quinta-feira, 12 de novembro de 2009
A Rã Gelada
Novo artigo do bioquímico António Piedade:
O domínio do fogo permitiu amenizar os invernos glaciares dos nossos antepassados e forjar sucessivas revoluções tecnológicas. O domínio do frio, mais recente, permitiu o armazenamento mais duradouro de alimentos e acalentou a ideia de preservar células, espermatozóides, embriões, órgãos e mesmo corpos humanos. Sim, há pessoas que recorrem a agências de criopreservação ( aqui ou aqui ) que, a troco de fortunas, as congelam depois de mortas para que, quando as ciências da saúde encontrarem soluções de reparação e cura para doenças e rugas hoje intratáveis, sejam descongeladas e ressuscitadas dos seus casulos supergelados (submersos em azoto líquido a uma temperatura de cerca -190 ºC) e suas maleitas reparadas.
Este uso do frio para cristalizar um estado presente e “criotransportá-lo” para um futuro mais resolvente ou até a uma qualquer necessidade própria (por exemplo no caso das células estaminais) é, como disse, tecnologia do frio que começou a ser utilizada em meados do século XX, fruto do engenho tecnológico humano que em parte só foi possível pela nossa ancestral mestria em fundir, caldear e forjar metais, ou seja pela nossa habilidade em dominar o fogo! Fogo esse que nos permitia passar o inverno sem hibernar e, assim activos, forjar pensamentos, caldear memórias, pintar murais de cavernas à espera que os deuses devolvessem a esperança sobre a terra em torrentes de vida primaveris.
A força motriz da selecção natural pressionou outros animais, plantas, microrganismos a desenvolverem estratégias diferentes para fazer face aos infernos gelados. Alguns, como o urso polar, hibernam, reduzindo a metabolismo basal à letargia necessária para sobreviver ao inverno com as gorduras armazenadas sob a isolante pele. Algumas bactérias, alteram a composição lipídica da membrana para manterem uma mesma fluidez funcional. Alguns insectos aumentam a concentração intracelular e nos fluidos corporais em anticongelantes naturais como o glicerol e o sorbitol, impedindo a formação de cristais de gelo cujas extremidades são fatais para a integridade das células e tecidos.
Mas a pressão que resulta da forte vontade em sobreviver é capaz de soluções espantosas e a que vos descrevo a seguir é disso bom exemplo.
Existem quatro espécies de rãs [1], Rana sylvatica, Hyla crucifer, Hyla versicolor e Pseudacris triseriata, que podem sobreviver durante dias ou semanas com cerca de 65% da sua água corporal congelada a temperaturas de -16 ºC! (aqui). É pois deixando-se congelar, que ficam gelidamente inertes por entre folhas e ramos também gelados. Com a actividade metabólica reduzida para cerca de 1%, trespassam os rigores invernais à espera que a translação terráquea devolva a primavera e então juntem o seu coaxar às coreografias de acasalamento. Estas rãs acumulam uns megaglicémicos 4500 mg/dl de glicose (o normal é 50-100 mg/dl) quando pressentem que tudo à sua volta está a congelar e assim evitam a formação dos fatais cristais de gelo [2]. É deste estado tipo geleia de rã congelada que acordam ao som dos primeiros acordes primaveris. O excesso de açúcar, garante da sua sobrevivência gelada, é então utilizado para desentorpecer o corpo, dar um novo salto e desfrutar da Primavera.
António Piedade
Notas:
[1] K.B. Storey and J.M. Storey, Lifestyles of the Cold and Frozen, New York Academy of Sciences, 1999, 39 (3), 32-37.
[2] http://http-server.carleton.ca/~kbstorey/reviews.htm (lista de artigos de K.B. Storey, Bioquímico especialista em hipometabolismos e organismos extremófilos).
Legenda da figura:
Rana sylvatica – Vive em várias regiões acima do círculo polar árctico.
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1 comentário:
Fabuloso. Desconhecia.
Aplicando um pouco de humor triste, só espero que os nossos governantes, e os que eles nomeiam para os cargos públicos, não se lembrem de se fazerem congelar, na esperança de continuarem no futuro. E dentre eles todos os que há décadas têm destruído sistematicamente o sistema de ensino público, garantindo que os pobres, cada vez mais pobres e em maior número, não aspirem a sair de um estado de ignorância conformada, que lhes assegure o estatuto que julgam possuir. E (já) não é por mim que receio...
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