domingo, 6 de setembro de 2009

Ideias e tribalismos

Do texto de Fernando Savater de que aqui transcrevi uma parte deixo outra que a complementa, e na qual o filósofo distingue ideias de tribalismos.


"Ter algo assim assemelhado a um orgulho comum de partilhar uma imagem de civilização política baseada na lei, baseada nos direitos, baseada na protecção das minorias, no pluralismo, na institucionalização da tolerância, etc. Quer dizer, criar essa imagem de cidadão, de um cidadão que não prolongue meramente a tribo na cidadania, mas que acredita que a cidadania é a sua verdadeira identidade, que se identifique com a cidadania e não com as suas características tribais. Essa parece-me que seria a grande contribuição europeia.
(…)
Que futuro terá um país que se organize de acordo com critérios que não sejam critérios políticos? (…) Que não tenha a ver com ideias, que só tenha a ver com rótulo étnicos. O século XX esteve dominado pelo peso, por vezes sufocante, das ideias políticas. A história da Europa, a trágica história da Europa do século XX, é a tragédia do enfrentamento das ideias políticas destrutivas, devoradoras, totalitárias, que se confrontaram entre si, criando desastres sociais, campos de concentração, matanças massivas, e tudo o que vocês sabem. Mas, de alguma forma, lançaram-se no debate ideias sobre a forma de conviver no futuro. As ideias políticas, por muito atrozes que tivessem sido, são ideias que (…) têm argumentos a seu favor, ainda que nos possam parecer pouco convincente ou, mesmo, negativos. Mas, em contrapartida, face aos rótulos e às etnias não há argumentação possível. Ou se pertence ao grupo ou se está definitivamente excluído.

As ideias podem ser efectivamente destrutivas, podem ser terríveis, podem levar ao fanatismo, mas, em contrapartida, as etnias são forçosamente fanáticas porque não permitem a adesão de outras pessoas ao grupo (…) As ideias, más ou boas,não têm estrangeiros, têm partidários ou adversários. Mas, em princípio, ninguém é estrangeiro de uma ideia.
(…)
Aqui é bom que falemos de Voltaire. Voltaire quando defendeu a tolerância, criticou essa posição do fanático que diz: «pensa como eu, ou morres». Claro que isso é um fanatismo intolerável e que obriga uma pessoa a decidir entre dizer o que pensa, ou fingir que pensa, ou ser perseguido e morrer. Isso é terrível, mas mais terrível é quando alguém diz «se não fores como eu, morres» ou «se não fores como eu, deves ir-te embora, deves sair daqui», porque isso não deixa possibilidade de conversação, nem de pacto, nem de partilha de nenhum tipo. Essa invenção do estrangeiro converteu a Europa num dos… para mim, é um dos grandes problemas da convivência.

Impressionou-me, particularmente, a visita de dois jornalistas, um homem e uma mulher de Sarajevo. Quando começou o conflito em Sarajevo, visitaram o jornal El País, onde eu habitualmente colaboro, e falaram comigo. Então, um deles disse: «juro-te que até há seis meses na sabia se o meu vizinho que vivia na casa acima era croata, sérvio, muçulmano, eu não o conhecia». O mesmo acontece na minha casa de Madrid! Eu não sei se o vizinho que vive abaixo nasceu em Valência ou veio do Perú (…). Não o conheço e nem, sequer, me interessa, salvo se estabelecer algum tipo de amizade ou de relação pessoal com ele.

Então, dizia-me esse jornalista: «(...) Mas, de repente, tive de tomar consciência do seu lugar de pertença porque a minha vida dependia disso. Havia-se criado uma situação em que a minha segurança dependia de não me enganar a respeito de quem se cruzava comigo na escada, se era amigo ou inimigo, não por qualquer razão especial mas pelo rótulo étnico» (…)

Pessoas que nasceram no mesmo lugar, que conviveram e que, de alguma forma, partilharam os mesmos odores, os mesmos sabores, a mesma paisagem na infância, que nasceram e cresceram juntos e, de repente, cria-se a obrigação duma separação entre eles (…)

Durante muitos anos, nós, em Espanha, tivemos de suportar a descrição do que era um verdadeiro espanhol. O verdadeiro espanhol não era qualquer pessoa que fosse espanhola, teria de reunir umas quantas condições estabelecidas por quem podia emitir certificados de «espanholidade» correcta. Então, o verdadeiro espanhol era católico, o verdadeiro espanhol era anticomunista, o verdadeiro espanhol falava castelhano e nenhuma outra língua inferior, o verdadeiro espanhol, pois, era do Real Madrid, enfim… Teria uma série de condições que não posso pormenorizar, mas todos sabíamos que havia uma descrição do que era o verdadeiro espanhol, e isso não era qualquer um.

E, quando nos libertámos disso, quando vimos que se podia ser espanhol de formas muitas diferentes, que se podia ser espanhol falando outra língua que não apenas o castelhano, que se podia ter uma ideologia que não apenas a do governo, que não era obrigatório ser crente do catolicismo para se ser considerado espanhol, e tudo isso, quando parecia que já tínhamos sacudido essa obrigação de um espanhol étnico e o havíamos substituído por um espanhol cidadão, quer dizer, um espanhol sobretudo virado para o futuro (…), de repente, numa parte de Espanha, no caso o País Basco, ressurgiu o «verdadeiro Basco e o falso Basco». De tal modo que Júlio Caro Baroja, o antropólogo sobrinho-neto de Don Pio Baralo, o romancista que foi meu colega durante um tempo na universidade no País Basco, dizia-me: «Veja lá Savater, que desgraça a minha… passei quarenta anos sendo um mau espanhol e agora converti-me num mau basco».

Bom, essa é uma das maldições que nos pode atingir. É uma maldição trágica. Não é somente algo retórico, mas algo que pode ter e está, efectivamente, tendo (…) um peso de morte. Há um livro muito interessante, bem, um ensaio do sociólogo alemão (…) Ulrich Beck (…), que se chama De vizinhos a judeus, que narra como um vizinho, quer dizer, a pessoa com a qual convivemos (…) de um momento para o outro, por uma questão ideológica, de etnia, de categorização étnica, se converte num judeu. Melhor, converte-se no inimigo, na pessoa a excluir (…). E isto é tanto mais terrível, se pensarmos que não se trata de um estrangeiro o qual se quer afastado, manter fora. Trata-se de uma pessoa que estava junto de nós e que transformamos num estrangeiro.

Assim, o terrível da guerra étnica não é simplesmente que se apliquem critérios de exclusão face ao estrangeiro que está fora, o que já é suficiente mau numa Europa que quer unir-se, o terrível é criarem-se novos mecanismos de exclusão e de estrangeiramento no seio da própria convivência."

Referência bibliográfica:
- Savater,
F. (2005). Identidade e Cidadania. Iberografias. Ano 1, n.º 1, páginas 27-31.

Imagem:
- Fotografia de V. Fraga (1912-2006).

2 comentários:

joão boaventura disse...

É curioso este trabalho sobre a identidade que vi também retratada no ensaio de Georges Steiner sobre a "Ideia da Europa" (Gradiva, 2004), onde expõe que essa identidade se revela nos cafés que nela proliferam, porque foi nesses espaços, que se desenvolveram autênticos centros de debate político ou de tertúlias literária, científica e artística, especialmente a partir do século XVIII.

Acrescenta o autor que:

"Esta ideia foi aproveitada pela presidência austríaca, em 2006, para propor a comemoração do dia da Europa (9 de Maio), em 27 cafés europeus com tradição popular, onde o Martinho da Arcada, de Fernando Pessoa, representou o de Portugal."

Ignoro se a falecida Pina Baush, na coreografia da dança, com o título "Café Muller", pretendeu recriar a alegoria dos cafés europeus.

Anónimo disse...

O autor cita Voltaire. Esse, como um dos maiores expoentes do iluminismo, sabia muito bem do perigo do humor, o qual fora justamente sua 'arma'; além disso, Voltaire só não decaiu em círculos conceitualmente tribais porque era filósofo, no sentido forte da palavra. As indicações conceituais que o humor permite, como reflexão, são muito fortes do ponto de vista da extensão a que abrange, mas delicadas quanto ao reconhecimento do sentido que se quer mostrar, quanto a recepção por alguém por exemplo. Dessa forma, se pode mostrar um fascista enrustido através de um humor sobre a base políticop cultural, como o absoluto contrário disso. Por isso, penso, há de se ter em vista no mínimo o pensamento contextual tanto do que se diz, quanto de quem diz, sobretudo em âmbito público.

Me refiro ao humor porque, especialmente esse ano de 2011, com inúmeras marchas da liberdade étnica/sexual/imprensa muitas vezes se esquece do chão político que se deve ter como guia, deixando-se corporativizar corruptos desejos tribais, os quais só são toleráveis em círculos, talvez, de amizade. É interessante se ter orgulho da possibilidade de se ter orgulho, mas postular solidamente ideologias retrógradas, fundadas muitas vezes num positivismo torpe, é algo muito perigoso.


André Luiz Ramalho da Silveira
Mestrando em Filosofia pela UFSM - RS - BR

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