sábado, 14 de novembro de 2009

Ainda a avaliação dos juízes e dos professores


Senhor Doutor Juiz M. Garcia:

“Chorarão os nobres vendo que se não guarda cortesia à sua qualidade” (Padre António Vieira, 1608-1697).

Vivi a minha juventude no tempo em que a magistratura judicial tinha uma consideração social que, infelizmente, os ventos da modernidade tornaram reminiscência de uma velha tradição portuguesa. Recordo-me dessa época como simples e respeitoso espectador. Respeito que ainda hoje tenho como intocável.

V.Exª. - num tratamento devido aos juízes, mas quase caído em desuso, ou atribuído a quem dele não é merecedor – usufruiu em plenitude uma longa e trabalhosa vida profissional na honra de uma actividade altamente prestigiada. Igualmente, tempos houve em que a profissão de professor liceal tinha um prestígio comparável a todos os outros mesteres exigentes de um curso superior, quiçá, com excepção dos médicos por lidarem com a doença e serem a esperança na sua cura. Disso mesmo nos dá conta a académica Clara Pinto Correia em ”O render dos heróis” (DN, 22/10/1995), em que, a páginas tantas, referindo-se aos professores do liceu (“mesmo que liceu seja uma palavra que já não se usa”, segundo ela), escreve que “devíamos beijar-lhes as fímbrias do manto”.

A cátedra universitária e a magistratura ocupavam o topo classificativo do prestígio social que eu mantenho, com excepção dos que dela não são credores e que são certamente do conhecimento pessoal de V.Ex.ª. De casos insólitos tomei conhecimento pela leitura do livro “As Extraordinárias Aventuras da Justiça Portuguesa” (embora correndo o risco do apostema de “parecer contentar-me com prosas alheias”, V. Ex.ª o escreveu, mas que eu aceito na minha condição de leitor compulsivo), da autoria de Sofia Pinto Coelho, jornalista da SIC com formação universitária jurídica. Para utilizar um lugar-comum, não querendo ser vítima de generalizações, sempre perigosas, tenho para mim que o caso de histórias picarescas de juízes, aí contadas, são a excepção que confirmam a regra do respeito que a profissão nos deve merecer pela isenção e coragem sempre demonstradas nos tempos difíceis do Estado Novo.

Bem eu sei que esses tempos eram outros com a comunicação social com os riscos do lápis azul da censura sem poderem dar notícia dos escândalos de então envolvendo figuras que, com o manto espesso da sua força política e prestígios profissional e social, se abrigavam de tempestuosos escândalos debaixo do guarda-chuva de um silêncio imposto. Hoje, e felizmente que assim acontece, tudo se sabe e a comunicação social, ampliada por esse órgão difusor de noticiário que alia a palavra à imagem (e como se costuma dizer uma imagem vale por mil palavras), traz ao nosso lar, em fracções de segundo, os escândalos da vida pública que perdeu a privacidade dos salões em que eram apenas ciciados entre os poderosos e os validos.

Por tudo isto, Senhor Doutor Juiz, e que de pouco pouco tem, não foi sem um declarado estupor que vi não ter sido compreendida a mensagem que quis fazer passar de um possível laxismo na avaliação dos juízes e dos professores do ensino não superior. E, assim, não posso deixar de me interrogar: Que pérfidos desígnios desviariam o meu juízo para beliscar a honorabilidade dos juízes em geral? Que loucura perturbaria a minha mente para criar a perplexidade que o meu post anterior parece ter causado? Que hodierno Pégaso me conduziria, em alado e desvairado tropel, não ao Monte Helicon, inspirador de musas e poetas, mas às profundezas do indecoro?

Como última ratio, resta-me defender-me perante V. Ex.ª, e perante os leitores que nos possam ter lido, para que a suspeita que pairou sobre a minha modesta escrita, que não foi redigida “de pena ao vento”, como diria Eça, por a ter por meditada, embora no risco de uma simples nuvem poder ser tomada por Juno fazendo cair sobre mim um opróbrio que julgo não merecer. A intenção do meu texto foi apenas a que declaro e que mereceu por parte de V. Ex.ª uma crítica que tenho em minha opinião (e as opiniões valem o que valem) por injusta.

Ou seja, o uso que fiz dos dados estatísticos da avaliação dos juízes teve apenas como leitmotiv chamar a atenção para o pedido público, que insistentemente tenho feito, para que fossem arejados de gavetas oficiais bafientas os elementos respeitantes aos professores. Pedido nunca satisfeito, embora os tenha como valiosos para uma discussão que se eterniza sobre um possível, em minha opinião, laxismo, em contraponto com o parecer dos sindicatos que, ao longo dos anos, sempre tiveram essa avaliação como coisa boa e suficiente para os fins em vista, ainda que numa visão toldada por interesses dos seus associados e dos seus dirigentes.

Com respeito a outras apreciações críticas que se dignou fazer ao meu texto, poderão elas fazer crer, ao leitor que dele faça um leitura em diagonal, terem saído do teclado do meu computador quando, em boa e justa verdade, foram extraídas do livro de Sofia Pinto Coelho. Para bem ou mal dos meus pecadilhos, mantenho o hábito da leitura de livros numa época em que o Google parece despojá-los da tarefa trabalhosa, mas sempre gratificante, da sua consulta como fonte da maior fiabilidade.

Finalmente: “Ora o que se diz no escrito do Autor do Leito de Procusta é que ‘a esmagadora maioria dos juízes é óptima’”. Aceitaria, de melhor grado, até para evitar interpretações enviesadas por parte de leitores menos atentos, que em vez de “escrito” teria um melhor cabimento a palavra “transcrição”. Por outro lado, a classificação de “medíocre”, atribuída a um só juiz, justifica, plenamente, a minha estupefacção e o facto de eu ter ido para a cama com “as cantigas das percentagens”, como escreveu. Sem que isso perturbasse o meu sono.

Entre outras, de acordo ambos numa coisa: esta vida não é um mar de rosas. Por vezes, é até um mar de espinhos, o que o relato que o Senhor Doutor Juiz faz da sua vida profissional, e que eu li em respeitoso acolhimento, bem demonstra.

Respeitosamente,
Rui Baptista

3 comentários:

Anónimo disse...

Senhor Professor Rui Baptista

O seu post é magnífico, escrito com uma elegância pouco comum e um sentido crítico notável.

Eu tinha-me atrevido — já que a essência do tema consistia na avaliação dos professores e dos juízes — a dar uma achega, ainda que modestíssima e despretensiosa. Via-se logo que assim era: completamente sín alharacas. Começava com a confissão de nada saber sobre a classificação dos professores. E como não tinha estudado o assunto, calava-me, dizia eu, quanto a essa parte.

V. Exa. (trans)escrevera que noventa e seis por cento dos juízes estavam classificados de óptimo e eu atrevi-me a entender de outra maneira. Pois se nos noventa e seis por cento estavam os bons, os bons com distinção e os muito bons então bom e muito bom confundiam-se, achava eu, na minha lógica talvez primária. E atrevia-me (teimosias…) a dar o meu próprio exemplo, por ser o que melhor conhecia, sem trazer terceiros a terreiro, o que — presumia e reafirmo-o —poderia ser-me apontado como menos próprio.

Eu falava do que sabia e é claro que V. Exa. percebeu perfeitamente que um bom não é um óptimo nem para juiz nem para professor. Não o admite expressamente, mas como é uma pessoa inteligente não tenho peias em afirmá-lo com toda a convicção e sinceridade.

Admira-me por isso que agora me acuse de eu não ter compreendido a mensagem que quis fazer passar de um possível laxismo na avaliação dos juízes e dos professores do ensino não superior.

Em que é que consiste esse possível laxismo no que diz respeito aos juízes, Senhor Professor? V. Exa. conhece porventura os regulamentos que comandam os critérios de avaliação? Já alguma vez se confrontou com um inspector que nunca tem os olhos sequer meio fechados? Conhece o caso de algum juiz que tenha sido avaliado, por exemplo, nos últimos seis meses? Viu o relatório do inspector?, a rasoira do Conselho?
(continua)

Anónimo disse...

(continuação)
Eu não vi palavras suas contra os juízes em geral, não tenho a mania da perseguição, creia-me. Falo pouco, mas às vezes chego a plagiar um certo filósofo espanhol: "Quando durmo, durmo como uma pedra; mas quando estou acordado, estou muito acordado". E onde é que eu vi pérfidos desígnios da sua parte, Senhor Professor? Quais profundezas do indecoro, Senhor Professor? Se tivesse visto julga que não lho dizia? Claro, são liberdades poéticas…

Fico no entanto a saber que V. Exa. vê possível… laxismo, em contraponto com o parecer dos sindicatos, etc. De forma um pouco menos azeda, mas bem mais berrada, já eu ouvira o mesmo ou semelhante à minha mulher, Catedrática das Letras do Porto, a acompanhar as dores de quem tem que "gramar" alunos vindos do Secundário. Só que ouvir isto em casa ou fora dela não me confere outro sabor senão o da teatralidade, das bandeiras e estandartes desfraldados dum lado e doutro. Tenho outras exigências na compreensão das coisas. Não estou por dentro delas, não as estudei, não ouvi todas as partes, as diferentes versões — calo-me.

No que respeita às classificações dos juízes, aí não estou cego. Sei, sobretudo, e muito bem, que a nota de bom não é o mesmo que a nota de muito bom, não podem ser metidas no saco dos noventa e seis por cento que V. Exa. recebeu de mão beijada, sem - perdoar-me-á - um mínimo grau de exigência. Vi muito bem que V. Exa. transcreveu, mas é perfeitamente detectável que resolveu, por si, aderir à ideia errada que me levou a maçá-lo.

"O silêncio relativo que a necessidade me impõe pode ter por efeito o meu silenciamento total", diz o Aparício dos Aforismos do meu querido José Rodrigues Miguéis.

Apontam-me o dever de reserva que por força do estatuto me cabe. Nunca eu soube o conteúdo de tal dever, deve ser elástico e ao sabor de quem tem que decidir. Espero não o ter quebrado. Por falar do Miguéis, lembro-me do pai dele, o Callante, que não cheguei a conhecer, e que era assim de alcunha porque mandava calar toda a gente (um antecessor modesto (?) do Senhor Rei Dom João Carlos). Dele me falou algumas vezes o meu avô galego que não me recomendava educação mas cautelas: No te busques problemas, los problemas te encontrarán a ti. Nunca, confesso, lhe dei ouvidos neste particular. Ainda assim, o silêncio relativo que a necessidade me impõe terá por efeito a partir de agora, por meu inteiro alvedrio, o meu silenciamento total.

Com o maior respeito,

M. Garcia

Rui Baptista disse...

Senhor Doutor Juiz M. Garcia:

Não posso, nem quero tampouco, deixar de respeitar a vontade de V.Exª, expressa da forma que transcrevo, quando se refere aos conselhos de seu Avô e os transgride em rebeldia de neto: “Ainda assim, o silêncio relativo que a necessidade me impõe terá por efeito a partir de agora, por meu inteiro alvedrio, o meu silenciamento total”.

Mesmo correndo o risco de uma espécie de plágio, ainda que profiláctico, tomo para mim de empréstimo (que a sua generosidade de carácter, pela certa, desculpará) o desejo de não prolongar uma troca de impressões em que tudo foi dito, acrescido do grato prazer de ter tido a honra de conhecer V.Ex.ª de uma forma , que eu me atreveria a classificar de epistolar, embora sem o recolhimento que as missivas postais do carteiro que toca à porta, ou as deixa na carta do correio, garantem.

Estou, portanto, grato ao destino (ou outro qualquer nome que se lhe queira dar) pela grata ocasião que me deu de ter tido a oportunidade (que eu julgo ter agarrado com as mãos ambas) de ter tentado estar à altura da responsabilidade em corresponder à prosa elevada de V.Ex.ª e ao poder argumentativo subjacente. Ademais, sem sombra de lisonja o digo, apenas em cumprimento do que sinto, grato pela benevolência que dedicou à leitura atenta deste meu post mesmo quando dele discordante.

Com renovados e respeitos cumprimentos,
Rui Baptista

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