sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Descascar a fruta


O habitual destaque para a crónica de J.L. Pio de Abreu no "Destak" de hoje (na figura quadro de Caravaggio):

O que nos faz mexer com agrado não é o próprio prazer, mas sim o esforço feito para o obter. A chave deste paradoxo é uma molécula que dá pelo nome de dopamina. Ela liberta-se, nos nossos neurónios, sempre que as coisas estão a correr no sentido da expectativa desejada. A expectativa realizada reforça este caminho mas, por si, não é tão intensa como os passos dados até lá. O facto é que, obtido o desejo, cessa a libertação de dopamina.

Este pormenor explica porque é que os alpinistas se torturam para chegar ao cume de um monte, porque é que os toxicodependentes insistem na difícil obtenção da droga que, a partir de certo ponto, apenas lhes traz mais dores, ou porque é que o amor difícil é o que se vive mais intensamente. Mas ajuda-nos também a perceber que a melhor forma de fortalecer a vontade é adiar a recompensa.

Na sociedade do "pronto-a-vestir" as recompensas estão na montra e serão obtidas logo que se arranje o dinheiro suficiente. A dopamina vira-se então para o "vil metal", o único caminho para todos os prazeres. Onde está o prazer de cozinhar, de construir um brinquedo, de bordar uma colcha, de preparar um encontro? Tudo sucumbiu perante o tempo dedicado à obtenção do dinheiro.

Para aqueles que foram bem treinados na vontade de ganhar dinheiro, fica o golfe. Chegar ao primeiro, segundo e outros buracos, é incentivo suficiente para a expectativa de alcançar o décimo oitavo. Para os outros, resta o prazer de descascar a fruta antes de a comer. Pelo menos, enquanto os supermercados não a venderem já sem casca.

J.L. Pio Abreu

2 comentários:

Cruz Gaspar disse...

O mesmo se passa com o viajante: ainda que inconsciente, o que lhe dá prazer é o caminho e não o chegar ao destino.


Fico sempre muito agradado com os textos do J. L. Pio Abreu. A vantagem de serem curtinhos e certeiros e revelarem uma compreensão enorme na análise dos comportamentos humanos.

Fui ali à "cave" repescar um pequeno livro do autor do texto: "Introdução à Psicopatologia Compreensiva" da Gulbenkian, de 1994. Pequeno catálogo caracterizando as psicopatologias (estou a ser redutor).

Sem menosprezo pelos outros cientistas, acho que os psiquiatras são dos escritores mais lúcidos que tenho lido.

Talvez com exagero, ou talvez não, diria que os especialistas no uso das palavras certas, serão os psiquiatras e os poetas.

Não é a minha área - sou das tecnologias/ciências físicas - mas interessa-me o assunto.

Saudações

Cruz Gaspar

rt disse...

OUtro exemplo podia ser as sebentas escolares com resumos de romances, "consumidas" pela maior parte dos alunos e com a passividade cúmplice de muitos professores de português.

Não sei se Amália Rodrigues sabia alguma coisa da dopamina, mas há dois versos cantados por ela que exprimem o mesmo que parte das palavras de Pio Abreu:

"já não temos fome
nem vontade de não a ter"

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