sábado, 19 de março de 2011

A Docência como Profissão Liberal


“É necessário elaborar uma ideia, antes de se intentar uma definição” (James Baldwin, 1924-1987).

Para melhor situar o leitor nesta temática começo por introduzir esta questão: um médico que trabalhe em exclusividade para o Estado deixa de ter o estatuto de profissional liberal?

Mas quando se fala da criação de uma Ordem dos Professores, é-se amiúde confrontado com a opinião de que as ordens profissionais se destinam exclusivamente a profissões liberais definidas, de imediato e stricto sensu, como sendo aquelas que são exercidas por conta própria.

Se assim fosse, encontrando-se a maioria esmagadora dos professores a trabalhar em organismos estatais não reuniriam, à partida, condições para organização de uma associação pública com poderes para atribuir um título profissional, regulamentar o exercício da profissão e zelar pelo respectivo prestígio e serviço à comunidade em respeito por princípios deontológicos. Todavia, uma simples consulta à “Enciclopédia Portuguesa e Brasileira” não se mostra tão restritiva ao dar-nos exemplo de profissões liberais como “a medicina, o professorado, a advocacia” (Vol. XXIII, p. 367).

Com a intenção de encontrar o “fio de Ariadne de uma controversa questão havida pelo cidadão comum e, pior do que isso, mesmo por dirigentes sindicais que, em defesa de uma exclusiva representação docente, querem fazer passar a mensagem de que a profissão liberal exige, como condição sine qua non, um trabalho por conta própria, dediquei-me a pesquisas aturadas de algumas décadas em fontes dignas do melhor crédito.

Refiro-me, assim, à intervenção do Dr. Costa e Sousa, presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, na cerimónia que assinalou a criação do “Conselho Nacional de Associações de Profissões Liberais”, ao proferir a seguintes alocução: “Claro que surge imediatamente a questão do número crescente de profissões ditas liberais que exercem a sua actividade não em regime livre, mas directa ou indirectamente por conta de outrem, quer no sector privado, quer público. Parece que nestes casos a profissão perderia a característica liberal. Devemos concluir que assim não acontece – e este é um conceito muito importante a reter -, isto é, o carácter de liberal é próprio da profissão e não da relação laboral da pessoa que a exerce, desde que seja mantida a absoluta independência profissional”. E prosseguiu ele, um pouco mais à frente: “Um outro aspecto importante é a natureza intelectual para o que é necessária uma cuidada preparação técnica e científica, e daí a necessidade duma formação universitária para a maior parte delas” (“Cadernos de Economia”, Publicações Técnico-Económicas, Lda., ano III, Abril/Junho de 94). Ora, com a proliferação (eu diria mesmo, intemperança) de associações públicas cada vez mais se assiste à denegação da “necessidade de uma formação universitária como o provam a criação das ordens profissionais dos enfermeiros e dos técnicos de contabilidade.

Pela inconcussa autoridade de que se reveste, transcrevo a intervenção, na cerimónia atrás assinalada, do então bastonário da Ordem dos Advogados, e mui prestigiado jurista, Dr. Lopes Cardoso, ao formular o seu douto parecer sobre este controverso assunto: “É necessário que, mesmo quando exercida em regime de contrato de trabalho, essa profissão seja reconhecida socialmente como relevando de grande valor precisamente porque exigindo, pelo menos uma independência técnica e deontológica incompatível com uma relação laboral de pleno sentido. Com efeito, como tem sido defendido doutrinalmente, a noção jurídica de subordinação aparece no direito moderno como perfeitamente compatível com a independência técnica do assalariado. Ela significa apenas uma dependência na organização geral e administrativa do trabalho”. E conclui: “Por isso, por exemplo, o Estatuto da Ordem dos Advogados, que cito como do meu melhor conhecimento, teve o cuidado de, ao atribuir expressamente o exercício da advocacia em regime laboral, esclarecer que ‘o contrato celebrado pelo advogado não pode afectar a sua plena isenção perante a entidade patronal.’”

Assim, não deve oferecer a mínima dúvida de que o magistério satisfaz o requisito de produzir trabalho de natureza intelectual ao serviço de uma sociedade mais culta e melhor preparada para responder aos desafios técnicos e científicos de um mundo cada vez mais exigente e competitivo. Como duvidoso me não parece que os professores são merecedores de serem definitivamente reconhecidos como principais catalisadores dessa imperativa acção.

Ao arrepio de outras profissões de igual ou mesmo menor formação académica e definidos, lato sensu, os contornos contemporâneos de profissão liberal, a aberrante inexistência de uma Ordem dos Professores, consequentemente, sem uma responsável audição de natureza científica e não apenas laboral, dos seus profissionais, tem representado uma penosa via sacra para os docentes flagelados pelo látego impiedoso dos mandarins da 5 de Outubro, responsáveis por leis mal feitas, e de uns tantos ignorantes ou mesmo malfazejos seus mandatários que as interpretam a seu bel-prazer para saciarem o seu apetite de pequenos mas muito perigosos tiranetes.

Como ultima ratio, a exemplo de Friedrich Dürrenmatt, não posso deixar de me interrogar: “Mas que tempo é este em que é preciso lutar pelo que é evidente?”

10 comentários:

Anónimo disse...

É preciso tanta prosápia para dessa forma fazer, veladamente, a apologia da privatização da Escola?

Banda in barbar disse...

Agostinho de Campos 1919

A monarquia não conseguiu formar professores apenas funcionários

A república padece do mesmo problema

O ensino jesuíta devo dizê-lo com minha pena só começa a ser educativo no dia de Alcácer-Quibir

Pintar a taboleta da associação umas vezes de azul e branco e outras vezes de verde e vermelho e mudar-lhe o título ou o dono

não a fazem melhor, não lhe dão melhor gôsto

José Batista da Ascenção disse...

Caro Rui Baptista

Muito bem fundamentado: honesto e claro. Como deve ser.

joão boaventura disse...

Agostinho de Campos 2011

A monarquia não conseguiu formar professores apenas funcionários, tal como as Repúblicas 1, 2 e 3

As Repúblicas assim honraram e continuam a honrar o passado monárquico

O ensino jesuíta não tem nada que perfilhar-se com Alcácer-Quibir

Cada um pinta as tabuletas das cores que entende

E não ficam melhor nem pior, mas ao gosto de cada um.

Tudo depende da interpretação das cores.

Rui Baptista disse...

Anónimo ( 21:OO) disse...

“É preciso tanta prosápia para dessa forma fazer, veladamente, a apologia da privatização da Escola?”

Lanço daqui o repto para que humildemente interprete este meu post (que pelo visto lhe não caiu no goto) para fundamentar a afirmação de que “veladamente” faço a apologia da privatização da Escola!

Logo eu que, como diz o povo e é meu timbre, gosto de chamar os bois pelo nomes, em denúncia de mentiras descaradas, escrevi neste blogue:

1.“Num tempo em que o ensino privado com contrato de associação é, por vezes, havido como exemplo capaz de dar ao país um ensino de maior qualidade relativamente ao ensino oficial deverá ser acolhido como acto de inteira justiça a homenagem que decorre em Coimbra ao ex-Liceu Normal D. João III, hoje Escola Secundária de José Falcão. Em nome da qualidade de ensino ministrado nas suas salas de aula se pronunciaram, com conhecimento de causa, nomes de grande vulto da academia, da política e da vida económica da cidade nas margens do Mondego com projecção dentro de fronteiras nacionais e mesmo para além delas (“Os três quartos de século da Escola Secundário de José Falcão de Coimbra”, 1.º §, 24/02/2011).

2.“Perante a apatia, que eu quase diria generalizada, das escolas secundárias estatais confrontadas com a acção concertada do ensino privado com contrato de associação, estão grande número daquelas escolas do país transformadas em verdadeiros elefantes brancos com instalações quase vazias de alunos e com professores com horários zero que fazem pairar nuvens negras sobre o seu presente e o futuro dos possuidores de mestrados universitários com destino ao ensino oficial” (“Ensino Oficial, Ensino Convencionado e Ensino Privado”, 1.º §, 12/02/2011).

Como escreveu Eça: “(…) entre nós, a mentira é um hábito público. Mente o homem, a política, a ciência, o orçamento, a imprensa, os versos, os sermões, a arte, e o País é todo ele uma grande consciência falsa. Vem tudo da educação”.

Rui Baptista disse...

Caro "Banda in barbar":

Um século atrás, como transcreve de Agostinho de Campos: 1. " A monarquia não conseguiu formar professores apenas funcionários. 2. A república padece do mesmo problema".

Passado precisamente um século, os sindicatos docentes persistenm em piorar a situação ao tentare, a todo o custo, proletarizar os professores...

Rui Baptista disse...

Meu caro José Batista da Ascenção:

Até quando terão os professores que aturar que o simples cidadão e os sindicatos continuem a deturpar os factos em prol das suas conveniências? Ou seja, fugindo, como o diabo da cruz, ao debate pública da docência "to be or not to be, that is the question” uma profissão liberal ou argumentando com simples opiniões pessoais?

Venham, portanto, factos que contrariem o meu post. Seria uma discussão proveitosa numa sociedade de tabus em que, segundo Marguerite Yourcenar, "toda a verdade gera um escândalo".

Não me escusarei a esse debate.

Cordiais cumprimentos

Rui Baptista disse...

Meu comentário (17:34):

Gralhas último §: persistenm, não, persistem, sim; tentare, não, tentarem, sim.

Rui Baptista disse...

Meu caríssimo João:

Nisto de interpretação das cores, os daltónicos têm desculpa. Mas não me parece ser o caso das nuances com que, (des)propositadamente, e nada veladamente, por vezes, são interpretados os meus textos.

Um abraço amigo.

Rui Baptista disse...

Sem de qualquer forma querer buscar amparo em Florbela Espanca quando escreve que “a poesia não comporta gralhas como a prosa que, às vezes, até fica melhor…”, penitencio-me de mais uma gralha.

Assim, no comentário ao prezado Colega José Batista da Ascenção , corrijo, com o pedido de desculpas, na 3.ª linha do 1.º §, “debate pública” para “debate público”.

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...