quarta-feira, 9 de setembro de 2009
A Ordem dos Professores e a política de compadrio
Rui Baptista volta à questão da Ordem dos Professores, que tanta tinta tem feito correr,sem contudo ter ficado esgotada.
“O único sentido íntimo das cousas é elas não terem sentido íntimo nenhum” (Fernando Pessoa, 1888-1935).
Na aceitação do legado de T. S. Elliot, Prémio Nobel da Literatura em 1948, de que “o tempo passado e o tempo presente fazem parte do tempo futuro”, faço uso público dos obstáculos levantados na Assembleia da República (AR) pelo Partido Socialista (PS) à criação da Ordem dos Professores.
Para memória futura, traço uma breve resenha dos factos. Em 17 de Julho de 1992 noticiavam os jornais uma conferência de imprensa dada pelo Sindicato Nacional dos Professores Licenciados (SNPL) no sentido da criação de uma Ordem dos Professores (OP). Em 20 de Junho de 96 foi entregue pelo SNPL na AR uma brochura contendo uma Proposta de Estatutos da OP, elaborada por uma comissão a que presidi. Em 25 de Fevereiro de 2004 apresentou o supracitado sindicato na AR uma petição com 7857 assinaturas para a criação da OP, sendo apenas necessárias 4000 assinaturas. Finalmente, em 2 de Dezembro de 2005, foi debatida na AR essa petição.
Foi relator desta petição o deputado do PS João Bernardo, experiente professor do 1.º ciclo do ensino básico, que debitou o seguinte parecer no referido debate: “A criação de novas ordens, no momento em que o poder das mesmas, em Portugal, precisa de ser reflectido e devidamente estruturado numa lei-quadro que estabeleça de forma criteriosa as suas funções e as suas competências, que não se confundam com os legítimos representantes dos interesses laborais das diversas classes profissionais deve ser muito bem ponderada”. Daqui se pode inferir, para já, que a referida lei-quadro tem (ou teria) como pretensão desnecessária e petulante repetir o estabelecido no n.º 4 do art. 267 da Constituição que determina que as associações públicas (…) “não podem exercer funções próprias das associações sindicais”.
Sendo, à época, este deputado também vice-secretário geral de um organização sindical – o SINDEP – só muito dificilmente se eximiria a ser porta-voz de um determinado sindicalismo docente que vê nas ordens profissionais uma indesejável concorrência, se exceptuarmos, honra lhe seja feita, o papel anterior do SNPL neste contexto. Além disso, o facto de a Ordem dos Engenheiros ter impedido a inscrição de licenciados em Engenharia pela Universidade Independente deve ter pesado na decisão de retirar às futuras ordens profissionais (sem qualquer êxito, houve até a intenção de estender essa determinação às ordens já existentes) a competência de avalizarem as habilitações académicas dos pretendentes à respectiva inscrição.
Na altura, e a propósito, foi noticiado publicamente ter sido “a ideia de uma ordem para os profissionais docentes larga e duramente criticada”. Acontece que, com excepção apenas do CDS (que apoiou incondicionalmente essa criação), ela foi vítima de uma pontual ambiguidade dos grupos parlamentares do PSD e do PCP ao darem “uma no cravo e outra na ferradura”.
Em louvável intenção, João Boaventura dissecou aqui, com afiado bisturi de hábil cirurgião, a legislação que se reporta às associações públicas, mormente, à insusceptibilidade de acções sindicais. Eu próprio, com ingenuidade de que me não penitencio por julgar viver num Estado de direito em que as leis devem estar ao serviço da res publica e não de interesses profissionais, publiquei três artigos sob o título Subsídios para a criação de uma OP e os subtítulos O Leito de Procusta, Definição de profissão liberal e Breve historial das ordens profissionais (“Correio da Manhã”, em 15, 16 e 17/Novembro/1995).
Uma das preocupações que tive, na altura, foi a busca de uma analogia com base na inscrição de não licenciados nas ordens profissionais existentes e que, por isso, desse cobertura à criação de uma OP na qual nem todos os docentes seriam licenciados. Encontrei-a no caso da Ordem dos Farmacêuticos, a qual, para além da inscrição de licenciados pela Universidade do Porto, permitia a inscrição de diplomados pelas Escolas de Farmácia de Coimbra e de Lisboa, com pequenas restrições. Embora não dê por mal empregado o tempo gasto nesta busca, hoje tenho-a como vã face à criação da Ordem dos Enfermeiros, numa altura em que a esmagadora maioria destes profissionais tinha como habilitação académica um curso médio, já que as escolas politécnicas de enfermagem ensaiavam então os primeiros passos. Neste contexto, o bom senso aconselhava, como tal e apenas, a criação de uma câmara profissional, a exemplo da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, com associados licenciados por universidades e pelo ensino politécnico e uma grande percentagem sem nenhum diploma de curso superior. Acontece, porém, que esta situação não contentou estes últimos profissionais que envidaram esforços para que o governo apresentasse à Assembleia da República uma proposta de lei no sentido da sua transformação numa ordem profissional: a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas.
Esta medida mereceu a veemente contestação do Conselho Geral do Conselho Nacional das Ordens Profissionais em comunicado assinado pelo bastonário da Ordem dos Engenheiros e publicado no jornal “Público” (23/Julho/2009). Ou seja, a legislação sobre as ordens profissionais assemelha-se a um fato em malha elástica que se ajusta a qualquer corpo profissional desde que encontre o alfaiate certo na hora certa que suba a majestosa escadaria de S.Bento com a fatiota legislativa encomendada. Razão assistia a Eça: “É assim que há muito tempo, em Portugal, são regidos os destinos políticos. Política de acaso, política de compadrio, política de expediente” (Eça de Queiroz, “O Distrito de Évora”, 1867).
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2 comentários:
O parecer de João Bernardo vale, não pelo que ele disse como deputado, mas pelo espírito sindicalista que antevia, na proposta da criação da Ordem dos Professores, um assalto às funções e às competências dos sete Sindicatos.
Vejamos,ipsis verbis, o parecer do sindicalista ou ex-sindicalista, perdão, do deputado João Bernardo:
"A criação de novas ordens, no momento em que o poder das mesmas, em Portugal, precisa de ser reflectido e devidamente estruturado numa lei-quadro que estabeleça de forma criteriosa as suas funções e as suas competências, que não se confundam com os legítimos representantes dos interesses laborais as diversas classes profissionais deve ser muito bem ponderada."
Como membro ou ex-membro do Sindicato Nacional e Democrático dos Professores (SINDEP), um dos sete sindicatos que fazem parte da Plataforma Sindical dos Professores, João Bernardo está a defender a sua dama.
João Bernardo nem quer saber das funções e competências da Ordem dos Professores, nem verificar que, na sua formação, não é beliscado nenhum dos "legítimos representantes dos interesses laborais das diversas classes profissionais", ou sejam os sete sindicatos.
O que o parecer de João Bernardo nos transmite apoia-se no pressuposto de que as actuais Ordens existentes têm confundido as suas funções e competências com os "legítimos representantes dos interesses laborais das diversas classes profissionais", ou sejam os sete sindicatos.
Perante este retrato tão mal tirado o João Bernardo, salvo seja, vai reflectir sobre uma forma criteriosa de evitar que as futuras Ordens tomem de assalto os sete Sindicatos, já que as Ordens existentes à data da publicação da lei-quadro já o fizeram e já nada se pode fazer, porque a lei-quadro não é retroactiva.
Meu dito e meu feito, lá está na lei-quadro, mais conhecida e vulgarizada como Lei das Ordens Profissionais, no n.º 2 do art.º 4.º, o passaporte da imunidade parlamentar ou o salvatério dos sindicatos e sindicalistas:
"As associações públicas profissionais [Ordens] estão impedidas de exercer ou de participar em actividades de natureza sindical ou que tenham a ver com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros", onde só faltou acrescentar "intocáveis".
Como o Código do Trabalho não aborda esta matéria de tanto melindre, o mesmo é dizer que os Sindicatos podem fazer gato-sapato das Ordens e participar em actividades de natureza Ordenal.
Quem quiser uma prova basta verificar como a Fenprof tem na sua sede a Pró-Ordem dos Professores, e combatido até à exaustão a criação da Ordem de Professores.
Ficamos assim a saber como se brinca à formas criteriosas de as Ordens não tugirem nem mugirem nos Sindicatos, e de como, pela lei da reciprocidade, os Sindicatos podem meter a foice em seara alheia.
Como dizia um deputado do vintismo: NÃO HÁ PACHORRA ! NUNCA MAIS APRENDEMOS !
Prezado João Boaventura: O povo na sua sabedoria tem uma expressão que serve às mil maravilhas para caracterizar situações em que a solução dos problemas está nas mãos dos respectivos interessados quando critica o facto de ser a raposa a tomar conta do galinheiro(e como tal, a decidir o que é melhor para as galinhas).Refiro-me, como é óbvio a ter sido relator da petição para a criação de uma Ordem dos Professores um corifeu do Sindep, de seu nome João Bernardo.
Ou seja, é assim que em Portugal continuam a ser regidos os destinos políticos. Os vícios de anos (e até de próprios séculos) passam no calendário, mas mantém-se na conveniência de interesses de natureza política.
Só estranho a apatia da classe docente em mobilizar-se num temática que lhe diz directamente respeito deixando cair a suspeição de que está mais interessada em questões laborais do que em defender a dignidade de uma profissão que tem sofrido tratos de polé por parte das entidades oficiais (Governos e Ministério da Educação) e de certos sindicatos que vêem para esta milenar profissão, e para a sua condição de dirigentes sindicais, soluções meramente sindicais (necessárias é certo)inadaptadas à hora que passa. As excepções dos professores que têm defendido a criação de uma ordem dos Professores não são, de forma alguma, bastantes para se oporem a uma regra de deixar correr o marfim...
O seu lúcido comentário, João Boaventura, foi uma pedrada no verdadeiro charco em que interesses espúrios mergulharam a classe docente portuguesa. Bem-haja.
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