sexta-feira, 20 de novembro de 2009

PARA UMA REFLEXÃO SOBRE O ANTIGO E O ACTUAL SISTEMA EDUCATIVO


“A política é a arte de impedir as pessoas de meterem o nariz em coisas que lhes dizem realmente respeito” (Paul Valéry, 1871-1945).

Numa época em que, para Hannah Arendt, “a irreflexão parece ser uma das características do nosso tempo”, António Viriato escreveu um comentário ao meu último post: “O futuro da Educação numa Educação sem futuro” (17/11/2009). Nas suas duas linhas derradeiras, foi-me endereçado um agradecimento pela “oportunidade da reflexão” sobre o actual sistema educativo, surgido em tempo de discussões públicas e acaloradas sobre um assunto - a avaliação dos professores - que criou um impasse exigente da apresentação de propostas parlamentares vindas de todas as bancadas, mas que deveriam ter sido da responsabilidade do governo, dos professores, dos sindicatos, dos movimentos independentes dos professores, dos blogues que deram voz aos professores sem voz (com realce bem merecido para “A Educação do meu Umbigo”, de Paulo Guinote), dos pais, e dos alunos com maturidade suficiente. Em resumo, mesmo de todos os cidadãos “apavorados” com o estado a que chegou um país onde, segundo a Associação Comercial do Porto, “se ensina pouco, educa-se menos e exige-se quase nada”.

Este statu quo não pode deixar de fazer pairar sobre a sociedade portuguesa a impressão de que o assunto se tornou numa bandeira política de uma luta sem quartel em que a teimosia do ministério da Educação e dos sindicatos (essencialmente da Fenprof) assestou o seu arsenal de armas pesadas, sem qualquer tentativa de içar uma bandeira branca para pôr cobro a uma situação insustentável que nada ajudou, antes complicou, a solução, em devido tempo e sem sobressaltos, dos problemas, tornando-se parte dos próprios problemas, como hoje repetem os nossos políticos a propósito de tudo e de nada.

De há três décadas e meia para cá, os responsáveis governamentais que sobraçaram as numerosas pastas da Educação, uns mais, outros menos, têm lançado sobre a sociedade portuguesa mãos cheias de confetes como se o futuro do país e da sua juventude se tratasse de um Entrudo que se prolonga durante todo o ano e durante anos a fio. É reveladora a própria ausência da actual ministra da Educação e dos seus secretários de Estado (aliás, criticada pelos vários partidos políticos) no Debate sobre a Avaliação e o Estatuto da Carreira Docente, em curso na Assembleia da República, como se o facto fosse de somenos importância relativamente a outras urgências das suas vidas privadas ou mesmo oficiais.

Escreveu Hans George Gadamer que “o carácter essencial do espírito histórico não consiste na restauração do passado, mas antes numa mediação reflectida com a vida contemporânea”. Nesta perspectiva o que apontar de muito negativo ao sistema educativo (que o houve também, como o elitismo ao seu acesso), merecedor de terra queimada a eito e sem jeito de tempos revolucionários, e aos diplomas anteriores a 25 de Abril que autenticavam o que os seus possuidores sabiam e o que seriam capazes de fazer numa vida profissional futura?

Se o cidadão tinha o diploma da antiga 4.ª classe, obtido depois de exame exigente, havia a certeza de que sabia ler, escrever e contar (o chamado LEC, L de ler, E de escrever, C de contar); sabia o bastante de gramática para reconhecer o sujeito e o verbo de uma oração, sem o crisma dos sintagmas com o “erótico do novo, em que o antigo é sempre suspeito” (Roland Barthes); sabia de história o suficiente para enumerar os nomes e cognomes dos reis de Portugal e conhecer o passado ancestral da sua gente; sabia bastante de geografia, apesar do exagero de conhecer de cor as linhas ferroviárias, mas com a vantagem de desenvolver as vias neuronais de uma melhor memória.

Por seu lado, os alunos saídos dos liceus estavam preparados para não se atarantar com os complexos conhecimentos do ensino superior; os alunos vindos das escolas comerciais davam excelentes guarda-livros, mesmo antes dos programas de computadores que lhes facilitam a vida embotando-lhes o raciocínio e a prática matemáticas; os alunos das escolas industriais não se faziam acompanhar, apenas, de um “saber de experiência feito” sem umas tantas bases teóricas; os institutos comerciais e industriais do então ensino médio (hoje ensino politécnico) consolidavam e aumentavam substancialmente esses conhecimentos; os diplomas universitários (segundo Pereira de Oliveira, professor da Faculdade de Letras de Coimbra, “a Universidade reflecte o estado de saúde de um país”) não se alcançavam do pé para a mão, em fins-de-semana e sem exames presenciais, em universidades privadas, etc.

E hoje? Aqui está um bom motivo de reflexão pública e alargada ao cidadão comum chamando à pedra da opinião pública os governantes da Educação que fizeram tábua rasa dos exames, da exigência do ensino tradicional, criando as “Novas Oportunidades” em substituição grosseiramente facilitada do 3.º ciclo do ensino básico e do 12.º ano do ensino secundário, e que substituíram o sério “Exame Ad Hoc pelo risível “Acesso ao Ensino Superior para Maiores de 23 anos”. E, como se isto não bastasse, ou sobrasse mesmo, deram jubilosa guarida a programas de duvidosa qualidade, a manuais escolares apresentados na sua “excelsa qualidade” por delegados de informação cultural como se os professores fossem mentecaptos necessitados de bulas a exaltar a qualidade de um álbum de fotografias ou de bonecada recheado de imagens em substituição de uma prosa que obrigue os alunos a porem a “massa cinzenta” a funcionar.

Julgo que, como proposta de reflexão, e pese embora a minha falta de “engenho e arte”, estes exemplos chegam para diagnosticar no espaço limitado de um post, os males de que enferma um sistema educativo em estado anémico avançado e, como tal, necessitado de cuidados intensivos que lhe façam voltar às faces as rosetas de uma boa saúde e não apenas o carmim que disfarça a doença. Ou seja, não convence colocar à cabeceira da cama hospitalar do doente um boletim médico que encubra as mazelas, dizendo aos familiares que tudo corre no melhor dos mundos em diagnóstico “piedoso” sobre o seu verdadeiro estado de saúde. Mutatis mutandi, dar uma falsa esperança de cura ao debilitado sistema educativo nacional, com mezinhas caseiras de dados estatísticos, para além de perigoso, não é correcto. Muito menos credível!

9 comentários:

Leonardo disse...

Senhores,

Agora, perguntem-se: será que a educação formal, com currículo único e criado pelo Estado, deveria ser obrigatória? Será que qualquer "aluno" deve saber Geografia ou História ou Física obrigatoriamente? Será que este modo de educação "obrigatória" ainda faz sentido em nosso século? Será que a educação como está hoje dá os recursos para se viver numa "futura" sociedade do conhecimento?

São as perguntas que me faço aqui no Brasil...

António Daniel disse...

Caso não se importe, pretendo acrescentar um pouco mais às suas ideias, pois concordo globalmente com elas. Já que citou Hannah Arendht, convém dizer que o problema reside no facto das crianças serem educadas como se fossem «velhas» e os adultos não as educarem como se fossem «novas». Isto para dizer que os «putos» estão entregues a si mesmos. Quem não se encontra nesta situação, é um óptimo aluno. E, quanto ao ensino dos bons alunos, a nossa escola dá cartas. Somos os melhores entre os melhores. Daí que, a função primordial de quem ensina - e em último caso de quem educa - é dizer como é o mundo. Só assim é possível inovar. Só se consegue inovar a partir do velho. Por isso, a escola, actualmente, dá aos novos um mundo novo e não um mundo velho.
Mudar tudo isto é difícil. Ao professor, nas suas práticas lectivas quotidianas, é sempre difícil fazer o equilíbrio entre o novo e o velho, quando o que interessa hoje é sempre o novo. Mas, obviamente, é a sua tarefa. daí que, a única forma de dar a volta à situação, é arriscar através de uma perspectiva mais conservadora (à medida que a idade avança vamos ficando conservadores), permitindo que alunos menos bons atinjam bons patamares. Como? Como em tudo não há remédios miraculosos. Mas pode haver trabalho de quem estuda e de quem ensina. Mas é difícil... Com a felicidade aí, sempre presente, é isso que se procura. A frustração é sempre algo a evitar. Ora, ensinar e educar, num primeiro plano, é condicionar.

António Daniel disse...

Leonardo, creio que o meu cometário anterior responde à sua questão. Não há conhecimento a partir do nada. Essa noção que o Leonardo aponta é uma quimera. Se tal acontecesse, seria difícil viver.
A sociedade do conhecimento exige isso mesmo: conhecimento.

Rui curado Silva disse...

Caro Rui Baptista,

concordo que é sempre bom discutir e colocar em causa o que corre menos bem no ensino, mas deixe-me dizer-lhe que a sua análise sobre o antigo sistema educativo faz perder a vontade de discutir este tema:

1- Portugal em 1974 tinha o pior sistema de ensino da Europa de longe (incluindo albânias e afins): maior percentagem de longe de analfabetos, menor percentagem de longe de pessoas com o secundário concluído e menor percentagem licenciados e doutorados;

2- A investigação que se fazia nas universidades portuguesas era risível, alguns departamentos inteiros das nossas principais universidades não publicaram um único artigo científico numa revista internacional com arbitragem durante 40 anos;

3- As nossas empresas não tinham qualquer expressão a nível internacional, a inovação e a investigação estava ausentes dos métodos de trabalho das nossas empresas comparadas com o resto das empresas europeias. E Portugal não fazia parte de nenhuma organizaão científica internacional.

4- A história dada no secundário cheia de lendas: Martim Moniz, a "Batalha" de Ourique, Guimarães dado como berço da nação, e as imaginárias Alas da Batalha de Aljubarrota, só para citar algumas;

5- A matemática era miseravelmente dada, nos sítios onde era dada, na provincia frequentemente dada por oficiais do exército que faltavam e pouco ou nada sabiam do que estavam a dar;

6- Toda a ciência moderna (física e química) entrou tardiamente nos programas do secundário. Sobre isso o seu colega de blogue, o Prof. Carlos Fiolhais tem uns textos muito bons publicados sobre o assunto que demonstram bem o nosso atraso em relação ao resto da Europa;

7- Salazar escreveu e declarou publicamente nos anos 60 que a 4ª classe era para todos, mas o ensino secundário era só para os mais aptos. Isto numa época em que o horizonte de qualquer jovem europeu deste lado e do outro da cortina de ferro era a Universidade...

8- Dou de barato todo o lixo propagandístico machista, marialvista, racista e paternalista de que estavam pejados os manuais da época, só comparáveis hoje em dia aos manuais de países como o Irão ou Cuba.

Leia o livro do seu colega de blogue, o Prof. Carlos Fiolhais "A coisa mais preciosa temos", leia os inúmeros exemplos sobre o nosso atraso que vem desses tempos e evitava de estar a tentar reabilitar algo que é impossível de reabilitar: o pior ensino da Europa do sec. XX.

João Simas disse...

Um dos problemas destes pequenos artigos é o da generalização. Como se falou também da disciplina de História e sou professor de História refiro dois dos muitos problemas: um actual e outro do futuro próximo:

- No actual 3º ciclo a maioria das escolas oferece apenas 90 minutos por semana nesta disciplina nos 7º, 8º e 9º ano e num dos anos lectivos mais 45 m, para um programa feito para 3 aulas semanais de 50 m em cada ano. Evidentemente os alunos não podem aprender conhecimentos básicos nesta disciplina nem há tempo para cumprir um programa drasticamente cortado.

- À semelhança do que vai acontecer noutros grupos disciplinares, a legislação prevê que os futuros professores de História sejam também de Geografia, com uma licenciatura em 3 anos (metade para História, metade para Geografia e dois anos de mestrado em Ciências de Educação, em que se faz um relatório e não uma tese. Por comparação apenas, eu (na minha geração,para ter a mesma habilitação fiz uma licenciatura de cinco anos em História, dois anos de estágio e Ciências de Educação, formalmente (porque foi mais)dois anos de mestrado com dissertação.

João Simas
Évora

Fartinho da Silva disse...

Desde que o lobby das "ciências" da educação tomou conta do sistema de "ensino" público não superior que o plano inclinado do mesmo não mais se inverteu!

Este lobby tomou de assalto a "formação" de "professores", o ministério da "educação", os "sindicatos" de "professores" e as "editoras"!

É interessante verificar como aparecem e desaparecem "ministros" da "educação" com vontade reformista que tentam reformar ouvindo e adoptando as "soluções" apontadas pelos representantes deste poderoso "lobby"!

Desta forma, ouve-se dizer que a culpa dos péssimos resultados (e não são muito piores porque não existem exames dignos desse nome e os "professores" são praticamente obrigados a não reprovar ninguém) é dos executantes e NUNCA dos mandantes! A culpa é de quem cumpre ordens e nunca de quem as emite! A culpa é sempre de quem executa, porque o sistema é... perfeito!

Então, para gáudio dos incautos, em vez de discutirmos que escola devemos e podemos ter, que alunos devemos e podemos ter, que professores devemos e podemos ter, que encarregados de educação devemos e podemos ter, andamos entretidos com estatutos disto e daquilo e com avaliações disto e daquilo!

Enquanto andarmos entretidos a discutir a espuma não conseguimos perceber o cerne do problema e continuaremos com um dos piores sistemas de "ensino" da Europa!

Quando um terço da população não tiver pão, as coisas mudarão, até lá... o circo continua...!

Rui Baptista disse...

Meu Caro Fartinho da Silva:

Desculpe só agora responder ao seu comentário. Ele obrigou-me a reflectir e, por fim, resolvi enviar-lhe o testemunho isento de uma professora de uma Escola Superior de Educação em que critica o pouco relevo dado à componente científica na formação dos professores. Segundo julgo poder deduzir nos muros da sua própria escola.

É este o seu testemunho corajoso e, por isso, digno de louvor pela honestidade demonstrada:

"Não haverá o perigo de considerar que a educação possa ser reduzida meramente a uma técnica? Que a formação de professores se reduza e se esgote numa mera formação técnica, esbatendo ou subalternizando a formação científica em que ela se deve fundar e esquecendo ou desvalorizando a formação humanística que constitui o seu horizonte e lhe confere todo o sentido e significado? Como se os professores e educadores fossem meramente técnicos e, portanto, pudessem ser apenas reduzidos ao estatuto de funcionários, como outros quaisquer funcionários! É que se a educação é uma ciência é também uma arte e uma arte não no mero sentido de técnica, mas no sentido de criatividade, de originalidade, de predisposição e de vocação, que lhe estão associados. Convém, por isso, relembrar o ideal grego e voltar ao genuíno sentido da paideia grega” - Maria de Jesus Fonseca, “A Paideia Grega Revisitada”, professora-adjunta da Escola Superior de Educação de Viseu.

Rui Baptista disse...

Caro António Daniel:

Obrigado pelo esclarecimento dado a Leonardo que do Brasil sugere algumas dúvidas a quem em Portugal se submerge num "mare magnum" de interrogações de díficeis respostas.Eu, pelo menos!

Renovo os meus agradecimentos, subscrevendo a sua opinião.

Cumprimentos cordiais

Rui Baptista disse...

Caro João Simas:


Num ensino em que as humanidades são subalternizadas (por exemplo, o caso escandaloso da Filosofia), e em que se quer construir o futuro sem ter um passado está tudo explicado quanto à desvalorização do ensino da História e à simplificação formativa dos respectivos professores.

Mas nada é feito por acaso. Tudo tem uma intenção tão rídicula como esta: a dos cérebros que regem o destino da Educação estarem convencidos (ou convir-lhes estarem convencidos disso)que qualidade do ensino está na razão inversa da qualidade da formação dos professores.

Haja pachorra e não nos deixemos ser cúmplices deste "statu quo".O seu testemunho é uma prova viva de uma insatisfação pública. Como escreveu Edmund Burke, "há um limite em que a tolerância deixa de ser uma virtude"!

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