domingo, 20 de setembro de 2009

HÁ MUITO ESPAÇO LÁ EM BAIXO


Minha crónica no número da "Gazeta de Física" que está mesmo a sair:

Se, no Ano Internacional da Astronomia, 400 anos depois do italiano Galileu Galilei ter olhado pela primeira vez o céu com um telescópio, podemos, por observação própria e directa, verificar que há muito espaço lá em cima, não devemos, neste mesmo ano, em que passam 50 anos sobre a famosa conferência do físico norte-americano Richard Feynman, no Caltech, que inaugurou a nanociência e a nanotecnologia, deixar de reconhecer que “há muito espaço lá em baixo”. Há muitas potências de dez tanto para cima como para baixo da escala humana.

Feynman não disse, afinal, muito mais do que tinha dito o poeta e filósofo grego Demócrito, para quem, numa premonição notável, nada mais havia do que átomos e espaço vazio. Limitou-se a acrescentar, partindo da questão de colocar toda a Enciclopédia Britânica na cabeça de um alfinete, que podíamos mover os átomos através do espaço vazio, para construirmos objectos à medida dos nossos desejos e das nossas necessidades. Sim, nós podemos. Tal tarefa, como lembrou Feynman, não violava nenhuma lei da física, tratava-se apenas de um desafio técnico, que mais cedo ou mais tarde – e para ele era melhor mais cedo do que mais tarde – seria ultrapassado. A sua conclusão foi que não era apenas a Enciclopédia Britânica, mas também todos os livros jamais escritos pelo homem, que podiam ser contidos num grão de poeira. O poeta inglês William Blake aspirava a “ver todo o mundo num grão de areia”. O físico conseguia ver todo o mundo escrito, literário e não só, num grão ainda mais pequeno.

Para isso era preciso um novo instrumento. Foi Freeman Dyson, um físico norte-americano contemporâneo de Feynman e nosso, quem chamou a atenção para o facto de que a maior parte da ciência nova parte da invenção de um instrumento. Para a astronomia foi o telescópio e, nos anos 80 do século passado, para a nanociência e para a nanotecnologia foi o microscópio de varrimento por efeito túnel, que se deveu ao suíço Heinrich Rohrer e ao alemão Gerd Binnig. Esse supermicroscópio bem podia ser chamado nanoscópio, pois permite observar e manipular os átomos e as moléculas. O recentemente inaugurado (embora ainda num estado de semi -construção) Instituto Ibérico de Nanotecnologias, em Braga, vai ter necessariamente de albergar um ou mais desses instrumentos.

A palavra nanotecnologia, a propósito dessa inauguração, surgiu com maior frequência nas primeiras páginas dos jornais. De algumas das vezes que aparece, surge associada a perigos e receios. Será o nano perigoso? Teremos nós de recear o nano? O escritor norte-americano de ficção científica Michael Crichton, há pouco falecido, no seu romance “Presas” (Dom Quixote, 2003; no final há uma bibliografia científica), tratou o tema numa perspectiva pessimista. Espalhando-se tal como os vírus nos computadores, uma multidão de nanopartículas auto-replicantes, podemos chamar-lhes nanocriaturas, liberta-se e pode tomar o mundo. Nós somos as suas “presas”... Haverá alguma ameaça desse tipo proveniente do laboratório de Braga? Teremos nós de tomar precauções especiais para impedir uma invasão vinda do nanomundo? A resposta é negativa. Convém, como é óbvio e como sempre aconteceu na história, tomar todas as precauções e mais algumas quando se atravessam as fronteiras da ciência; mas, de facto, as notícias propaladas por alguma comunicação social e por alguma literatura de ficção científica sobre a morte da humanidade são manifestamente exageradas. Bem pelo contrário, o mais provável – cabe-nos a nós torná-lo certo – é que a nanociência e a nanotecnologia ajudem a resolver alguns dos grandes problemas que nos afligem. Há muito espaço lá em baixo e temos de ser suficientemente sábios para o ocupar para nosso melhor proveito.

1 comentário:

Sérgio O. Marques disse...

O mal nunca está na técnica em si mas poderá estar no fim de quem a usa. No futuro ver-se-á se tal fim não cairá na tentação do belicismo.
Nesse âmbito, a técnica é bestialmente perniciosa.

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