“O carácter essencial do espírito histórico não consiste na restauração do passado, mas antes numa mediação reflectida com a vida contemporânea” (Hans-Georg Gadamer, 1900-2002).
Meu Caro João Boaventura:
Se, como escreveu Jorge Luís Borges, “temos como futuro o esquecimento”, para situar a questão da docência da disciplina da Matemática nos liceus, perante o leitor que aqui chegue sem ter lido os respectivos antecedentes, começo por dizer que o motivo deste meu texto, para além do seu oportuno comentário ao meu “post “Uma Nova Reflexão Sobre o Sistema Educativo Português (2)", de 22 de Novembro último, foi um comentário anterior de um outro leitor ao meu post “Uma Nova Reflexão Sobre o Sistema Educativo Português (1)", datado de véspera e que passo a citar: “A Matemática era miseravelmente dada, nos sítios onde era dada, na província frequentemente dada por oficiais do exército que faltavam e pouco ou nada sabiam do que estavam a dar” . Ou seja, desta forma, poder-se-ia entender (eu pelo menos assim o entendi) que muito do estado lastimoso a que chegou o ensino e a aprendizagem da matemática se ficou a dever à acção “nefasta” dos oficiais do exército.
Em atitude de louvar, quis o João Boaventura ir mais ao fundo da questão, debruçando a sua atenção a anos derradeiros da monarquia quando o Ministério do Reino estabeleceu, em 1908, a regência provisória nos liceus do reino por parte de oficiais do exército (em que o adjectivo quer significar isso mesmo: exercício interino de um cargo até que seja nomeado alguém para o mesmo) por carência de professores civis formados na Universidade de Coimbra, na Escola Politécnica de Lisboa ou, ainda, na Academia Politécnica do Porto.
De certo modo, isto faz-me lembrar a fábula do cordeiro e do lobo de La Fontaine para que o desastroso e actual estado do ensino da Matemática não seja atribuído a oficiais do exército do nosso tempo nem a épocas de uma paternidade com raízes em finais da Monarquia Portuguesa. Isto porque, em meu parecer, o papel de lobo esfomeado coube ao período conturbado após o 25 de Abril e de que ainda o país não se recompôs, com reflexos evidentes no mau aproveitamento actual dos alunos.
Busco, pois, razões mais recentes que eu atribuo, em parte e com respaldo na opinião do professor universitário Eugénio Lisboa, à acção de sindicatos que “para tudo isto têm dado uma eficaz mãozinha, não raro intervindo, com desenvoltura, em áreas que não são nem da sua vocação nem da sua competência”. Reportando-me a épocas pós-25 de Abril, alturas houve em que por razões políticas eram colocados nos liceus “professores”, por vezes com habilitações académicas que os podiam recomendar para profissões outras que não o ensino. Conta-se até o caso de um desses “professores” que, na aula de apresentação, terá dito aos alunos: “Perguntem-me tudo o que quiserem sobre tudo menos sobre questões da matéria que vou leccionar porque eu dela sei tanto ou menos que vocês.”
Entretanto, os sindicatos dos professores, em reprovável atitude mercenária, aceitavam a inscrição de quem desse aulas sem qualquer habilitação em desrespeito pela dignidade da profissão docente como se, por exemplo e ainda que ab absurdo, o Sindicato dos Médicos Veterinários aceitasse a inscrição de "ferradores" para lhe aumentar a torrente de quotas de associados.
Até ao aparecimento das Escolas Superiores de Educação (a primeira criada em Viseu, em 1983), o ensino da então chamada aritmética era ministrado por professores diplomados pelas Escolas do Magistério Primário, esforçados cabouqueiros (reconhecimento que parece ter caído na penumbra do esquecimento) que se orgulhavam do facto de os alunos saídos das suas mãos saberem as quatro operações, a tabuada de cor e salteado e serem capazes de resolverem problemas com uma certa complexidade.
Posteriormente, foram criadas as Escolas Superiores de Educação em tudo quanto era sítio, inicialmente para a formação de educadores de infância e professores do 1.º ciclo do ensino básico, mas logo passaram a ministrar cursos para professores do 2.º ciclo com os olhos postos na formação de professores para o 3.º ciclo, como, aliás, veio a acontecer com a publicação da Lei n.º 49/2005, de 30 de Agosto.
Corria o dia 8 de Outubro de 1996, já então a Sociedade Portuguesa de Matemática alertava o poder político e o público em geral para “as eventuais consequências negativas decorrentes da formação dos professores de Matemática nas escolas superiores de educação que não têm quadros científicos que garantam uma formação de qualidade”. Em consequência e na louvável intenção de colmatar esta deficiência tem essa sociedade organizado cursos de formação para esses docentes.
A propósito, é bom lembrar que as vagas nas Escolas Superiores de Educação para a formação de professores do 1.º ciclo estiveram durante muitos anos às moscas dando azo à situação desastrosa de deixar a formação dos alunos da antiga instrução primária ao deus-dará, ou seja, nas mãos de pessoas impreparadas ou deficientemente preparadas. Isto porque os seus alunos passaram a inscrever-se massivamente no cursos destinados à docência do 2.º ciclo devido u ao maior prestígio social (?) e à possibilidade de encontrarem colocação em terras mais próximas de casa e em centros populacionais mais populosos.
Meu caro João Boaventura, são estas algumas das razões que enumerei a eito, e provavelmente sem jeito, sobre algumas das razões do mau desempenho (com honrosas excepções, já que não há regra sem excepções) dos nossos escolares na Matemática, base de todo o conhecimento científico posterior já que nas próprias humanidades ela passou a ter lugar.
Bem sei que, segundo Marguerite Yourcenar, “toda a verdade gera um escândalo”. Mas mais escandaloso seria eu pactuar com o anátema de que o descalabro actual da Matemática se ficou a dever ao magistério dos oficiais do exército. Atrevo-me a pensar que foi essa também a sua intenção ao listar os diversos grupos disciplinares por eles ministrados em finais da Monarquia Portuguesa. Daí eu estar-lhe grato pela oportunidade do seu comentário.
Meu Caro João Boaventura:
Se, como escreveu Jorge Luís Borges, “temos como futuro o esquecimento”, para situar a questão da docência da disciplina da Matemática nos liceus, perante o leitor que aqui chegue sem ter lido os respectivos antecedentes, começo por dizer que o motivo deste meu texto, para além do seu oportuno comentário ao meu “post “Uma Nova Reflexão Sobre o Sistema Educativo Português (2)", de 22 de Novembro último, foi um comentário anterior de um outro leitor ao meu post “Uma Nova Reflexão Sobre o Sistema Educativo Português (1)", datado de véspera e que passo a citar: “A Matemática era miseravelmente dada, nos sítios onde era dada, na província frequentemente dada por oficiais do exército que faltavam e pouco ou nada sabiam do que estavam a dar” . Ou seja, desta forma, poder-se-ia entender (eu pelo menos assim o entendi) que muito do estado lastimoso a que chegou o ensino e a aprendizagem da matemática se ficou a dever à acção “nefasta” dos oficiais do exército.
Em atitude de louvar, quis o João Boaventura ir mais ao fundo da questão, debruçando a sua atenção a anos derradeiros da monarquia quando o Ministério do Reino estabeleceu, em 1908, a regência provisória nos liceus do reino por parte de oficiais do exército (em que o adjectivo quer significar isso mesmo: exercício interino de um cargo até que seja nomeado alguém para o mesmo) por carência de professores civis formados na Universidade de Coimbra, na Escola Politécnica de Lisboa ou, ainda, na Academia Politécnica do Porto.
De certo modo, isto faz-me lembrar a fábula do cordeiro e do lobo de La Fontaine para que o desastroso e actual estado do ensino da Matemática não seja atribuído a oficiais do exército do nosso tempo nem a épocas de uma paternidade com raízes em finais da Monarquia Portuguesa. Isto porque, em meu parecer, o papel de lobo esfomeado coube ao período conturbado após o 25 de Abril e de que ainda o país não se recompôs, com reflexos evidentes no mau aproveitamento actual dos alunos.
Busco, pois, razões mais recentes que eu atribuo, em parte e com respaldo na opinião do professor universitário Eugénio Lisboa, à acção de sindicatos que “para tudo isto têm dado uma eficaz mãozinha, não raro intervindo, com desenvoltura, em áreas que não são nem da sua vocação nem da sua competência”. Reportando-me a épocas pós-25 de Abril, alturas houve em que por razões políticas eram colocados nos liceus “professores”, por vezes com habilitações académicas que os podiam recomendar para profissões outras que não o ensino. Conta-se até o caso de um desses “professores” que, na aula de apresentação, terá dito aos alunos: “Perguntem-me tudo o que quiserem sobre tudo menos sobre questões da matéria que vou leccionar porque eu dela sei tanto ou menos que vocês.”
Entretanto, os sindicatos dos professores, em reprovável atitude mercenária, aceitavam a inscrição de quem desse aulas sem qualquer habilitação em desrespeito pela dignidade da profissão docente como se, por exemplo e ainda que ab absurdo, o Sindicato dos Médicos Veterinários aceitasse a inscrição de "ferradores" para lhe aumentar a torrente de quotas de associados.
Até ao aparecimento das Escolas Superiores de Educação (a primeira criada em Viseu, em 1983), o ensino da então chamada aritmética era ministrado por professores diplomados pelas Escolas do Magistério Primário, esforçados cabouqueiros (reconhecimento que parece ter caído na penumbra do esquecimento) que se orgulhavam do facto de os alunos saídos das suas mãos saberem as quatro operações, a tabuada de cor e salteado e serem capazes de resolverem problemas com uma certa complexidade.
Posteriormente, foram criadas as Escolas Superiores de Educação em tudo quanto era sítio, inicialmente para a formação de educadores de infância e professores do 1.º ciclo do ensino básico, mas logo passaram a ministrar cursos para professores do 2.º ciclo com os olhos postos na formação de professores para o 3.º ciclo, como, aliás, veio a acontecer com a publicação da Lei n.º 49/2005, de 30 de Agosto.
Corria o dia 8 de Outubro de 1996, já então a Sociedade Portuguesa de Matemática alertava o poder político e o público em geral para “as eventuais consequências negativas decorrentes da formação dos professores de Matemática nas escolas superiores de educação que não têm quadros científicos que garantam uma formação de qualidade”. Em consequência e na louvável intenção de colmatar esta deficiência tem essa sociedade organizado cursos de formação para esses docentes.
A propósito, é bom lembrar que as vagas nas Escolas Superiores de Educação para a formação de professores do 1.º ciclo estiveram durante muitos anos às moscas dando azo à situação desastrosa de deixar a formação dos alunos da antiga instrução primária ao deus-dará, ou seja, nas mãos de pessoas impreparadas ou deficientemente preparadas. Isto porque os seus alunos passaram a inscrever-se massivamente no cursos destinados à docência do 2.º ciclo devido u ao maior prestígio social (?) e à possibilidade de encontrarem colocação em terras mais próximas de casa e em centros populacionais mais populosos.
Meu caro João Boaventura, são estas algumas das razões que enumerei a eito, e provavelmente sem jeito, sobre algumas das razões do mau desempenho (com honrosas excepções, já que não há regra sem excepções) dos nossos escolares na Matemática, base de todo o conhecimento científico posterior já que nas próprias humanidades ela passou a ter lugar.
Bem sei que, segundo Marguerite Yourcenar, “toda a verdade gera um escândalo”. Mas mais escandaloso seria eu pactuar com o anátema de que o descalabro actual da Matemática se ficou a dever ao magistério dos oficiais do exército. Atrevo-me a pensar que foi essa também a sua intenção ao listar os diversos grupos disciplinares por eles ministrados em finais da Monarquia Portuguesa. Daí eu estar-lhe grato pela oportunidade do seu comentário.
9 comentários:
Se esses antigos oficiais do exército tivessem que escolher entre a tabuada e a máquina de calcular não optariam certamente por esta última. E certamente não lhes passaria pela cabeça considerar a memorização, a repetição e o exercício incompatíveis com o raciocínio e a criatividade.
Caro Rui Baptista,
Proponho-lhe uma leitura atenta ao programa de "matemática" do "ensino" básico! Este documento pode ser encontrado no sítio web da Direcção Geral de "Inovação" e "Desenvolvimento" Curricular.
Julgo que terá muitas dificuldades em acreditar naquilo que por lá encontrará e que muitas vezes sentirá vontade de gritar por verificar, página após página, que o cerne do problema é ideológico e que essa ideologia foi imposta, há muitos anos, por uma fé que se autodenominou de "ciências" da educação! E, hoje, a grande maioria dos "professores" que "leccionam" nas "escolas" geridas pelo ministério da "educação" professam essa fé; e, como tal, não vejo forma de evitar que a "escola" pública seja no prazo máximo de 10 anos a "escola" dos pobres! Mas parece que a culpa disto tudo é dos... militares!!!
Os textos do Rui Baptista são quase sempre interessantes, quer os posts quer as respostas aos comentários dos leitores (e é justo referir que nesse aspecto tem uma prática bastante diferente dos outros autores do Rerum, que são um bocadinho - vou ser suave - sobranceiros relativamente aos leitores).
Mesmo assim o que seria realmente interessante seria que a resposta ao comentário do Fartinho da Silva fosse dada pela Helena Damião. Por uma razão simples: ela é da área das Ciências da educação, mas não se exprime em "eduquês". O que é raro. O que pensa ela da ideologia subjacente a esses programas de matemática?
Prezado Fartinho da Silva:
Cá estamos nós hoje uma vez mais, em “tertúlia” de comentários que muito gratificantes são para mim, a tentar arrumar uma casa em que as portas rangem de queixas pelo estado a que chegou o ensino em Portugal, e em que os culpados desse desleixo são sempre outros que não os seus responsáveis.
Desta feita, o cepo de marradas da ignorância que tem cabeça de touro, como escreveram Eça e Ramalho em “As Farpas”, são os oficiais do exército.
Prezada Vera Y. Silva:
Saúdo o seu reaparecimento que muito aprecio pelos comentários que faz aos meus post's. Há quem pense, a exemplo, que os computadores são o abre-te Sézamo do conhecimento. Auxiliam não substituem, de forma alguma, o papel da memória se tivermos em conta que o pensamento é uma associação de ideias que devemos ter à mão como nas nossas bibliotecas privadas temos os nossos livros sem necessidade de nos deslocarmos a bibliotecas públicas aguardando a hora de abertura.
Tempo virá (se não está já mesmo entre nós) em que se perguntarmos a um aluno do secundário quem foi o 1.º Rei de Portugal ele nos responderá: “Um momento vou ao 'google', e já lhe digo!"
O mesmo sucede já com operações simples de somar que dantes se faziam de memória e que hoje exigem o dedilhar das máquinas de calcular. O “Admirável Mundo Novo” corre o risco de se tornar num mundo novo, sim, mas nada admirável. Enfim, como diriam, os nossos avós: modernices!
"Tempo virá (se não está já mesmo entre nós) em que se perguntarmos a um aluno do secundário quem foi o 1.º Rei de Portugal ele nos responderá: “Um momento vou ao 'google', e já lhe digo!""
So peca por tardio. Saber quem foi o primeiro ou décimo rei de portugal é irrelevante. Deixem de enxer a cabeça dos putos com este lixo.
Ao Abuarda:
Saber o que quer que seja é irrelevante. Mesmo saber que o google existe. A ignorância dá felicidade. Quem me dera ser vaca, elas nem à entrada do matadouro percebem que vão morrer. Enquanto nós...basta termos a tensão alta para nos sentirmos infelizes. Às vacas nem um cancro aflige. Não têm a cabeça cheia de lixo...
Escrever sem erros ortográficos vai sendo cada vez mais difícil, embora facilitada a tarefa pelo (ab)uso dos correctores de texto dos computadores.
Mas "tempo virá(se já não está mesmo entre nós)" em que o jovem quando obrigado a preencher um formulário manuscrito dará mais erros ortográficos que palavras escritas correctamente. É isso que eu temo que já esteja a acontecer. E o Miguel Abuarda?
Miguel:
se tivesse um pouco mais desse lixo na cabeça talvez já não dissesse estes disparates!
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