domingo, 15 de novembro de 2009

Mas Saramago é obra

Vários comentários a textos publicados neste blogue sobre o último livro de José Saramago, recorrem ao argumento de que estamos perante um Nobel traduzido em dezenas de línguas e lido por milhões de pessoas. Qualquer crítica dirigida à sua obra, por exemplo detecção de erros, pouco ou nenhum sentido terá, revelando uma atitude destrutiva. Ora, não é na obra do escritor, no seu todo, que algumas pessoas (objecto de atenção por parte de Pilar del Rio) se têm detido, mas sim em aspectos de um livro ou relacionados com um livro. Na verdade, Saramago não é apenas esse livro... A este propósito recuperamos um texto de João Boavida, publicado em As Beiras em Setembro de 2008, há mais de um ano, portanto.

"É um caso notável e exemplar a vários níveis: a origem humilde e a formação académica reduzida e de natureza técnica; a tarimba de longos anos numa, digamos, segunda linha literária, como revisor tipográfico, tradutor e consultor editorial; o ter começado tarde, ou melhor, sido arrancando para a fama quase na velhice, é caso para admirar. E o saber assumir não só a fama mas também as canseiras que acarreta: viagens, entrevistas, colóquios, discursos, cerimónias, autógrafos, revela um sentido de dever que se deve realçar.

Os trabalhos forçados das traduções e revisões deram-lhe muita leitura, experiência e estofo que ele soube aproveitar. O tempo de maturação é sábio, mas quem o compreende hoje? Saramago entendeu-o e aprendeu por si muita coisa, e servindo-se do talento que andou muitos anos escondido, a ganhar força, projectou-se subitamente de uma forma esplendorosa. De repente, com toda a gente a olhar para outros lado, isto é, para outros autores, um nome até aí muito discreto surge na ribalta, feérico sob uma imensa onda de aplausos.

Já ouvi muitas explicações para o fenómeno: a máquina de propaganda que foi montada, a grande influência de Pilar del Rio (e por que não também de Isabel da Nóbrega?); a militância comunista e o apoio que representa, etc. Tudo boas razões, talvez determinantes. Seja como for, a obra aí está.

Antes de tudo ele impôs um estilo original, algo difícil a princípio, mas envolvente e logo depois atraente. Foi, e é sedutor ir atrás daquela toada, aceitar os diálogos no meio da narração (coisa agora já corrente) reconhecer as vírgulas como pontos finais, eliminar muita pontuação e coisas assim. Ousadias que não se recomendam a um aprendiz, é certo, mas que um mestre pode fazer. Se souber. E que na sua obra são coisas menores face à efabulação que vai tecendo, ao visual, à cor da sequência narrativa que pega, larga e retoma, e onde as palavras têm um papel senhorial porque nos prendem, seduzem e gloriosamente nos subjugam e encantam. E uma vez que a sintaxe é segura, como não reconhecer que estamos perante obra de grande valor?

Partindo quase sempre de uma ideia forte e original, Saramago, com um discurso envolvente e contínuo, vai ao encontro do leitor – do bom leitor, entenda-se – e do seu desejo de sentir o sabor das palavras, o seu peso específico. Mas na força maior da sua própria natureza que é a frase: longas e contínuas relações de ideias, problemas, enredos e ressonâncias, umas vezes poéticas, outras vezes irónicas, de vez em quando sarcásticas, que se vão desenvolvendo sem cessar e por onde a história e a moralidade inerente passam, sem pressas.

Desaconselhável para atrair públicos novos, dir-se-ia. Mas o interessante é que isto, que a muitos ainda desagrada, a muitos mais já agrada e muito, e parece que cada vez mais, mostrando que o sentido estético das pessoas para a literatura está bastante à superfície. E que alguma educação literária seria suficiente para pôr milhões a exigir, e a usufruir, a grande literatura. Como interpretar o seu rápido e consistente sucesso, o número extraordinário de traduções de todos os seus livros e a aceitação quase universal da sua obra? Para nós, portugueses, é muito bom que tenhamos o mais falado, lido e celebrado Nobel dos últimos tempos. E mais reconfortante é sentir que não é um Nobel dado por engano e que boa parte da sua obra se vai aguentar bem.

Agora note-se a vingança da história face ao triste episódio Sousa Lara. O Evangelho segundo Jesus Cristo pode incomodar aqui ou acolá, mas tem páginas magníficas de tal sensibilidade e beleza que tudo transfiguram, dando profundidade estética e afectiva à própria problemática que levanta. Muitos ficaram a odiar Saramago por este belo livro, mas anos depois leram, aos milhões, com entusiasmo e sem reclamar O Código Da Vinci, que, literariamente, nem de longe lhe chega aos calcanhares. Ironias do destino.

João Boavida

1 comentário:

Manuel de Castro Nunes disse...

Bem, o papel de um escritor é escrever. O papel de um leitor o de ler.
O meu sincero respeito pelo itinerário pessoal de Saramago.
O facto, todavia, de ter colhido um Nobel não sacraliza a sua obra, nem deve inibir a liberdade crítica. Não há consagração que possa furtar um escritor à crítica. Sob o risco de podermos por a obra de Saramago no pé em que muitos querem por a Bíblia.
E houve muitos galardoados que optaram por se furtar à canseira das cerimónias. Alguns rejeitaram os galardões.
Mas, na realidade, o que entrou agora no domínio da crítica e da análise literária foi o livro. E um livro é um livro, uma obra é uma obra. A obra já foi galardoada.
A Bíblia reúne vários livros. Seria no mínimo tonto aplicar a todos eles os mesmos critérios de leitura e os mesmos juízos.
E, na minha tacanha opinião, a caracterização do estilo literário de Saramago por parte de João Boavida, perdoe-me, não me parece emitida por alguém que atingiu o âmago do estilo e do conteúdo emisso pelo escritor. Do ponto de vista da forma, a novidade das liberdades que assinala estava consolidada pelo núcleo precursor que debutava na década de sessenta do Século passado no DL Jovem.
A promiscuidade entre as cerimónias e a análise e crítica da obra literária passa-me ao lado. Passará sempre ao lado de qualquer leitor tão diligente em ler, como Saramago em escrever.
E continuo a preferir ler o que Saramago escreve, do que ouvir o que Saramago diz.
De uma coisa estou certo. A sacralização não qualificará nem a obra nem o livro.

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