domingo, 13 de setembro de 2009
As leis naturais, as leis humanas e as relações entre umas e outras
Minha contribuição para um livro, a sair muito em breve, do Tribunal da Relação de Lisboa (um texto um pouco mais longe do que é costume aqui mas uma vez não são vezes...):
O saudoso Doutor Orlando de Carvalho, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, quando um dia proferi a seu convite uma conferência sobre a origem do Universo no Instituto de Coimbra e me referi às leis naturais, perguntou-me com o seu particularíssimo humor: “Então vocês na ciência também têm leis? E fazem-nas?”. Respondi-lhe que as tínhamos e que elas eram bem diferentes das leis humanas, uma vez que não éramos nós que as fazíamos. Limitávamo-nos, o que já não era pouco, a descobri-las. De facto, observamos que o mundo natural se encontra regulado – o mundo é como é e não pode ser de outra forma, obedecendo eventualmente aos nossos desejos - sendo as regularidades descritas pelos cientistas na forma de leis. A descoberta das leis naturais é a tarefa permanente e inacabada da ciência e o avanço da ciência não significa de maneira nenhuma que as leis naturais bem conhecidas tenham de ser revogadas. As leis naturais são, num certo sentido, fixas. Não as podemos alterar para as fazer corresponder à nossa vontade. Pelo contrário, as leis humanas são alteráveis: feitas pelo homem, vão mudando, pela mão do homem, em resposta às exigências de uma sociedade em constante mutação.
Sobre as leis naturais disse um dia Albert Einstein, o físico suíço de origem alemã (naturalizado norte-americano quando emigrou para os Estados Unidos) que é reconhecidamente um dos maiores cientistas de todos os tempos (a revista norte-americana “Time” nomeou-o mesmo o “homem do século”, no final do século XX): “Deus é subtil, mas não é malicioso”. Não se trata de uma afirmação de âmbito e conteúdo religioso, uma vez que Einstein não professava a religião dos seus ancestrais (o judaísmo) nem nenhuma outra. Essa bela metáfora queria dizer que as leis naturais não são para nós evidentes, mas que, apesar disso, estão ao nosso alcance.
Parto para a minha breve análise sobre as relações entre leis naturais e leis humanas com uma história muito sumária das ciências físicas, ou melhor de um ramo das ciências físicas (a mecânica), defendendo-me no meu maior conhecimento deste ramo das ciências. As outras ciências experimentais não são, nem na sua metodologia nem nos seus propósitos, muito diferentes das ciências físicas. Uma das leis naturais mais simples é também uma das mais antigas: descreve o movimento de queda de um corpo à superfície da Terra, que o homem sempre observou desde que existe na Terra. Ela deve-se ao físico italiano Galileu Galilei, no século XVII, e tem uma expressão matemática que se pode traduzir por palavras do seguinte modo: as distâncias percorridas por um grave (um qualquer corpo que cai) são directamente proporcionais aos quadrados dos tempos. Significa isto que, se um corpo, no primeiro segundo queda cai de cinco metros (5 m = 5 x (1x1) m, sendo 5 m/s^2 o valor aproximado de metade da aceleração da gravidade à superfície da Terra), ao fim de dois segundos terá caído de vinte metros (20 m = 5 x (2x2) m) e ao fim de três segundos terá caído de 45 m (45 m = 5 x (3 x3) m). Este é um resultado do método experimental, criado pelo próprio Galileu e que tanto êxito alcançou nas ciências físicas e nas outras. O sábio natural de Pisa não verificou essa chamada “lei da queda dos graves” observando a queda vertical dos graves do cimo da famosa Torre de Pisa, como conta a lenda, até porque a queda é muito rápida, mas sim utilizando um instrumento muito simples – o plano inclinado – que permite, ao variar a respectiva inclinação, aumentar os tempos da queda à vontade do experimentador. Terá efectuado numerosas medidas de queda vagarosa de corpos ao longo de um plano inclinado, com o auxílio de réguas e de relógios, ainda que rudimentares (não havia, nessa época, relógios mecânicos, que só surgiriam com o avanço da mecânica e conta uma outra lenda que se terá servido do próprio pulso!). Galileu também foi um dos primeiros a olhar para o céu com a ajuda de um outro instrumento que ele desenvolveu – o telescópio – , mas aí as suas observações foram mais qualitativas do que quantitativas. Se Galileu foi pioneiro na formulação de leis relativas aos movimentos na Terra, o astrónomo alemão seu contemporâneo Johannes Kepler superou-o na formulação das leis dos movimentos celestes, com base em observações feitas à vista desarmada dos movimentos dos planetas no sistema solar.
O inglês Isaac Newton reuniu, algumas décadas depois, as conclusões de Galileu com as conclusões de Kepler, chegando a uma só mecânica, isto é, uma ciência do movimento unificada, fixada na sua obra de 1687 “Philosophiae Naturalis Principia Mathematica” (“Princípios Matemáticos de Filosofia Natural”). Deixou de haver uma física da terra e uma física do céu para passar a haver uma só física, cuja aplicação era universal. As leis naturais passaram a ser as mesmas em todo o lado. Para descrever todos os tipos de movimentos, onde quer que eles fossem, recorreu ao conceito de força e reparou que não precisava de mais do que um tipo de força – a força da gravitação universal – para dar conta tanto dos movimentos de queda que ocorrem na Terra como dos movimentos de queda que ocorrem nos céus (de certo modo os planetas também caem...). Em resumo, segundo Newton:
• As mudanças de movimento têm sempre uma causa - as forças.
• É possível prever o movimento a partir do conhecimento das forças e das condições iniciais, isto é, as posições e velocidades do móvel.
• As forças são universais: a força de gravitação dita universal actua tanto na Terra como no céu.
Newton afirmou, numa frase lapidar: “Se consegui ver mais longe foi porque estava aos ombros de gigantes”. Queria com isso prestar homenagem aos seus imediatos antecessores, Galileu e Kepler, sem os quais ele não poderia ter alcançado a sua descrição unificada, mais elaborada e mais poderosa que as descrições parciais que herdou.
Einstein só apareceu muito depois, pouco mais do que dois séculos depois de Newton. E apareceu para continuar a descoberta das leis naturais que já tinha sido efectuada por Galileu, Kepler e Newton. O modo como Einstein incorporou na sua descrição do mundo natural as leis bem conhecidas da mecânica de Newton, enunciando, porém, os limites da sua aplicação, ilustra bem o carácter cumulativo da ciência. Ao contrário de Galileu, Kepler e Newton, Einstein limitou-se a ser um físico teórico, uma vez que a sua descrição do mundo se baseou em observações feitas por outros. Mas, na senda dos gigantes anteriores, usando o método científico, conseguiu chegar a uma descrição unificada não só dos movimentos, na Terra ou no céu, como também dos fenómenos electromagnéticos, isto é, dos fenómenos eléctricos e magnéticos, que estão intimamente relacionados entre si. Esse é o conteúdo da teoria da relatividade. Usou para isso, tal como Galileu, Kepler e Newton, a linguagem matemática, embora tivesse de recorrer a expressões bem mais sofisticadas do que as dos gigantes a cujos ombros subiu. O resultado foi uma generalização da descrição de Newton, que afinal apenas é válida para pequenas velocidades, as velocidades a que estamos habituados na vida corrente, para uma outra que, sendo mais complicada, tem a grande vantagem de ser mais geral. Ao contrário do que muita gente supõe (julgando que os cientistas se anulam uns aos outros, cada um desmentindo as afirmações dos outros), existe progresso na ciência, isto é, os cientistas não desfazem a obra dos seus antepassados, antes a continuam. Acrescente-se que Einstein olhou para o mundo de uma maneira que, na sua essência, é a mesma maneira utilizado por Galileu, Kepler e Newton, séculos antes dele: todos eles procuraram e conseguiram obter descrições unificadas, o mais simples possíveis, do mundo natural. Esse é um critério que tem dado bons resultados na procura das leis naturais. Usando o dito de Newton, também Einstein subiu para os ombros de gigantes, elevando a “pirâmide humana”, tudo levando a crer que alguém, um dia, subirá para os ombros dele para ver mais longe.
“Saber é poder”, tinha dito Francis Bacon, um contemporâneo de Galileu que, não sendo cientista, teorizou na sua obra “Instauratio magna “ (“Grande Restauração”, cuja parte mais importante era “Novum Organum”, o “Novo Instrumento”) o método científico. Se, com Galileu, Kepler e Newton, o poder da ciência traduzido em aplicações úteis na nossa vida passou a ser enorme, no tempo de Einstein o poder da ciência passou a ser tremendo. A ciência, no tempo de Einstein e hoje ainda mais do que nesse tempo, está por todo o lado na vida quotidiana. Mas isso não impediu Einstein nem, com ele, a grande maioria dos cientistas de hoje de pensar que o poder da ciência é bem maior do que o poder das suas aplicações práticas. Afirmou ele em 1935: ”A ciência afecta os assuntos humanos de duas maneiras. A primeira é bem conhecida de toda a gente. Directamente, e mais ainda de forma indirecta, a ciência produz benefícios que transformam por completo a vida humana. A segunda maneira é de carácter educacional – age sobre a mente. Embora pareça menos óbvia, esta segunda não é menos pertinente que a primeira”. O O espírito científico, fruto da curiosidade humana, que se traduz na indagação das leis naturais, é o cerne da ciência, mais do que as aplicações práticas dela.
As leis de Galileu, Kepler, Newton e Einstein, que se encaixam perfeitamente umas nas outras, formando um todo coerente, têm uma base matemática, que é inescapável à formulação das leis procuradas e encontradas pelas ciências experimentais. Não há nada que o possa evitar: a descrição mais simples e mais elegante dos fenómenos físicos é feita através da linguagem matemática (Galileu disse: “O Livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos”). É por isso que, atrás, embora entre parêntesis, não quis fugir à linguagem matemática. De facto, alguma aversão à Ciência que se nota em numerosas pessoas, logo nos tempos da escola, começa, em geral, por ser aversão à Matemática. Porém, ao contrário das leis naturais, e nisso se distinguem delas profundamente, as leis humanas não têm uma expressão matemática, e os juristas, que fazem as leis humanas, não estão, em geral, à vontade com a matemática (claro que há excepções como, no século XVII, o francês Pierre de Fermat, contemporâneo de Newton, que foi Juiz Supremo na Corte Criminal Soberana do Parlamento de Toulouse, em França, autor de um famoso teorema que só muito recentemente foi demonstrado: era ao mesmo tempo juiz profissional e matemático amador).
Parece pois que há, logo ao nível da linguagem, um antagonismo primordial entre Ciência e Direito. É aliás sabido que muitos jovens procuram os cursos de Direito para fugirem ao estudo da Matemática, no qual não encontram a mais pequena atracção. No entanto, a verdade é que a lógica e o rigor que presidem à formulação das leis físicas – e que são assegurados com o auxílio da Matemática – são também úteis, muito úteis, para não dizer mesmo imprescindíveis à formulação pelos juristas das leis humanas. O Doutor Orlando de Carvalho, talvez entre nós melhor do que ninguém, sabia que fazer Direito era um exercício de lógica e de rigor. E que o exemplo dado da aritmética da queda dos graves não nos iluda: a matemática é bem mais o exercício do pensamento claro do que a execução de contas com números.
A propósito das relações entre Ciência e Direito (uso estas designações por uma mera questão de simplificação, pois, para maior rigor, deveria dizer Ciências Experimentais e Ciências Jurídicas, colocando mais a ênfase do que une esses dois tipos de ciência do que naquilo que os separa), não pode deixar de ser referido que o nascimento das Ciências Experimentais no início do século XVII ficou marcado por um evento de natureza jurídica que deixou marcas que ainda hoje perduram: O caso jurídico “Igreja Católica versus Galileu”. O tribunal era o da Inquisição de Roma e as razões são bem conhecidas: a divulgação por Galileu da teoria do astrónomo polaco Nicolau Copérnico, proposta no século XVI, segundo a qual a Terra andava em torno do Sol em vez de ser o Sol a andar em torno da Terra, tal e qual como vinha na Bíblia. O veredicto do ano de 1630 também é bem conhecido: a condenação a prisão perpétua, uma pena que, dadas as circunstâncias (incluindo a da retractação do arguido), foi reduzida para reclusão domiciliária, primeiro na casa de amigos importantes e depois em sua própria casa. Menos conhecido é o facto de o Papa João Paulo II ter, nos anos 90, nomeado uma comissão para rever o processo de Galileu, tendo essa comissão concluído em 1999 que a condenação foi um erro. Hoje, quando se celebra por todo o mundo o Ano Internacional da Astronomia, que assinala os 400 anos das primeiras observações feitas por Galileu com o telescópio, é um sinal dos tempos que o Vaticano esteja a preparar uma exposição sobre Galileu e a ciência no tempo dele. Quem diz que a justiça portuguesa é lenta deveria reparar na justiça do Vaticano...
Embora se cruzem em casos como os do julgamento de Galileu (o Direito aqui é Canónico e não Civil), a Ciência e Direito são disciplinas bastante distintas, podendo as diferenças ser resumidas do seguinte modo:
• A Ciência diz como é o mundo (não esquecendo que o homem é, materialmente, parte do mundo físico), ao passo que o Direito diz como devem ser as acções do homem no mundo.
• A Ciência procura o que é verdadeiro, ao passo que o Direito procura o que é justo. Escusado será dizer que os conceitos de verdadeiro e de justo são bastante elusivos, sendo os contrários deles – o errado e o injusto – bem mais fáceis de identificar.
• As leis naturais são absolutamente prescritivas: não admitem violações. Dito de uma maneira simples: não há milagres! Ou, ou por outras palavras também simples: o “Juiz Supremo” dos casos científicos é a Natureza (sinónimo de mundo natural) e as suas decisões são inexoráveis, não admitem nenhum tipo de recurso. Em contraste, é bem sabido que as leis humanas admitem violações, sendo tarefa do Direito Penal estabelecer as penalidades para quem incorre em infracção e tarefa das autoridades e dos tribunais aplicar essas penalidades.
• Há, como foi dito atrás a propósito de Galileu, Kepler, Newton e Einstein, um claro progresso no nosso conhecimento das leis naturais: a ciência é cumulativa. Em contraste, é mais difícil reconhecer a existência do mesmo tipo de progresso para as leis humanas. As leis humanas vão evoluindo, mas ninguém se lembraria hoje de considerar as leis humanas do tempo de Galileu ou do tempo de Newton como um subconjunto das leis actuais.
Mas, vendo bem, serão as diferenças entre Ciência e Direito tão grandes como se poderá pensar à primeira vista? Não me parece que seja o caso, apesar de confessar a minha ignorância do Direito. De facto, quando as leis de Newton pareciam admitir violações, foram formuladas leis mais gerais que, essas sim, até hoje estão invioláveis (mas serão?). De modo que a inviolabilidade das leis naturais só é conseguida pela "evolução" destas para formas mais gerais. Por outro lado, basta conhecer uns rudimentos da história do Direito para concordar que também em Direito há progresso, embora decerto um progresso diferente do que ocorre em Ciência. Por exemplo: o Direito Romano informa boa parte do Direito europeu de hoje. Outro exemplo: a aprovação pelas Nações Unidas em 1948, como aconteceu no final da Segunda Guerra Mundial, da Declaração Universal dos Direitos do Homem não pode deixar de ser considerada um progresso jurídico: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (...)”
As referidas diferenças não podem, porém, fazer esquecer as semelhanças entre a Ciência e o Direito, que não será demais enfatizar e que se poderão resumir do seguinte modo:
• Em ambas se lida com leis que são ou devem ser lógicas e rigorosas. Além disso, tanto as leis naturais como as leis humanas devem ser o mais simples possível.
• Ambas procuram decidir da melhor maneira possível usando o máximo da informação disponível. Para isso é necessário, em geral, procurar essa informação e raciocinar sobre ela.
O método para decidir o melhor possível tem muitos aspectos comuns. Com efeito, o método científico tem, desde o tempo de Galileu, uma componente laboratorial. Mas esse mesmo método, com essa mesma componente, é hoje imprescindível para fundamentar decisões judiciais. Quando se fala em pesquisa ou investigação para o vulgo ocorre mais a pesquisa ou investigação judicial do que a pesquisa ou investigação científica. E não é despropositada essa ocorrência. A primeira - e, por exemplo, a série televisiva do CSI mostra-o à saciedade - tem muito a ver com a segunda. A química forense ou a medicina legal estão precisamente na fronteira entre Ciência e Direito. Um cientista, em muitos aspectos, é uma espécie de Sherlock Holmes, que a partir de pequenos vestígios, os quais à primeira vista parecem irrelevantes ou mesmo inúteis, consegue apurar o que se passou ou o que se passa. E muito mais poderia ser dito sobre esta importante componente científica do Direito...
Não são apenas as polícias judiciais a recorrer hoje a perícias ou a pareceres científicos. Os advogados das partes em litígio também o fazem e cada vez mais. Assim como os tribunais, de vária instâncias. Isso não acontece apenas nos casos mais comezinhos de acidentes de automóveis (cuja análise pericial tem, evidentemente, de se basear nas leis de Galileu e Newton, não sendo necessário recorrer a Einstein...), mas em casos mais complicados de protecção contra radiações (surgem hoje casos em tribunal sobre linhas de alta tensão ou mesmo sobre os perigos da utilização de telemóveis) ou sobre casos clínicos da maior gravidade (por exemplo, casos de negligência médica que conduz a morte ou invalidez permanente). Para já não falar de casos que já vão aparecendo em tribunal sobre os quais poderão ser pertinentes leis que ainda estão em fase de congeminação ou em redacção (direito ligado à genética e à biotecnologia, aos cuidados terminais ou à falta deles, à nanotecnologia, etc.) Infelizmente, os tribunais, em todo o mundo e também em Portugal, têm ainda muita dificuldade em lidar com este tipo de processos. O livro de David Feigman, professor norte-americano de Direito da Universidade da Califórnia – Hastings College of the Law, que se tem especializado em questões científico-legais, “Legal Alchemy. The Use and Misuse of the Law” (Freeman, 1999; em português o título poderia ser “Alquimia Legal. O Uso e O Abuso da Lei”, mas não está traduzido) é bastante elucidativo a este respeito, descrevendo numerosas situações concretas de mau ou deficiente convívio entre os tribunais e a Ciência. O autor insiste em que as leis naturais não são nem podem ser derrogadas por leis humanas. O mundo em que o homem vive obedece a leis que o homem não pode modificar a seu belo prazer. Talvez essa situação de conflito possa ser remediada, ou pelo menos minorada, através de uma formação de base dos juristas que aponte para uma maior familiarização com o método científico, incluindo neste a linguagem matemática (em particular, questões de probabilidade e estatística associadas à noção de risco sobre a qual persistem muitas confusões a propósito de casos jurídicos). Não esqueçamos Einstein quando ele diz que um dos benefícios da Ciência é “de carácter educacional – age sobre a mente”. De posse do método da ciência, poderemos aspirar a procurar melhor a verdade e, portanto, a decidir com mais justiça, por mais difícil que seja definir verdade e justiça.
Concluo, com alguma esperança sobre um convívio mais íntimo entre Ciência e Direito, dando a palavra a Feigman, que a dado passo do referido livro deixou escrito:
“Embora a Ciência não possa nunca ditar o que é justo, tornou-se uma ferramenta indispensável na qual o Direito tem por vezes de se basear para decidir o que é justo”.
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7 comentários:
Excelente post!
Abraço,
Fernanda
http://bala-magica.blogspot.com
Tanta patétice vinda directamente do mais escuro canto do século 17. Um exemplo acabado do cientísmo mais parolo. Haveria muito para onde pegar, mas basta recordar Kant, cujas obras foram leitura de toda a vida para Einstein, para darmo-nos conta que o homem de ciência não é diferente, em muitos aspectos, do homem de directo. As diferenças entre os grandes homens de ciência e os pequenos homens, entre os Einstein e os Fiolhais, faz-se também por aqui: pela medida da cultura filosófica ou pela cultura da crítica. Einstein sabia do que falava. Fiolhais dorme profundo o sono dogmático.
Contrariamente ao anterior anónimo, gostei, mas percebo a reacção.
Uma pequena correcção: Francis Bacon foi contemporâneo de Galileu, mas não de Newton.
Helena Cabral
Cara Helena Cabral
Já emendei o evidente lapso, obrigado por o ter apontado.
Carlos Fiolhais
Sobre o direito , a política e a política internacional ( infelizmente, bem diferentes das ciências e das leis naturais),
Política, como parcialmente concebeu Fukuyama, é o desejo de reconhecimento nacional e universal e as inerentes emoções, associadas a este desejo, nomeadamente, a ira, a vergonha e o orgulho que constituem elementos da personalidade humana, (cruciais na vida política) (Fukuyama, 1992).
Na política internacional, o poder é sempre uma relação, derivando o direito internacional de valores, da natureza humana e não da vontade dos Estados, sendo o mesmo válido para todos os lugares e em todos os tempos (Maltez, 2002:241).
Em relação ao conceito de cultura política, Engels alertou que as ideias que prevalecem na mesma serão sempre as da classe dominante, visto estas possuírem e dominarem a informação e o conhecimento.
Cumpts,
Madalena Madeira
muito boooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooom!
Oh! Professor Fiolhais
“é um sinal dos tempos que o Vaticano esteja a preparar uma exposição sobre Galileu e a ciência no tempo dele”?
Mas não terá sido o Vaticano o mundo de Galileu? A construção da ciência moderna fez-se no mundo da Igreja Católica, entre os seus membros, nas suas instituições, sujeita aos seus conflitos internos etc. etc. Toda a controvérsia científica se passava nos círculos intelectuais eclesiásticos: Copérnico foi acolhido em Roma que lhe permitiu divulgar a sua obra depois de condenado por Lutero e Melanchton. Os astrónomos jesuítas confirmam as descobertas de Galileu com o telescópio um ano antes de ser recebido em Roma onde dissertou em ambiente de grande felicitação.
Claro que Galileu foi condenado pela inquisição. Mas sendo caso único não é exemplar. Por outro lado, os seus “inimigos” são mais os defensores da autoridade dominante de Aristóteles e Ptolomeu do que da autoridade da Revelação exercida pela Igreja.
Só no séc. XVIII (entre a ilustração francesa, não na inglesa) começou a construção da lenda da hostilidade da Igreja católica à ciência. Com a divulgação distorcida do caso Galileu a funcionar como prova da superstição, obscurantismo e ignorância clerical, impeditiva do avanço da ciência.
De qualquer forma foi num tempo e numas sociedades em que a formação dos novos intelectuais laicos e a consolidação do poder absoluto do Estado encontrava na Igreja um poder de oposição efectivo. Mas isso já passou há tanto tempo que já deveria ser passado do passado. No passado do presente, quando a ciência se laicizou e institucionalizou, nos sec. XIX e XX, surgiram de facto outras formas de ameaça que nela, ciência, se autorizam: numerosas teorias sobre o social, a moral, o religioso, o político e a própria ciência. A Título de exemplo e curiosidade: enquanto Berthold Brecht escrevia “a vida de Galileu” (1938) onde julgava severamente a submissão do sábio que lhe teria impedido um heróico martírio, o seu camarada Lyssenko atacava com o apoio do Estado os biólogos que rejeitam as suas teorias; impunha a condenação da genética de Mendel na universidade soviética; elaborava as noções de biologia de classe e de ciência burguesa; em 1939 recomendava a rejeição dos trabalhos de um dos biologistas soviéticos mais prestigiados, Nikolai Vavilov que foi preso e morreu com os seus principais colaboradores no Gulag. Nunca encontrei ninguém que conheça Lyssenko mas tive de confrontar muita gente que acreditava que Galileu tinha morrido na fogueira condenado pela inquisição e na Idade Média.
A amálgama obscurantista dos mitos ideológicos que a divulgação científica e filosófica, feita com tanta qualidade no vosso blogue, ajudaria a dissipar.
É que o caso Galileu daria tema de estudo exemplar à história das ideias, dos conflitos político-ideológicos e respectiva propaganda, à história das lendas negras etc.
Concorreria para esclarecer a genealogia da actual crispação entre as ciências duras e as “ciências” sociais que o caso Sokal fez saltar para a praça pública.
De facto há quem pense que assistimos agora à fase mais agressiva da luta entre as duas culturas, a científica e a humanística
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