muito pequenas.
O glúten é insolúvel em água. Por isso, a farinha é inicialmente misturada com gorduras que, para além de melhorarem o sabor, formam uma dispersão, à qual se junta posteriormente a água que ajuda a ligar todo o conjunto. A adição de fermentos biológicos, ou orgânicos e inorgânicos, faz com que se forme dióxido de carbono no interior da massa, o que origina um aumento de volume do sistema, devido à elasticidade do glúten, sem que haja qualquer vantagem nutritiva. Posteriormente, no processo de aquecimento no forno todo o sistema fica mais rígido por perda de água e formação de uma estrutura reticulada, ficando os orifícios do interior da massa. São assim obtidos os pães vulgares e bolos comuns, mas não as massas finas dos pastéis de Tentúgal.
Para obter massas finas não se usam fermentos. No processo de as estender há quebra e formação de novas ligações de enxofre e de hidrogénio do glúten. E se for utilizada compressão, estas ligações aumentam de número originando uma maior rigidez da massa, a qual depois de levada ao forno se torna deliciosamente estaladiça. Para os pastéis de Tentúgal obtêm-se espessuras da ordem de metade do décimo de milímetro!
A sacarose, vulgarmente conhecida como açúcar, é um hidrato de carbono e simultaneamente um dos produtos mais puros, no sentido químico, que podemos encontrar no dia-a-dia. Trata-se de um sólido de cor branca que é muito solúvel em água. Essa solubilidade aumenta com a temperatura, assim como o ponto de fusão da solução resultante, podendo obter-se os bem conhecidos pontos do açúcar que correspondem a zonas de temperaturas características. A temperaturas relativamente elevadas a sacarose começa a decompor-se e a polimerizar ficando com a característica cor do caramelo, um material mais rico em carbono que em água.
A gema faz parte de uma célula gigante que é o ovo e tem no seu interior proteínas e lípidos, para além de uma grande quantidade de água. As propriedades químicas dos compostos que contém fazem dela um bom ligante para tintas no processo ancestral da têmpera e para a actual formação da emulsão conhecida como maionese. É também um material único e fundamental na doçaria portuguesa.
Para preparar o creme de ovo, ou ovos moles, usa-se uma calda quente de açúcar que vai coagular as proteínas das gemas de ovo e formar uma mistura muito agradável ao paladar e ao tacto bucal. A massa fina estaladiça do exterior dá forma ao conjunto de forma única.
Os pastéis de Tentúgal têm química e isso é muito bom!
Para saber mais: no blogue Uma Química Irresistível têm sido publicados textos detalhados sobre a química de alguns dos ingredientes alimentares referidos no texto e sobre vários aspectos da química na cozinha.
"REQUIEM" PELO MEDO DESLIZANTE
Uma das não-notícias do ano foi a anunciada catástrofe vulcânica do El Hierro. Crónica do vulcanólogo Victor Hugo Forjaz a propósito dos recentes fenómenos vulcânicos que têm ocorrido na ilha de El Hierro, nas Canárias:
1 - O vulcão submarino da Restinga, nos mares da ilha de El Hierro, tem sido noticia em todo o mundo(menos em terras açorianas, julgo eu…)! Aliás dos Açores deslocou-se apenas a vulcanóloga Prof.ª Doutora Zilda França. A permanência da nossa Colega nas Canárias foi extremamente representativa e útil. As autoridades locais cientificas e políticas acolheram-na com muito respeito e amizade. Os colegas, de diversas origens, foram cooperantes e incansáveis. Por esse motivo temos mantido relatos diários internéticos junto de milhares (sim- milhares) de peritos e de curiosos assim constituindo um forum entusiasmante.
2 - Entretando, com o passar das semanas manteve-se o "comportamento" inusual do novo vulcão do tipo serretiano (ora se afastava ora se aproximava,ora se desenvolvia sem tremor vulcânico,ora emitia largos volumes de produtos vulcânicos, finíssimos, em silêncio sísmico, ora emitia ténues vapores ora se assinalava por borbulhantes cachões de espuma e de vapores pestilentos. Registaram-se milhares de micro a macroeventos sísmicos. Entretanto surgiram os profetas da desgraça. É sempre assim- no Faial,em Maio de 1958, durante os Capelinhos, também foi assim: segundo um jornalista lisboeta, a ilha teria a forma de cálice pelo que as sismotremuras diárias iriam fracturar o pé do cálice e depois…. pum, ficávamos todos afogados (e eu com 17 anos!). Muitos fugiram para o Pico e S. Jorge. Regressaram no fim do mês, com a chegada de Tazieff, tido como um "deus" da vulcanologia (que ajudou o Governador Freitas Pimentel e o Eng.º Frederico Machado a consolidarem a calma e a sensatez) . No caso de El Hierro os profetas da desgraça brotaram outra "previsão",ou seja, papaguearam os medos do cientista inglês Simon Day, vaticinaram que os milhares de tremores telúricos, uns vulcânicos outros tectónicos, teriam abalado a ilha,"enfraquecendo-a" de tal modo que uma grande fatia de El Hierro iria deslizar para o oceano, abruptamente, assim gerando uma gigantesca vaga (um tsunami). O vagalhão iria arrasar imensas extensões costeiras, na África, no Brasil, nos EUA, na Europa… Enfim, um cataclismo inesquecível! Os promotores repetiam o já anunciado para a ilha de La Palma por Simon Day. Adios tapas e tasquitas!
3 - Mega-abatimentos ou colapsos em estruturas vulcânicas são desde há muito conhecidos: na vertente sul da montanha do Pico, no segmento sul do vulcão das Furnas (em estudo), em diversas ilhas das Canárias ( sendo os de La Palma aparatosamente divulgados por Simom Day; Tenerife…) Réunion, Cabo Verde, Hawaii, Japão, etc. Pouco se sabe sobre o mecanismo desses colapsos, ou seja, se foram bruscos, se foram lentos e do tipo "creep", se foram excitados por terramotos,se foram accionados por excesso de água,se existiram condicionantes topográficas,se resultaram de incoesões gravíticas, etc. A realidade é que nenhum desses megacolapsos com megatsunamis ocorreram em tempos históricos. Não se duvida da respectiva existência mas as causas e as consequências variam de região para região. Essa é a verdade - os megatsunamis transoceânicos, ligados a colapsos de territórios vulcânicos, não se encontram bem sustentabilizados, quer documentalmente quer sedimentologicamente. Ou seja, num determinado continente não se conhecem, sem dúvidas, depósitos transportados por megatsunamis gerados em geografia oposta. Assim os terríveis deslizamentos das Canárias, com repercussões nos Açores, devem ser tomados como suposições para datas de impossível adivinhanço.
29 DEZ 2011 V-H Forjaz
SOBRE O NOBEL DA FÍSICA DE 2011
VEM AÍ O FIM DO MUNDO?
Declarações que prestei à jornalista Christiana Alves Martins (CAM) do Expresso e que saíram na revista Única de ontem, num artigo sobre o "fim do mundo" juntamente com declarações de outros colegas:
CAM- Porque as pessoas têm a necessidade de fixar uma data para o chamado fim do mundo? Que mecanismo psicológico justifica isto? Para que surjam estas teses, as teorias científicas são adulteradas?
CF- O receio do fim do mundo sempre existiu e provavelmente sempre existirá, em muitos povos e culturas. Veja o fim do mundo no ano 1000 e, embora em menor escala, o fim do mundo em 2000 (o "bug do milénio" era uma manifestação na informática desses receios). Na nossa cultura cristã e católico, o mito do Apocalipse está presente. Deve haver razões psicológicas, sociológicas e religiosas, mas não sei aprofundar o assunto. Sim, as teorias científicas são, por vezes, adulteradas para alimentar mitos do fim do mundo. Chama-se a isso pseudo-ciência, criar uma ciência fictícis que sirva os nossos preconceitos ou propósitos.
À escala cósmica, tanto quanto sabemos, o nosso Universo é semi-eterno, isto é, teve um início, há 13,7 mil milhões de anos, mas não terá fim. A expansão, começada com o Big Bang, será eterna, ficando o Universo cada vez mais frio e com cada vez maiores distâncias entre as galáxias. Pode haver o fim da Terra sem ser o fim do mundo. Decerto que daqui a cerca de cinco mil milhões de anos, o Sol chegará ao fim do seu ciclo de vida (vai a meio) e ficará uma gigante vermelha antes de se tornar uma anã branca. Nessa altura, o raio do Sol chegará perto da órbita da Terra e, se ainda aqui estivermos (a história humana só tem cerca de um milhão de anos, nada comparado com os cinco mil milhões de vida do Sol) estaremos "fritos". Já houve quuem propusesse soluções de engenharia para evitar o apocalipse solar: lançamento de bombas de hidrogénio lançadas para o Sol para o reavivar ou reposicionamento da "nave espacial" Terra numa órbita mais longínqua do astro-rei (ambas soluções temporárias, claro). Falta muito tempo e não há que estar preocupado.
Claro que no Sol há colisões de cometas e de asteróides (agora menos do que no princípio do sistema solar). Não estamos livres de que haja uma dessas colisões, pese embora o efeito defensivo da atmosfera. Há programas em curso para observar asteróides próximos e há também quem defenda o desenvolvimento de tecnologias para aniquilar asteróides perigosos. São, por vezes, tão pequenos que só se vêem muito perto, mas têm passado bem ao lado. Julgo que é bem mais fácil ganhar o Euromilhões do que apanhar com um asteróide grande...
Pode haver outras catástrofes da Terra, mas à escala planetária, talvez a mais plausível parece felizmente afastada: o "inverno nuclear" causado por uma denotação maciça de bombas de hidrogénio (processo de fusão semelhantes aos que ocorrem no Sol). A guerra fria jaz, felizmente, morta e enterrada.
CAM- É possível, do ponto de vista astronómico que civilizações antigas, como a maia, sem o devido instrumental, possam fazer cálculos elaborados que prevejam acontecimentos com antecedência de tantos anos? Tinham acesso a instrumentos matemáticos suficientes para assegurar algum rigor nos resultados?
CF- A matemática e astronomia dos maias tinham algum grau de desenvolvimento, mas nada comparado com a matemática e astronomia de que dispomos hoje. E a matemática e astronomia de que dispomos hoje não nos fazem recear nenhuma catástrofe planetária previsível. Acho de resto que essa história do calendário maia, que prevê o "fim do mundo" para daqui a um ano (21/12/12) está muito efabulada. São interpretações mais do que discutíveis sobre um ciclo longo que chega ao fim do calendário maia. É um pouco parecido com o "fim do mundo" associado aos finais do milénio: os anos 1000 e 2000 não vão voltar a acontecer, mas foram datas normalíssimas, como outras quaisquer do calendário.
CAM- Das seguintes teses, quais as que, do seu conhecimento e do ponto de vista científico, têm alguma credibilidade? Profecia hindu (2012 como fim de um ciclo, com base em ciclos), profecia maia (idem, com base em um calendário específico), choque com um asteróide (ou um cometa ou o planeta Nibiru ou X), inversão dos pólos da Terra (guinada magnética que provocaria sismos violentos), explosão de raios gama (causaria danos no núcleo das células, desenvolvendo cancros), índios hopi (fim de um ciclo), código da Bíblia (o sol transformará o planeta num mar de chamas), tempestades solares (erupções do sol atingirão o seu auge em 2012), profecias de Nostradamus (cataclismos no solstício de inverno).
CF- Não têm credibilidade nem a profecia hindu, nem a maia. Choque planetário é possível (foi assim que a Lua se formou no início do sistema solar) mas é muito pouco provável que o asteróide ou cometa tenha tamanho suficiente para ser perigoso para nós. O planeta Nibiru não existe: é uma invenção de algum visionário, que aproveitou uma palavra da tradição babilónica. Quanto à inversão da polaridade magnética da Terra é possível (aconteceu no passado, ao longo da história geológica, mas não é previsível: a série parece aleatória). O código da Bíblia não faz sentido nenhum, é um disparate completo. As profecias de Nostradamus também. Assim como as profecias de S. Malaquias, que prevêem que o actual será o penúltimo papa. Quanto às tempestades solares, o Sol tem, de facto, ciclos, que se podem medir pelo número de manchas solares (a Universidade de Coimbra observa diariamente o Sol desde 1925, fotografando a face manchada). O próximo máximo será em 2013, e tudo indica (a avaliar pelas manchas observadas até agora) que não vai ser tão intenso como o anterior. Ciclos solares sempre houve e sempre haverá enquanto o Sol estiver "vivo"...
CAM- Mas confirma-se o agudizar de explosões solares? Com que consequências para a vida das pessoas?
CF- Não se confirma nenhum agudizar de explosões. A actividade solar está registada e os registos estão acessíveis a todos. As oscilações do número de manchas solares são normais.
CAM- De forma a explicar aos leigos, qual é a interferência dos fenómenos astrofísicos na vida quotidiana das populações?
CF - Se houver - lagarto, lagarto - queda de um grande asteróide ou cometa poderá haver alterações na evolução biológica. Embora seja discutível, pensa-se que hoje existimos graças à grande colisão que, caindo sobre o Iucatão (México), eliminou os dinossauros, permitindo a ascensão dos mamíferos. As tempestades solares podem ter efeitos nas comunicações à superfície da Terra, o fenómeno é conhecido, mas não é considerado grave. Se houver alteração do campo magnético terrestre (causado por correntes no interior da Terra, de comportamento imprevisível) poderá haver exposição a tempestades magnéticas, isto é, partículas carregadas vindas do Sol poderão não ser deflectidas, como convém, pelo campo magnético terrestre.
CAM- É verdade que no mês de Julho de 2006, telescópios e supercomputadores revelaram que o nosso sistema solar se encontra no cruzamento entre duas galáxias e se alinhará com o centro da Via Láctea em 2012, libertando um fluxo máximo de energia? As comunicações podem ser então interrompidas? O alinhamento galáctico é outro nome para o mesmo fenómenos? Quando aconteceu pela última vez?
CF- Não é verdade, isso são fantasias que não resistem ao menor espírito crítico. A expressão "libertando um fluxo máximo de energia" não se percebe sequer nesse contexto.
CAM- Se as previsões são possíveis em Física, porque não se previu o grande tsunami no último grande terramoto no Japão?
CF - Não são possíveis previsões de terramotos no estado actual da sismologia. Pode ser que um dia venha a ser possível mas hoje não é. Portanto está ser um enorme erro o julgamento de sismologistas italianos por não terem previsto o sismo de l'Aquila.
CAM- Tem conhecimento de que, desde 2008, existe um «cofre do fim do mundo», com sementes de valor alimentício?
CF- Não, mas não me admira nada, há tanta coisa engraçada. O nome é engraçado. A iniciativa é engraçada. Não sei como é que se vai comer depois do fim do mundo...
CAM- Uma última pergunta; conhece o Movimento de Extinção Voluntária (VEHMT), que prevê o fim da reprodução humana?
CF- Não conheço, mas comento com uma frase de Einstein. O grande sábio disse um dia: "Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana. E sobre a primeira não tenho a certeza."
O Sapatinho
Post recebido do Prof. António Mouzinho (a sua novela pedagógica continua para o ano):
Quando se ultrapassa os 50 anos, as pequenas coisas começam a ser devidamente apreciadas. Após os 60, não são só apreciadas: são consideradas de requintado gosto!
O ministério da Educação tem destas surpresas: depois de me deixar ser professor, após o estágio, passou-me, nos finais de 80, a funcionário público (o serviço público, inicialmente, fazia parte da função; não era a função que fazia parte do serviço…); logo depois, após de anos de mar, passou-me a congelado, algures pelo 8.º escalão; na fase de descongelação, apontou-me, vertiginoso e triunfante, ao 10.º escalão, e então a titular — para logo deixar de o ser (entradas de barão; saídas de peão…) — rapou-me um número no escalão, prometendo-me a subida ao 10.º mediante avaliações, e… depois de tudo isso, congelou-me de novo no 9.º; mas…
(o ministério da Educação, dizia eu, tem destas surpresas…)
… é senão quando, a 23 de Dezembro, no Diário da República, mesmo a tempo do sapatinho, surge o Despacho 17169/2011 de 12 de Dezembro!
Após quase 11 anos de vigência de um longo disparate (posto por escrito, na sequência do Decreto-Lei n.º 6/2001 de 18 de Janeiro) que dá pelo nome de «Currículo Nacional do Ensino Básico—Competências Essenciais», assisto — deliciado — à revogação!
Para os mais desatentos, uma passagem escolhida a esmo (é dum capítulo referente ao «Estudo do Meio»; aparece a cerca de 1/3 do documento, pelo que poderia igualmente intitular-se «Estudo do Terço»): «[a] progressão [educativa dos alunos] tem origem no subjectivo (o experiencialmente vivido) e visa o objectivo (o socialmente partilhado) e parte do mais global e indiferenciado para o particular e específico atendendo às múltiplas componentes que integram o Meio, não para desfazer a sua unidade, mas para melhor a compreender e explicar".
Caramba!
Mais adiante (vou-me já embora!, mas não resisto a só-mais-esta): «Neste sentido, o currículo de EM [Estudo do Meio] deve ser gerido de forma aberta e flexível. Não se trata de pôr de lado o programa de EM, mas de o olhar na perspectiva do desenvolvimento de competências a adquirir pelos alunos. Embora o programa se apresente por blocos de conteúdos segundo uma ordem, o próprio documento sugere que "os professores deverão recriar o programa, de modo a atender aos diversificados pontos de partida e ritmos de aprendizagem dos alunos, aos seus interesses e necessidades e às características do meio" (DEB, 1998:108), podendo "alterar a ordem dos conteúdos, associá-los a diferentes formas, variar o seu grau de aprofundamento ou mesmo acrescentar outros" (ibid).
Estas considerações remetem para abordagens centradas na definição de problemas de interesse pessoal, social e local. Ora, entende-se que esta abertura não deve ser posta em causa pela organização avulsa de conteúdos em blocos compartimentados.»
Em Roma sê Romano. Em terra de Lapões, centra-os na Lapónia. Não lhes fales de mais nada, porque tudo o resto é abstrato. Contextualiza, contextualiza ou morre!
«Currículo bla, bla, bla, bla, blásico» — repousa em paz!
P.S.: aprendi no livrinho a diferença entre exercício e problema. É assim: «Ao contrário de um exercício – em que o aluno é sujeito passivo da aprendizagem, os saberes implicados se referem exclusivamente à utilização e ou reprodução de algo que se memorizou, os dados são os estritamente necessários e encontram-se explícitos no enunciado, admite uma única forma de resolução e uma solução, também, única –, um problema implica activamente o aluno por constituir um desafio sem resposta imediata e sem estratégias preestabelecidas.» Como sou professor de Desenho e Geometria Descritiva, dá-me um jeitaço.
Agora é que saio: António Mouzinho
RECEITA DE ANO NOVO
Poema de Carlos Drummond de Andrade, que nos foi enviado por Regina Gouveia:
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade
Feliz 2012 com ou sem bosão de Higgs
Post recebido da Prof.ª Regina Gouveia:
Os físicos acreditam que o tímido bosão de Higgs se revelará em 2012
O "ultra-tímido" bosão de Higgs pode, finalmente, ter-se mostrado no LHC. Ambos os detectores principais, ATLAS e CMS, descobriram indícios de um Higgs leve. A ser verdade, o Modelo Padrão de Partículas estaria completo.
Ainda mais emocionante, um Higgs com uma massa perto de 125 gigaelectrõesvolt/c^2 seria também o início de um caminho num terreno inexplorado. Ser tão leve implicaria pelo menos um novo tipo de partícula para estabilizá-lo. "É muito emocionante", afirmou o porta-voz do CMS, Guido Tonelli. "Este poderá ser o primeiro anel de uma cadeia de descobertas."
Sendo a principal teoria do modo como partículas interagem por meio de forças, o Modelo Padrão tem sido um sucesso espectacular desde que foi proposto na década de 1960. Mas ele só funciona no pressuposto de que o bosão de Higgs existe realmente. A partícula é o cartão de visitas de uma entidade invisível chamado campo de Higgs, que conferirá a massa às partículas. O problema é a impossibilidade do Modelo Padrão prever a massa do Higgs. Os físicos começaram, há vários anos, a sua caça em aceleradores de partículas na sua versão menos massiva. Experiências têm vindo a descartá-la num intervalo de massas, com excepção de uma janela estreita entre os 115 e 141 GeV/c^2.
Agora (…) os físicos do Large Hadron Collider, do CERN, perto de Genève, Suíça, Tonelli e Fabiola Gianotti, responsável do detector ATLAS, apresentaram, separadamente, os resultados de mais de 300 mil milhões de colisões de partículas de alta velocidade efectuadas no ano passado. "Esta é a primeira vez que nós estamos realmente a explorar a sua massa em toda a região com a sensibilidade certa, o que permitirá que se há algo lá então começaremos a ver alguma coisa", diz Tonelli
Ainda a propósito do bosão de Higgs Carlos Fiolhais disse respondendo ao filósofo Fernando Belo, que lhe tinha perguntado:"Uma tribo de milhares de físicos, suspensa dum acontecimento anunciado numa máquina de 27 km de percurso. Se se provar que o famoso bosão de Higgs existe (embora sem 'aparecer'), a pergunta ingénua que faz o leigo é: e depois, a Física fica completa, acaba?"
"Não, não está de maneira nenhuma à vista o fim da Física, quer apareça, quer não apareça a partícula de Higgs. Não sendo especialista na área, tenho defendido o fantástico empreendimento que a numerosa "tribo" de físicos tem realizado no CERN, entre a Suíça e a França. Trata-se de um exercício colectivo de física fundamental, da união internacional de esforços para verificar se uma dada peça prevista pelos físicos teóricos para compreender a existência de massa de partículas existe ou não no nosso Universo. Ninguém melhor que o Nobel da Física Steven Weinberg expressou melhor a nossa necessidade da Física fundamental: "O esforço para compreender o Universo é uma das poucas coisas que eleva a vida humana acima da comédia e lhe confere um pouco da dignidade da tragédia.” Não penso que tenha sido bom para a ciência a não-notícia que foi, há dias, o anúncio em Genebra da não-descoberta (até agora) do Higgs. Esta partícula só merecerá uma conferência de imprensa quando, de facto, for notícia. Pode ser que o venha a ser. Ou pode ser - surpresa, surpresa! - que não. A Física avançará tanto num caso como noutro."A existência do bosão de Higgs foi postulada na década de 1960 pelo físico britânico Peter Higgs. Muito antes dele, Isaac Newton descobrira que a gravidade é a força de atracção que existe entre todas as partículas com massa e Albert Einstein demonstrara a equivalência entre massa e energia, mas nada disso serviu para responder a duas questões: o que é, afinal, a massa, e de onde é que ela provém?
Enquanto esta partícula subatómica não for detectada, os cientistas não conseguirão explicar a existência da própria matéria massiva, à luz do actual modelo das partículas e das forças que a unem - o Modelo Padrão. Por outras palavras, sem o bosão de Higgs fica mais difícil explicar porque é que existem coisas no Universo.
Termino com um poema meu dedicado ao bosão de Higgs e o desejo de que 2012, revelando-o ou não, seja para todos o melhor possível:
Existirá desde o primeiro momento
ainda sem espaço, ainda sem tempo,
sem quando, nem onde,
em que o tudo era simplesmente o nada?
Afinal, a massa de onde é que provém?
É este, em essência, o segredo que, cioso, esconde,
mau grado o empenho de toda a ciência.
Cioso, acanhado, quiçá temeroso de um qualquer depois,
ainda mais terrível do que eme cê dois
na bomba de Hiroshima
O bosão de Higgs existirá ou não?
Eis a questão.
Regina Gouveia, Ano Novo de 2011
Em 2012:É a imaginação que governa o gênero humano!
Caminante, no hay camino, se hace camino al andar !
(Poeta espanhol Antonio Machado)
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
Química das coisas boas: pimentos de Padrón
Os pimentos de Padrón (Capsicum annuum L.) pertencem à grande família dos pimentos, malaguetas e piri-piris originária na América do Sul. Na Galiza, estes pimentos são colhidos ainda imaturos e não são, em geral, picantes. Para além do estado de maturação, o seu sabor característico resulta provavelmente do clima, selecção das sementes e métodos de cultivo. De facto, invernos amenos, verões temperados e chuva abundante parecem dar origem a um menor conteúdo em hidratos de carbono e maior percentagem de amido em relação às variedades da América do Sul. Por outro lado, o tratamento cuidadoso e a colheita precoce evitam o stress vegetal responsável pela produção de capsaicina (o composto responsável pelo sabor picante).
Os pementos de Padrón, uns pican e outros non, dizem na Galiza. Na minha opinião, só os galegos poderiam ter inventado uma coisa tão improvável quanto agradável: pimentos picantes que só picam às vezes!
Com mais de noventa por cento de água e uma quantidade relativamente baixa de lípidos e hidratos de carbono, a presença dos ácidos málico, oxálico e quínico manifesta-se no subtil sabor ligeiramente amargo. Para além disso, embora a capsaicina presente quase não seja detectada na boca, a pequena quantidade disponível poderá ainda (especulo eu) interagir com os receptores celulares dopamínicos, contribuindo para aumentar as sensações agradáveis. Finalmente, o azeite usado na sua fritura, o sal grosso e o odor característico, resultante de ficarem ligeiramente queimados, completam o prazer.
Sabe-se hoje que o sal em excesso e alguns compostos presentes nos alimentos queimados aumentam o risco de cancro entre outras doenças. Existem dúvidas sobre o efeito benéfico ou nefasto da capsaicina. Mas todos os estudos concordam que os pequenos prazeres que diminuem o stress, contribuem para uma melhor saúde.
Assim, não tenho dúvidas de que um final de tarde de verão ou início de outono a petiscar uns pimentos e beber uma cerveja na companhia de amigos é um pequeno prazer com química! E, estando nós em pleno inverno (embora atípico), a recordação desses momentos é reconfortante.
Referência:
Chemical composition of Padron peppers (Capsicum annuum L.) grown in Galicia (N.W. Spain), Lopez-Hernandez J.; Oruna-Concha M.J.; Simal-Lozano J.; Vazquez-Blanco M.E.; Gonzalez-Castro M.J.Food Chemistry 57 (1996) 557-559.
ESTREIA: AQUECIMENTO ESCLARECIDO
Delegação masculina dos Cientistas de Pé abrilhanta apresentação do livro "Darwin aos tiros e outras histórias de ciência"
HÁ HIGGS? OU NÃO?
Minha crónica no Sol de hoje:
O ano de 2011 chega ao fim sem ter sido detectada na maior experiência do mundo, no CERN, na Suíça, a famosa partícula de Higgs, a que alguns pomposamente chamam “partícula de Deus”. Resta a esperança de que, em 2012, se assista à descoberta dessa partícula. Mas ela poderá também não aparecer, sendo nesse caso necessário explicar por que é que não aparece.
A partícula de Higgs é prevista pelo chamado “modelo padrão” de Física de Partículas, o melhor modelo teórico actual. É necessária para explicar a massa das partículas fundamentais, segundo um mecanismo proposto nos anos 60 pelo físico teórico escocês Peter Higgs e outros. Se o mecanismo for comprovado é bem provável que este físico venha a receber o Prémio Nobel de Física, em conjunto com o director da numerosa equipa experimental que o consiga comprovar.
Steven Weinberg e Sheldon Glashow, dois Prémios Nobel da Física por terem proposto teorias de unificação de forças confirmadas no CERN, estão cautelosamente optimistas, o segundo mais do que o primeiro. Declarou Weinberg à revista Nature que “existem outras possibilidades”, já que o mecanismo de Higgs tem alternativas, ao passo que Glashow comentou que o Higgs ou se “encontra nos próximos dois anos ou então não existe”.
Dois gigantescos detectores no CERN – o ATLAS e o CMS – têm estado a recolher dados provenientes de colisões de protões com protões a velocidades próximas da da luz. Num anúncio público a 13 de Dezembro, representantes dessas equipas não puderam mais do que afirmar que a massa do Higgs, dando de barato que ele existe, se situa entre 116 e 130 Gigaelectrõesvolt (GeV), uma unidade de energia. Um excesso de “sinal” à volta de 125 GeV causou algum alvoroço na comunidade dos físicos, mas poder-se-á tratar de mero “ruído” estatístico. Não é ainda uma descoberta da almejada partícula pois pode bem ser uma obra do acaso. A acumulação de mais resultados permitirá uma estatística melhor. A análise de dados não é fácil uma vez que o hipotético Higgs deve decair imediatamente, sendo necessário derivar a sua existência a partir de um chuveiro de partículas emergentes. Já alguém comparou a experiência do CERN à colisão muito violenta de um relógio suíço com outro, sendo o trabalho dos físicos o de tentar adivinhar um dos mecanismos do relógio a partir do exame de uma multidão de diminutas peças espalhadas por tudo quanto é sítio.
Há Higgs ou não? Acreditar ou não na “partícula de Deus” não é uma questão de fé. A experiência é que vai decidir – ou sim ou ou sopas – provavelmente até ao fim de 2012, quando a máquina terá de ser desligada para revisão técnica. Se até os maiores nomes da Física são incapazes de dar certezas nesta matéria, não me arrisco a fazer prognósticos. Só no fim do jogo.
tcarlos@uc.pt
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
A história química de um cachalote
O título deste texto foi sugerido pelo meu filho mais pequeno (autor do desenho aqui ao lado), grande admirador dos animais marinhos, após ter visto uns slides sobre a química no Moby Dick de Herman Melville.
No século XIX, os cachalotes eram vistos como animais ferozes e maus. São descritos dessa forma no Moby Dick de Melville e nas Vinte mil léguas submarinas de Júlio Verne. Talvez por isso ninguém, nessa altura, se importasse com a sua sorte. Sabemos hoje que essa ideia era errada, embora eles continuem a ser para nós animais misteriosos.
No Moby Dick a palavra química aparece apenas uma vez. E, ainda assim, no sentido figurado da atracção entre as pessoas. No entanto, este livro tem muita química para além de nos trazer a memória de um mundo que a química ajudou a mudar. De facto, no século XIX, as velas mais finas, os lubrificantes das máquinas mais delicadas, os perfumes mais caros, o vestuário feminino mais elegantes e muitos dos objectos mais requintados, deviam a sua existência à caça às baleias. Hoje em dia todos esses produtos, ou se tornaram desnecessários, ou estão fora de moda, ou têm substitutos que foram desenvolvidos pelos químicos.
Na cabeça do cachalote existe um óleo denominado espermacete que se associava, na altura, ao seu sistema reprodutor. Sabemos hoje que este óleo é uma parte do sistema de flutuação que lhes permite mergulhar até profundidades enormes. Esse óleo tinha, no século XIX, aplicação na produção de velas finas e lubrificantes delicados, assim como todas as gorduras das baleias eram aproveitadas para os mais variados fins. Hoje em dia as velas são apenas uma recordação, ou um objecto de decoração. E todos os usos dos óleos das baleias foram substituídos por produtos naturais ou sintéticos com origem vegetal ou derivados do petróleo.
Nos estômagos das baleias podia encontrar-se uma massa cinzenta e mal cheirosa que, após contacto com o ar e a luz, libertava um odor agradável. Este sólido era chamado âmbar cinzento e foi muito importante para a industria dos perfumes como fixante dos aromas. Hoje em dia existem substitutos sintéticos, isto é produzidos em laboratório ou de forma industrial.
Os ossos e os dentes das várias espécies de baleias eram usados em muitos produtos de uso comum ou de decoração. Em particular, os dentes do cachalote eram usados para fazer peças de xadrez, teclas de piano e bolas de bilhar. Essas aplicações hoje em dia foram completamente substituídas pelo plástico. De forma idêntica, os “ossos da boca” de algumas baleias, muito duros e flexíveis, eram usados para fazer corpetes, uma peça de vestuário feminino hoje completamente fora de moda.
Vemos assim, com a história química de um cachalote, como a química nos permite um mundo melhor ao mesmo tempo que salvamos as baleias.
150 ANOS DA DEFINIÇÃO DE CÉLULA - A EFEMÉRIDE QUE FICOU POR COMEMORAR
No ano de 2011 ocorreu uma efeméride que passou totalmente desapercebida a quase todos, incluindo a maior parte da comunidade científica: os 150 anos da definição de célula feita pelo biólogo alemão Max Schultze (1825 – 1874). O reparo surgiu de uma carta enviada pelo biólogo alemão U. Kutschera (do Instituto de Biologia da Universidade de Kassel, Alemanha) ao editor da revista Nature, publicada a 22 de Dezembro de 2011.
Max Schultze é conhecido dos neurocientistas pela sua identificação e caracterização das terminações nervosas associadas aos órgãos sensoriais, e o seu trabalho minucioso sobre as diferentes células componentes da retina é pioneiro.
E é conhecido dos hematologistas pela sua contribuição definitiva para a identificação das plaquetas sanguíneas. O seu papel como microscopista é incontornável, tendo sido fundador da revista Archiv für Mikroskopische Anatomie, em 1865 (foi seu director até ao ano da sua morte).
Contudo, é uma personagem quase esquecida na história da biologia. Uma pesquisa breve na internet permite verificar que Schultze foi pioneiro da observação intracelular, anatomista e histologista de excelência, embora a sua contribuição paradigmática para a Teoria Celular seja, de facto, pouco referida.
Ao comparar observações microscópicas da composição intracelular (protoplasmática) de tecidos musculares de animais, com as de organismos unicelulares como os protozoários, Schultze entendeu que a definição de célula, estrutura baptizada, em 1665, por Robert Hooke (personagem marcante da revolução científica do século XVII) a partir da palavra latina cella (pequena divisão ou quarto de paredes rígidas), estava muito incompleta.
A célula, unidade da vida tal como tinha sido postulado na Teoria Celular de Schwann e Schleiden, em 1839, tinha de ser definida de forma mais completa e universal. Não podia reduzir-se à sua membrana ou parede exterior, tinha que ganhar outra dimensão com a sua natureza interior. Tinha de incluir os componentes intracelulares observados por Schultze como comuns a células de tecidos animais e a organismos unicelulares. Ele notou que havia uma história comum a todas as células, ou melhor a todos os organismos, e que essa história estava inscrita no seio da célula.
O seu trabalho contribuiu, assim e decididamente, para dar novos horizontes à Teoria Celular. A publicação em 1861 do seu artigo On muscle-particles and what we should call a cell (Archiv für Anatomie, Physiologie und wissenschaftliche Medicin, 1861, 1–27) pode ser considerada a pedra basilar da Biologia e Fisiologia Celular. Neste artigo, o autor discute as suas observações das “partículas” componentes das células musculares e discute o que é que pode ou não ser designado por célula.
Apesar de ter caído em esquecimento, Schultze causou, na sua época, uma ruptura paradigmática com a nova definição de célul, tendo aberto novos horizontes conceptuais para o entendimento do conceito de célula e, muito mais significativo, o conceito da evolução da célula, incluindo a ideia de uma célula ancestral comum a todos os organismos vivos. Este aspecto ganha outra relevância se atentarmos a que “A Origem das Espécies” de Charles Darwin tinha sido publicada cerca de três anos antes, em 1858. Na Biologia tudo estava em revolução!
Os avanços na instrumentação microscópica não terão sido alheios à nova definição. A célula é a mesma para Schultze e para Hooke. Mas a tecnologia marca a diferença na capacidade de observação, e, portanto, no avanço do conhecimento da natureza celular.
Ainda hoje é assim. Aliás, é assim desde que a ciência se tornou moderna pela utilização de instrumentos nas observações. E isto ocorreu não pela observação do muito pequeno com a ajuda do microscópico, mas sim do muito longínquo com a ajuda do telescópio, a começar com a luneta de Galileu Galilei, no mês de Março de 1610.
António Piedade
Ciência na Imprensa Regional
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
Revogação do Currículo Nacional do Ensino Básico
Este extenso documento, intitulado Currículo Nacional do Ensino Básico: Competências Essenciais, apresentava uma nova organização do ensino a partir de uma multiplicidade de competências gerais, tranversais e específicas. Apresentava também as experiências de aprendizagem que deveriam ser proporcionadas aos alunos para eles construírem essas competências.
O documento pode ser consultado aqui, mas reproduzimos, de seguida, uma passagem em que se apresentam as razões que sustêm tal decisão.
"O documento (...) continha uma série de insuficiências que na altura foram debatidas, mas não ultrapassadas, e que, ao longo dos anos, se vieram a revelar questionáveis ou mesmo prejudiciais na orientação do ensino. Por um lado, o documento não é suficientemente claro nas recomendações que insere. Muitas das ideias nele defendidas são demasiado ambíguas para possibilitar uma orientação clara da aprendizagem. A própria extensão do texto, as repetições de ideias e a mistura de orientações gerais com determinações dispersas tornaram -no num documento curricular pouco útil. Por outro lado, o documento insere uma série de recomendações pedagógicas que se vieram a revelar prejudiciais.
Em primeiro lugar, erigindo a categoria de «competências» como orientadora de todo o ensino, menorizou o papel do conhecimento e da transmissão de conhecimentos, que é essencial a todo o ensino. Em segundo lugar, desprezou a importância da aquisição de informação, do desenvolvimento de automatismos e da memorização. Em terceiro lugar, substituiu objectivos claros, precisos e mensuráveis por objectivos aparentemente generosos, mas vagos e difíceis, quando não impossíveis de aferir."
"A vitória dos homens sem alma"
Referência completa: Julien, C. (1990). Prefácio in O triunfo das desigualdades. Lisboa: Caminho 9-15."Olhem bem à vossa volta. A primeira vista de olhos vai revelar-lhes um povo feliz. Feliz porque livre. Perfeitamente livre de escolher, nas páginas publicitárias dos seus jornais, entre o prestígio de várias marcas de sumptuosos automóveis franceses e estrangeiros; livre de dar a sua preferência quer aos jornais impressos pelo Sr. Hersant quer ao canal de televisão do mesmo; livre de hesitar diante da infinda diversidade dos jogos dinheiro e do subtil talento dos folhetins importados que produzem no pequeno ecrã uma nota de sofisticado requinte; livre de participar nos «núcleos de decisão» das firmas privadas e de influenciar as opções estratégicas das empresas nacionalizadas; livre de mandar os filhos para uma escola pública ou para a instituição privada financiada pelo Estado (…). Livre sobretudo de escolher os seus representantes à Assembleia Nacional ou ao Parlamento Europeu, sem verdadeiramente saber qual a visão, qual a aspiração suprema deles, quais os objectivos pelos quais estão determinados a bater-se.
Olhem bem à vossa volta, e respondam, quantos dos nossos contemporâneos estão prontos a aceitar este retrato odiosamente sarcástico de uma sociedade que, sem indignação, se acomoda a crescentes desigualdades, se habitua à injustiça quotidiana, que parece ter perdido toda a faculdade de revolta? Apesar de todas as suas imperfeições a democracia não sucumbirá por causa dos golpes de uma qualquer subversão interna, não será esmagada pelos blindados de um qualquer Império do Mal. Não, a democracia está a esboroar-se, declina, vai definhando ao resignar-se ao seu contrário: o dualismo social e cultural.
Um dualismo social que é a principal alavanca, o meio mais eficaz de acção que os neoliberais poderiam ter achado (…) Dualismo cultural que é o inelutável resgate a pagar por um pensamento desvitalizado em sociedades em que os grandes meios de comunicação passaram para a dependência dos comerciantes (…). Comerciantes esses a quem o Conselho Superior do Audiovisual tenta impor, nos programas televisivos, uma determinada «quota» de obras francesas ou europeias. Não seria sobretudo necessário proibir-lhes que ultrapassassem uma certa «quota» de patetice, de imbecilidade, de baixeza (…)? E, para de salvação pública, retirar-lhes um poder de que eles fazem tão mau uso de cada vez que não o põem ao serviço das mais altas criações do espírito humano a fim de as oferecerem, qual magnifico presente, a toda uma multidão que não tem o privilégio de, por outros meios, lhes descobrir os esplendores?
Existe uma aliança, por vezes incómoda mas diabolicamente eficaz, essencialmente baseada na conivência do dinheiro com os grandes cargos estatais, que associa o poder político com «o poder bem mais perigoso dos comerciantes» e com o seu «poderoso e venenoso cúmplice […]: o poder dos “mass-media”, e que tem, no fim de contas, a finalidade de preparar «a vitória dos homens sem alma». Estas fórmulas, tão simples, tão fortes, fomo-las buscar a Ariane Mnouchkine, ao seu magnífico «apelo à resistência» por ela lançado aos «cientistas» e aos «artistas»."
Claude Julien
TDT ou... TNT!
PREVISÕES PARA 2012 E 2015
Minha crónica no Público de hoje (na imagem, o asteróide 433 Eros):
A astrologia não está em crise. Esta é a altura em que os astrólogos miram as suas bolas de cristal, ou lançam as suas cartas, ou olham para as folhas do chá, para anteverem o que vai suceder no próximo ano. São muitos os que disputam o prémio da adivinhação: por exemplo, segundo a revista Focus (28/12/2012), a astróloga Cristina Candeias, conhecida dos espectadores da RTP1 pela sua presença no programa Praça da Alegria, prevê que vão ocorrer “falências de algumas empresas e um aumento da taxa de desemprego”. Além disso, “a grande asfixia em que nos encontramos neste momento levará a um exaspero das classes menos favorecidas e, consequentemente, a um aumento da criminalidade”. Adianta ainda: “Infelizmente, pelas análises astrológicas assumidas por mim, esta triste realidade vai manter-se até Setembro de 2015. Só após esta data é que irá verificar-se um alívio das dificuldades do país, porque Saturno entrará em Sagitário, signo de fé, de novas filosofias de vida e de sorte”. Será difícil não dar razão à vidente quer quanto às falências e ao desemprego quer quanto ao exaspero e ao aumento da criminalidade. E também quanto ao alívio das dificuldades antes das legislativas de 2015 pois não é novidade nenhuma que todos os governos fazem tudo e mais alguma coisa para ganhar eleições. De Candeias vem pois a confirmação de más notícias para o curto e médio prazo. Enfatizo, porém, as boas notícias: segundo a moderna astrologia, sobreviveremos ao fim do mundo anunciado pelo ciclo longo do calendário maia para 20 de Dezembro de 2012, segundo uns, ou 23 de Dezembro do mesmo ano, segundo outros (não é fácil ler calendários maia).
Sem querer competir com a astróloga Candeias, nem com a taróloga Maya, que com certeza chegará ao mesmo resultado da sua colega lançando cartas, ou com o Prof. Karamba, que não terá dificuldade em ver algo semelhante no fundo de alguma chávena, atrevo-me a fazer algumas previsões para 2012 e 2015, que serão ainda mais certeiras do que as que fez a astróloga de serviço à nossa televisão pública (ainda ninguém reparou que se podia poupar mais ao erário público?).
Assim, prevejo que 2012 será um ano bissexto, como acontece normalmente de quatro em quatro anos. Existirá, portanto, o dia 29 de Fevereiro de 2012, que será a uma quarta-feira, facto que ajudará ao magno objectivo do ministro da Economia de aumentar a produtividade nacional. Conto trabalhar nesse dia.
Prevejo também que, na passagem do dia 5 para o dia 6 de Junho, vai ocorrer um trânsito de Vénus, isto é, uma passagem desse planeta por diante do disco solar. Eu vi como foi no ano de 2004 e posso garantir que neste século não voltará a haver mais nenhum evento desse tipo (o ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, também o garante no seu livro Trânsitos de Vénus, com Fernando Reis e Luís Tirapicos, Gradiva, 2004). Após 2012 só volta a haver em 11 de Dezembro de 2117, numa altura em que a actual crise já terá passado (quero ser optimista), embora possa haver outra diferente (diz o meu lado pessimista). O problema com a observação do trânsito de Vénus de 2012 é que ela exige uma viagem ao Pacífico, por exemplo ao Havai. Não que me importasse, mas não prevejo fazê-lo devido à crise. Uma pena, pois uma ocasião desta é absolutamente imperdível.
Prevejo ainda, se me é permitido acertar muito mais do que Cristina Candeias, que a 20 de Maio próximo haverá um eclipse do Sol anular, infelizmente de novo visível apenas no Pacífico. Também não posso ir por estar a trabalhar. A 13 de Novembro haverá outro eclipse do Sol, este no Pacífico Sul, na Austrália. Já é azar, passar-se tudo tão longe: até os astros nos são desfavoráveis. Lamento muito porque tive oportunidade de ver o eclipse solar total de 2005, em Miranda do Douro, que foi uma coisa digna de se ver. Em contrapartida, espero desfrutar do eclipse solar que será visível de Portugal continental em 20 de Março de 2015, antes da campanha eleitoral desse ano, segundo Candeias numa conjuntura económica mais favorável do que hoje. Oxalá ele seja auspicioso. Eu cá gosto de eclipses, ao contrário da astróloga da RTP, que explicou um dia, num eclipse tanto da ciência como da língua portuguesa, numa das emissões em que participou: “Não gosto muito dos eclipses, porque eles estão muito associados a cataclismas (sic) naturais. [...] Ainda mais com a lua cheia, que é aquilo que vai enchendo.” Fico sem saber como é que as nossas dificuldades vão ser aliviadas: por um lado Saturno entrará em Sagitário e, por outro lado, a Lua tapará o Sol.
E sobre o fim do mundo? A coisa mais próxima que se consegue arranjar é a passagem do asteróide 433 Eros a 31 de Janeiro perto da Terra. Perto, mas não muito: à confortável distância de 27 milhões de quilómetros. Foi nesse asteróide que pousou em 2001 uma sonda da NASA, a NEAR Shoemaker.
Votos de Bom Ano de 2012! E faço também votos antecipados de um 2015 bem melhor.
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
Os Livros Portugueses de Divulgação de Ciência em 2011
Crónica primeiramente publicada no "Diário de Coimbra".
O ano de 2011 foi generoso em livros de autores portugueses dedicados à divulgação de ciência. Digo até mais: 2011 deu à estampa alguns volumes que vão ficar (já estão) na galeria dos melhores livros de sempre de divulgação de ciência em língua portuguesa.
O Ano Internacional da Química, celebrado em 2011, foi pretexto para a preparação e lançamento de algumas dessas obras, dos quais dois são, na minha opinião incontornáveis. “Haja Luz!- Uma história da Química através de tudo”, de Jorge Calado, saiu com a chancela da Imprensa do Instituto Superior Técnico e fica como volume imprescindível e de referência sobre a história da Química na e da humanidade. Impressionante.
A celebração este ano do centenário do modelo de Rutherford para o átomo, trouxe à luz do dia um livro que esperou 150 anos para conhecer a sua tradução para o português e que, apesar de o texto original pertencer a autor estrangeiro, a sua publicação só foi possível pelo empenho e investigação de autores e investigadores portugueses, que enriqueceram o original quer com a qualidade da tradução, quer com as anotações que acrescentam informação preciosa para o leitor. É ele: “A História Química de uma Vela”, de Michael Faraday, com tradução e anotações de Sérgio Rodrigues e Maria Isabel Prata, com prefácio de Sebastião Formosinho. Publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, reúne algumas das lições populares de Faraday na Royal Institution de Londres que ficaram.
Acrescento a esta lista a "Breve História da Química", de Regina Gouveia, um texto sobre alguns marcos da história da química em forma de texto para teatro infantil, em poesia, na continuação da tradição iniciada por Rómulo de Carvalho/António Gedeão. Foi publicado pela editora 7 dias, 6 noites.
O ano de 2011 fica também marcado pela edição de um há muito aguardado “Dicionário de Geologia”, da responsabilidade de A.M. Galopim de Carvalho. Publicado pela editora Âncora, incluo este volume pois não há boa comunicação de ciência sem que possamos ter instrumentos que descodifiquem os conceitos, por vezes mais complicados e herméticos, que resultam da actividade científica e da comunicação dos resultados entre investigadores.
Neste contexto, mais precisamente em disciplinas derivadas da geologia como a geoquímica e a geofísica, destaco dois livros: “Estas máquinas chamadas Mundos”, de Eduardo Ivo Alves, sobre a formação dos planetas, publicado na Imprensa da Universidade de Coimbra; “A Aventura da Terra – Um planeta em evolução”, de vários autores, coordenado por Maria Amélia Martins-Loução, sobre a evolução geológica do planeta, mas também sobre a da vida que nele emergiu, publicado pela Esfera do Caos, e que compagina um conjunto de textos oriundos de um ciclo de conferências e de uma exposição com o mesmo título.
Enquanto o nosso planeta se aproxima à velocidade de cerca de 30,2 km/s do local na sua trajectória elíptica em redor do Sol em que o nosso calendário muda de ano, ainda há tempo para ler o livro “Pelo sistema solar vamos todos viajar”, de Regina Gouveia, uma poesia escrita para os mais novos sobre o sistema solar editada pela Gatafunho.
A “Vida no Universo”, livro editado pela Gradiva e escrito por João Lin Yun sobre a procura de vida fora da Terra, mas que é também uma reflexão sobre a natureza e consciência Humanas e a existência de Deus. É uma leitura oportuna que permite dotar o leitor como os elementos suficientes para um balanço sobre a astrobiologia, uma vez que 2011 foi um ano recheado de descobertas de planetas candidatos a albergarem formas de vida como a que conhecemos.
Num ano em que a partícula subatómica neutrino surpreendeu muita gente, o físico português João Magueijo ofereceu-nos uma magnífica biografia sobre o físico italiano Ettore Majorana, que postulou a possibilidade da existência do neutrino, e cuja vida atrai por misteriosa como também foi o seu desaparecimento: “O Grande Inquisidor”, editado pela Gradiva é um dos livros incontornáveis de 2011.
Na deixa da biografia anterior, é obrigatório sublinhar a publicação de uma biografia sobre o nosso único prémio Nobel português nas ciências, Egas Moniz, escrita maravilhosamente por um outro incontornável neurocirurgião português, João Lobo Antunes. Trata-se do livro “Egas Moniz. Uma biografia”, publicado pela Gradiva.
Resultado de um conjunto de conferências coordenadas por Maria de Sousa (Prémio Universidade de Coimbra de 2011) emerge o volume “Migrações: das Células aos Cientistas”. Publicada pela Esfera do Caos, este livro permite-nos aceder a diversas perspectivas multidisciplinares sobre o fenómeno da migração, desde os microorganismos até ao Homem. É um livro muito interessante, sobre um dos denominadores comuns da vida que é a sua permanente exploração do espaço que a rodeia.
É também nessa exploração que se manifestam os mecanismos que galvanizam a evolução da vida e que geram diversidade. E foi o fascínio pela diversidade da vida neste planeta que levou Francisco Dionísio (um matemático e físico que migrou para a biologia molecular) a escrever “Uma Tampa para cada Tacho – Conflitos Genéticos e Evolução”. Neste livro, publicado pela Bizâncio, muitos factos do dia-a-dia devidos a conflitos genéticos são explicados pelo autor, um excelente divulgador de ciência, numa linguagem rigorosa, simples e cativante.
Esta minha lista de livros de 2011 ficaria incompleta sem a referência a dois livros publicados no último trimestre pela Gradiva: “Darwin aos Tiros e outras Histórias de Ciências”, de Carlos Fiolhais e David Marçal e “Casamentos e Outros Desencontros”, de Jorge Buescu. Se o primeiro nos revela histórias da ciência insuspeitas e muito divertidas, o segundo apresenta de uma forma que equilibrada o rigor matemático e a transmissão do seu entendimento por todos, num tom muito humorado e subtil característico de Jorge Buescu. A divulgação da matemática contemporânea, que é substância de inúmeros aspectos do nosso quotidiano, ficou mais rica e mais acessível a todos.
Ressalvo, antes de acabar, de que o ano de 2011 acolheu muitos mais livros de divulgação de ciência do que aqueles que aqui ficaram indicados. As escolhas são sempre subjectivas e incompletas e naturalmente lembrar-se-á o leitor de outros volumes que aqui não foram mencionados. Agradeço que os acrescente.
António Piedade
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva
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