quinta-feira, 19 de novembro de 2009
Breve História dos Vírus - V
A habitual crónica científica de António Piedade de "O Despertar" (na figura de cima o Bacillus anthracis):
Quando alguém sofre uma agressão física ou queda trágica é inquestionável associar o estado de doença, mais ou menos severa ou mesmo fatal, que daí advém, com a ferida causada pela espada do inimigo ou pela fractura exposta na perna após o trambolhão. Mas, quando alguém fica prostrado, da noite para o dia, ardendo em febre e com o corpo coberto de irrupções cutâneas e vermelhidão, sem que ninguém ou alguma coisa detectável por testemunhas oculares, auditivas ou olfactivas seja identificada como a causadora directa da enfermidade, então a imaginação humana burila uma ira divina, uma praga inimiga, um mau olhar invejoso entre outras maldições metafísicas.
De facto, se é contra o senso dito comum entender porque é a Terra a girar em torno do Sol e não o contrário, só com o nosso olhar desarmado e sem recurso a quaisquer lentes, não é de admirar que seja contra senso atribuir a organismos invisíveis aos nossos olhos a causa de inúmeras doenças.
E assim, durante muito tempo, recaiu sobre o hospedeiro infectado (a pessoa doente) a culpa pela origem e disseminação da peste e não sobre o microrganismo que o infectava, porque nele encontrava as condições ideais para se desenvolver.
Sabemos que Hipócrates de Cós, o grego considerado o pai da medicina, terá efectuado por volta de 400 a.C. observações epidemiológicas de muitas doenças, apesar de não lhes ter atribuído nenhum agente orgânico causador. Em 1546, Girolamo Fracastoro terá proposto a teoria segundo a qual as doenças epidémicas (isto é, as doenças que se desenvolve num local de forma rápida e fazendo várias vítimas, num curto intervalo de tempo) são contagiosas e se disseminam através de partículas diminutas e por longas distâncias. Mas a primeira associação entre uma doença e um organismo infeccioso a ela específica de que temos conhecimento que tenha sido efectuado experimentalmente, foi efectuada, em 1863, por Casimir Devaine. A doença em causa foi o antraz, ou carbúnculo, e o microrganismo causador o Bacillus anthracis. Contudo, a demonstração, metodologicamente científica através de experiências controladas, de que esta bactéria é de facto o agente, ou patogénio, causador daquela patologia, só foi efectuada em 1876 por Robert Koch e Louis Pasteur (este último o fundador da microbiologia) Devemos a estes dois cientistas, entre outros, a proposta, demonstração e difusão da teoria que propõe serem microrganismos os causadores de inúmeras doenças, pondo um ponto final à teoria da geração espontânea de doença (e de vida!), primeiramente abalada, em 1668, pela bela experiência cientificamente controlada de Farncesco Redi (ver aqui um artigo sobre o início do controlo em experiências científicas).
Mas voltemos aos vírus e respondamos à pergunta: quando é que surgiram as primeiras evidências de que haveriam doenças que, não sendo causadas por bactérias e não se gerando espontaneamente, seriam causadas por um agente até então não detectado?
Recordemos que os avanços na microscopia óptica, no final do século XIX, permitiam a detecção visual de bactérias mas não de vírus. Koch e Pasteur puderam demonstrar a presença de bactérias nos líquidos com que inoculavam os animais que, em consequência, adoeciam. Ao filtrarem esses líquidos contendo bactérias para que o filtrado as não contivesse (o que podiam também confirmar e demonstrar com o microscópio) e inoculassem com este preparo animais da mesma espécie, então, se estes não adoecessem, demonstravam assim que eras as bactérias os agentes patogénicos.
Figuras: Vírus do mosaico (em cima) e filtro de Chamberland (em baixo).
Mas, em 1892, uma observação intrigou a comunidade científica (e não só!). O cientista russo Dimitri Ivanovski demonstrou que uma doença que atingia a planta do tabaco, a doença do mosaico do tabaco, poderia ser causada pelo “simples” contacto das folhas de uma planta saudável com o líquido resultante da filtragem do extracto de folhas doentes esmagadas, através de um filtro de Chamberland (filtro de porcelana porosa também chamado de Pasteur) que tem poros suficientemente pequenos para impedir a passagem dos microrganismos então conhecidos. Ou seja, Ivanovski mostrava ao mundo que um “agente filtrável”, mais pequeno do que bactérias, era responsável pelo espoletar de uma doença em plantas. Em 1898, Martinus Beijerinck repetia a experiência anterior e confirmava, de forma independente, a existência de algo causador da doença em soluções sem quaisquer bactérias. Designou esse agente pela expressão latina contagium vivum fluidum (germe fluido vivo) e reintroduziu neste contexto a palavra virus (também latina que significa toxina, veneno).
O debate sobre a natureza do agente filtrável alimentou então acesas discussões: seria um “fluido vivo”, uma “partícula” infecciosa, ou uma toxina?
Nesse mesmo ano de 1898, uma segunda constatação semelhante era efectuada em animais. Friedrich Loeffler e Paul Frosch, que trabalhavam com Kock, filtraram um líquido contendo o agente da febre aftosa (que hoje sabemos tratar-se de um vírus do género Aphthovirus) através de um filtro de Chamberland e mostraram que o filtrado continuava a causar doença. Contudo, ao passarem o mesmo filtrado através de um filtro de Kitasato de grão fino (que tem poros muito mais finos) verificaram que a potencialidade de induzir infecção tinha ficado no filtro. Com esta experiência, não só tinham demonstrado que o agente infeccioso não era de natureza líquida mas sim composto de partículas, como tinham identificado pela primeira vez uma forma de isolar um vírus que infecta vertebrados. Para além disso mostraram que o agente retido era capaz, de alguma forma, de se replicar. Estas descobertas marcam o início da virologia como disciplina científica.
Estes episódios de descoberta da natureza dos vírus ilustram bem o significado do que entendemos por descoberta científica. Embora Ivanovsky tenha sido o primeiro a observar a existência de algo que passava através de um filtro e que causava doença, todas as suas publicações mostram que ele não compreendeu que as suas observações implicavam a existência de um micróbio patogénico distinto das bactérias. Beijerinck, por seu lado, estava convencido da existência de algo diferente das bactérias, mas sempre defendeu que possuía uma natureza fluida e não corpuscular. Só Loeffler e Frosch é que enunciaram um conjunto de hipóteses e planearam experiências controladas de forma a poderem concluir, sem equívocos, sobre a existência de um agente novo, de dimensões microscópicas, capaz de induzir doença e de se replicar: os vírus.
De facto, a boa ciência não se limita só a uma colecção de boas observações e dados novos. Necessita sempre que essas novas evidências sejam processadas por um pensamento imaginativo que permita ao cientista fazer uma interpretação imparcial e correcta das suas descobertas experimentais e chegar a conclusões verificáveis por todos.
(Continua)
António Piedade
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2 comentários:
O Doutor António continua a agraciar-nos com a sua prosa científica e isenta. É um gosto aprender com ele. Parabéns e boa continuação.
foi muito importante as descobertas dos cientistas se não fosse por eles não saberiamos da existencia do virus .
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