“A nossa vida é aquilo que os nossos pensamentos fizeram dela” (Marco Aurélio, 121-180).
Razão teve Johann Wolfgang von Goethe quando disse: “Qualquer ideia proferida desperta outra ideia contrária”. Julgo residir aqui a semente deitada à terra da polémica nem sempre bem sucedida quando, em húmus de teimosia, não é “possível discutir com alguém que prefere matar-nos a ser convencido pelos nossos argumentos”, em citação de Karl Popper.
Sei, por experiência de vida, que a polémica não é sempre um campo de peleja de bons costumes e discussões bem intencionadas, na qual o manejo destro e elegante do florete da palavra deve substituir os golpes violentos e desajeitados da espada, que chegou a ser a arma de séculos passados para sustentar argumentos em que a força da razão deixava cair o lábaro aos pés da razão da força. Dois vultos maiores da nossa literatura, Antero de Quental e Ramalho Ortigão, foram protagonistas desse tipo de disputa, na “Questão Coimbrã”.
A própria definição de polémica, “herdada da arte da guerra” (Vitorino Nemésio), nos diz da belicosidade que lhe está subjacente: “Polémico (a) adj. (do grego ‘polémicos’, belicoso, derivado de ‘polemos’, guerra)” – António de Morais Silva, Dicionário da Língua Portuguesa. Mas, para que não paire a sombra pesada de eu mais não ter feito que tornar-me refém de um hábito que, quase diria, me está na massa do sangue, confesso, com o “segredo” de uma confissão pública, que mais não fiz do que ser eu próprio no perfil que de mim traço (embora saiba do perigo em ser, em simultâneo, observador e observado), como aprendiz dessa difícil arte. E por que o fiz e o faço ainda? Porque entendo pessoalmente que o refúgio na tibieza do nosso silêncio, em conceito colhido e adaptado de Sophia de Mello Breyner, “equivale a deixar crer que se não julga e que nada se deseja e, em certos casos, isso equivale, com efeito, a não se desejar coisa alguma”.
Em observância a Fialho de Almeida - “a luta é legítima; eu não respeito as suas ideias, respeito-o a si” -, na polémica fui entusiasta na argumentação, firme nas convicções, retumbante no grito de revolta que levei à planície calma dos indiferentes ou ao palácio ardiloso dos poderosos sem, jamais, esquecer no adversário a pessoa a respeitar. Discuti ideias, contradisse opiniões, mas nunca procurei desabonos desnecessários nos homens que entendi falhos ou diminuídos de razão.
Mas porque vivi em época madrasta da vigência da censura (e mesmo hoje numa liberdade de expressão condicionada pelo medo da ameaça de processos judiciais ainda que a razão nos faça companhia), quando defendi acalorados pontos de vista em letra impressa, sofri ameaças, veladas ou à luz do descaro público. Outras vezes, pedi a exoneração de cargos por me não curvar à vontade de vizires ou, à boa maneira camiliana, por “não respeitar os tolos”.
Merecedor de benevolência pública, me entendo! Mesmo quando cruzei ferros, empunhando na mão a pena (e, recentemente, o teclado do computador mesmo sem a preocupação em ser moderno por esta "ser a única coisa que não podemos evitar," segundo Salvador Dali) em desatino de que me penitencio numa idade em que não deve ser desculpado o moço ardor por causas que nos arrebatam em despropositado entusiasmo.
Quis sempre caminhar na vida com o arrimo que busquei, quantas vezes, em esforçada e vã busca daquilo que eu tinha como verdade. Hoje, órfão da utopia de a ter como minha, desapossado de certezas, reverencio Ortega Y Gasset quando ele nos diz que “a verdade, do ponto de vista da verdadeira cultura, não é o mais importante de decidir; cultura é, frente ao dogma, discussão permanente”.
António Gedeão, perante a teimosia dos que só vêem aquilo que querem ver, ainda que chamados à realidade por um humilde e dedicado Sancho Pança, legou-nos estes versos de difícil subtracção para as nossas teimosas maneiras e conveniências de torcermos as questões: “Onde Sancho vê moinhos / D. Quixote vê gigantes. / Vê moinhos? São moinhos. / Vê gigantes? São gigantes”.
Hoje, e cada vez mais, interiorizo em mim a razão que assiste ao axioma de que “quem feio ama bonito lhe parece”, bem presente em D. Quixote ao transmutar uma feiosa Aldonsa numa formosa Dulcineia. E, se a ilusão do sentido da visão nos pode enganar, mais nos pode enganar o sentimento de termos razão mesmo quando não a temos. Mas só muito raramente a vaidade tem a humildade de o reconhecer!
Sei, por experiência de vida, que a polémica não é sempre um campo de peleja de bons costumes e discussões bem intencionadas, na qual o manejo destro e elegante do florete da palavra deve substituir os golpes violentos e desajeitados da espada, que chegou a ser a arma de séculos passados para sustentar argumentos em que a força da razão deixava cair o lábaro aos pés da razão da força. Dois vultos maiores da nossa literatura, Antero de Quental e Ramalho Ortigão, foram protagonistas desse tipo de disputa, na “Questão Coimbrã”.
A própria definição de polémica, “herdada da arte da guerra” (Vitorino Nemésio), nos diz da belicosidade que lhe está subjacente: “Polémico (a) adj. (do grego ‘polémicos’, belicoso, derivado de ‘polemos’, guerra)” – António de Morais Silva, Dicionário da Língua Portuguesa. Mas, para que não paire a sombra pesada de eu mais não ter feito que tornar-me refém de um hábito que, quase diria, me está na massa do sangue, confesso, com o “segredo” de uma confissão pública, que mais não fiz do que ser eu próprio no perfil que de mim traço (embora saiba do perigo em ser, em simultâneo, observador e observado), como aprendiz dessa difícil arte. E por que o fiz e o faço ainda? Porque entendo pessoalmente que o refúgio na tibieza do nosso silêncio, em conceito colhido e adaptado de Sophia de Mello Breyner, “equivale a deixar crer que se não julga e que nada se deseja e, em certos casos, isso equivale, com efeito, a não se desejar coisa alguma”.
Em observância a Fialho de Almeida - “a luta é legítima; eu não respeito as suas ideias, respeito-o a si” -, na polémica fui entusiasta na argumentação, firme nas convicções, retumbante no grito de revolta que levei à planície calma dos indiferentes ou ao palácio ardiloso dos poderosos sem, jamais, esquecer no adversário a pessoa a respeitar. Discuti ideias, contradisse opiniões, mas nunca procurei desabonos desnecessários nos homens que entendi falhos ou diminuídos de razão.
Mas porque vivi em época madrasta da vigência da censura (e mesmo hoje numa liberdade de expressão condicionada pelo medo da ameaça de processos judiciais ainda que a razão nos faça companhia), quando defendi acalorados pontos de vista em letra impressa, sofri ameaças, veladas ou à luz do descaro público. Outras vezes, pedi a exoneração de cargos por me não curvar à vontade de vizires ou, à boa maneira camiliana, por “não respeitar os tolos”.
Merecedor de benevolência pública, me entendo! Mesmo quando cruzei ferros, empunhando na mão a pena (e, recentemente, o teclado do computador mesmo sem a preocupação em ser moderno por esta "ser a única coisa que não podemos evitar," segundo Salvador Dali) em desatino de que me penitencio numa idade em que não deve ser desculpado o moço ardor por causas que nos arrebatam em despropositado entusiasmo.
Quis sempre caminhar na vida com o arrimo que busquei, quantas vezes, em esforçada e vã busca daquilo que eu tinha como verdade. Hoje, órfão da utopia de a ter como minha, desapossado de certezas, reverencio Ortega Y Gasset quando ele nos diz que “a verdade, do ponto de vista da verdadeira cultura, não é o mais importante de decidir; cultura é, frente ao dogma, discussão permanente”.
António Gedeão, perante a teimosia dos que só vêem aquilo que querem ver, ainda que chamados à realidade por um humilde e dedicado Sancho Pança, legou-nos estes versos de difícil subtracção para as nossas teimosas maneiras e conveniências de torcermos as questões: “Onde Sancho vê moinhos / D. Quixote vê gigantes. / Vê moinhos? São moinhos. / Vê gigantes? São gigantes”.
Hoje, e cada vez mais, interiorizo em mim a razão que assiste ao axioma de que “quem feio ama bonito lhe parece”, bem presente em D. Quixote ao transmutar uma feiosa Aldonsa numa formosa Dulcineia. E, se a ilusão do sentido da visão nos pode enganar, mais nos pode enganar o sentimento de termos razão mesmo quando não a temos. Mas só muito raramente a vaidade tem a humildade de o reconhecer!
4 comentários:
Caro Rui Baptista,
Não imagina quanto me agradou ler este texto, a mim que faço da polémica profissão e que tantas vezes vejo estas verdades de bom senso serem ignoradas, mesmo entre pessoas que se vangloriam da sua formação "superior".
Em primeiro lugar, deixe-me felicita-lo por citar o Dom Quixote. Nas sociedades ibéricas, devia existir uma lei obrigando todos os cidadãos a ler o Dom Quixote pelo menos uma vez todos os cinco anos. Esta la tudo. Eu ja vi aqui muitas vezes debatida a questão de saber o que é um bom professor. Talvez fosse mais facil responder se começassemos por definir, mesmo sumariamente, o que é uma boa formação. Ora, quanto a isto, não tenho duvidas. Uma boa formação consiste em saber ler, saber escrever, saber contar, e ter lido o Dom Quixote... Com semelhante bagagem, vai-se a qualquer lado.
Ora, se leu bem o Quixote, como decerto leu, estara lembrado que no fim do romance, o cavaleiro da triste figura é o unico que atinge a lucidez. Sancho, ao contrario daquilo que se esperaria, desola-se com o fracasso de seu amo e pede mais aventuras, mais ilusão...
Ha aqui um ensinamento importante. Ao concluir a sua obra-prima, Cervantes quis sublinhar que não foi Sancho que mudou Dom Quixote, mas pelo contrario, Dom Quixote que transformou Sancho...
O paradoxo exposto no seu post, bem ilustrado pela citação de Ortega y Gasset, é fundamental, e deveriamos medita-lo todos os dias. Como profissional da polémica que ama profundamente a sua profissão de advogado, julgo ter alguma legitimidade para me pronunciar sobre o que ele significa.
Para fazê-lo com perfeição, seria necessario alongar-me muito mais do que permitido num blogue. Vou portanto falar por enigma e dizer que eu não poderia trabalhar se não me norteasse pela seguinte maxima, na qual vejo expresso de forma positiva o que esta exposto no seu post (mas de forma negativa) :
"Não me custa admitir que posso errar. Não vejo nisso nenhum motivo de humilhação, de desconsideração ou de magoa. O que me pode incomodar, é antes NAO COMPREENDER porque erro. Isto, sim, pode por-me em causa..."
Stude, non ut plus aliis scias, sed ut melius.
Bom texto.
Caro Rui:
Portugal precisa de mais discussões de ideias. Na política, na economia, nas ciências, nos costumes, etc., Portugal precisa de debates em que se comparem diferentes visões dos problemas e das suas possíveis soluções.
Infelizmente os debates que por cá se fazem tornam-se rapidamente choques de egos e de interesses e as únicas ideias que por lá aparecem são ideias feitas. Dito de outra maneira: neles discutem-se palavras e com frequência pessoas mas não ideias.
Julgo portanto que as ideias que defendeu no seu texto são verdadeiras e que a sua afirmação pública é útil e necessária.
Mas, já que de polémicas se trata, deixe-me dizer-lhe que não me agradou muito o estilo que adoptou ao escrever. Demasiadas citações, um português muito pesado... De modo geral não gosto desse estilo, mas neste caso particular considero-o especialmente desajustado - as ideias que defendeu pediam, por uma questão de afinidade, um estilo mais leve e claro.
Acabo de publicar um "post" em resposta ao comentário de João Viegas.
Logo que possível, responderei ao comentário de Vera Y. Silva. A ambos o meu agradecimento pela atenção dispensada.
Cordiais cumprimentos
Rui Baptista
.
Prezada Vera Y. Silva:
Acredite que é sempre com muito prazer que recebo e leio cuidadosamente os seus comentários aos meus post’s. Atrasei-me na resposta pela publicação do meu último “post”, “O futuro da Educação numa Educação sem futuro(17/11/2009) e de uma resposta a uma acusação que me é feita em que a ameaça se substitui a uma resposta. Se se der ao trabalho de ler o “post”, e o comentário a que me refiro, poderá fazer um juízo da situação.
Concordo consigo em dois aspectos do último parágrafo do seu comentário, dividindo-o, para uma melhor sistematização, em duas partes. Quando nele elogia a sua oportunidade (1.ª parte) e o critica quanto ao estilo (2.ª parte) que eu tenho, embora fugindo à sua generalização, credor do pensamento do conde de Buffon : “O estilo é o próprio homem”.
Dou-lhe razão quando, razão que que declaro publicamente, quando critica o estilo deste meu “post por um possível abuso de citações, por um português muito pesado que eu atribuo, em parte, à leitura apaixonada que fiz, desde jovem, de autores clássicos com Eça e Ramalho (li vária vezes “As Farpas” na sua versão imensa e volumosa de volumes), menos de Aquilino Ribeiro e mais de Camilo, de que penso não ter herdado o espírito caceteiro (a Vera melhor o dirá), quando ameaça numa das suas polémicas: “Querem cacete? Terão cacete!” ( em citação de memória).
Quanto à polémica que cultivo com gosto, embora o gosto possa não significar qualidade, o seu (ab)uso vem de longe, mesmo antes de ser vítima de uma polémica em que me foi vedado, pelos detentores do poder da imprensa escrita, fazer uso do direito de resposta. Tratou-se de uma polémica que me obrigou a publicar o livro “Sem Contemporizar”(1972), em trabalho de investigação no tempo que nem computadores havia. No seu prefácio, quanto mais não seja, embora seja muito para a recordação desse tempo, fui agraciado por um texto escrito por um bom Amigo, professor universitário falecido poucos anos atrás. Que me seja desculpado o orgulho, de que não abdico, de uma pequena transcrição que dele faço:
“Não é de admirar, pois, que tenha defendido, desde que o conheço (e já lá vão um ror de anos, embora ambos sejamos jovens) a sua posição em particular e da sua classe, em geral. Defesa essa em que tem sido intransigente, mesmo quando fica sozinho e luta até ao último alento: até quando lhe falta o apoio daqueles que sobre estes assuntos se deveriam pronunciar, e o não fazem, limitando-se a colher os benefícios, quando os há. Da luta que ele te travado. O opúsculo que ora publica é mais uma faceta dessa luta. Quem o ler que julgue da sua razão ou sem razão. Assim seja capaz de o fazer de espírito aberto e sem ideias preconcebidas. O que, na realidade, é muito difícil. Mas o autor merece-o. Garanto-vos”.
Como vê, pedindo desculpa por mais uma citação, desta feita menos pomposa por se tratar de um ditado popular, “burro velho não aprende línguas”. Mas tentarei!
Com os cumprimentos cordiais e a gratidão de saber que lê, de quando em vez, os meus “post’s”.
Rui Baptista
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