quinta-feira, 17 de setembro de 2009
O Positivismo e a 1ª República
Texto de António Mota de Aguiar:
Foi na década de 40 do século XIX que Auguste Comte concebeu o positivismo, doutrina filosófica caracterizada pela ideia de que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia iria desembocar numa sociedade de bem-estar geral. Essa doutrina positivista combateu as ideias idealistas e espiritualistas da Natureza, afirmando-se anti-teológica e anti-metafísica.
Nada por isso melhor, na década de 60 desse século, que o positivismo comteano para conferir uma dimensão de necessidade e objectividade às reivindicações republicanas. Não existindo uma sociedade científico-industrial em Portugal, o positivismo português foi essencialmente um movimento sociológico, desligado das ciências da Natureza [1].
Foi o positivista Teófilo de Braga (1843-1924) (na figura, em 1864, com apenas 21 anos) quem escreveu o primeiro Manifesto do Partido Republicano Português, em 1891, pouco antes da revolta do Porto de 31 de Janeiro [2]. O positivismo republicano apontou para os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, e, adaptado à sociedade portuguesa, situou-se entre o pensamento reaccionário e as correntes revolucionaristas e anarquistas. Ao contrário do projecto comteano, o positivismo foi, entre nós, um projecto da pequena e média burguesia.
Identificado que foi o positivismo com o ideário republicano, o primeiro ideólogo do republicanismo tinha sido Henriques Nogueira (1825-1858), activista da década de 40, que escreveu uma “espécie de evangelho republicano português” [3]. Já nas décadas de 60 e seguintes, defensores do positivismo como Manuel Emídio Garcia (1838-1904), Elias Garcia (1830-1891), Basílio Teles (1856-1923), e Sampaio Bruno (1857-1915), além do já referido Teófilo de Braga, alimentaram as primeiras polémicas em defesa da sociologia de Comte. Nessa época assistiu-se em Portugal à implantação progressiva da corrente republicana que se viria a tornar bastante influente na intelectualidade portuguesa.
Enquanto em Portugal nos debatíamos com os acontecimentos históricos dos últimos anos da monarquia, sem meios para investir na ciência e importando a tecnologia, lá fora, no virar do século XIX para o XX, a Física debatia-se com dilemas como os que estiveram na base das duas principais teorias físicas do século XX: a teoria da relatividade e a teoria quântica. Era o começo da física moderna.
Não foi muito feliz entre nós o movimento positivista até ao final da segunda década do século XX. Contudo, a partir de 1920 a comunidade científica portuguesa foi acumulando alguns trunfos, em consequência da reforma no ensino efectuada pelo Governo Provisório da 1ª República. Os primeiros estudos entre nós da Relatividade foram efectuados em 1912 pelo republicano Leonardo Coimbra (1883-1936), que foi ministro de Instrução Pública da República em 1919 e 1923. Este filósofo tem uma postura claramente idealista: a realidade é determinada pelo pensamento (“As teorias físicas são produto da mais profunda elaboração mental”), pelo que para ele a inteligibilidade não seria determinada pela experiência, tal como afirmavam os positivistas.
É assim que, no início da década de 20, o trabalho desenvolvido durante a 1ª República começa a dar alguns frutos, apesar de “a produção científica em Portugal no século XX não ter atingido o brilho observado noutros países europeus” [4] , e de “até à década de 30 a relatividade parecer não ter interessado cientificamente os físicos portugueses e, além do desinteresse, manterem sobre ela um profundo cepticismo” [5] .
A sociedade científica portuguesa desta época continua, de facto, pouco desenvolvida, mas há indícios na década de 20 de um desabrochar científico e cultural em Portugal, designadamente, por meio da acção das Universidades Livres, fundadas em 1912, e das Universidades Populares, fundadas em 1913, em Lisboa e no Porto [6], onde talentosos e dedicados professores leccionaram Astronomia, Relatividade e outras matérias.
Em 1923, o Ministro de Instrução António Sérgio criou a “Junta de Orientação de Estudos” que servirá como precursora da Junta de Educação Nacional (JEN), surgida em 1929. De 1929/30 a 1950 foram concedidas pela JEN 812 bolsas, que beneficiaram 434 bolseiros [7], cuja maioria regressou a Portugal enriquecendo com os seus conhecimentos a ciência e a cultura portuguesa.
Dezenas de homens da ciência atravessaram estas décadas de 20, 30 e 40, incrementando com o seu saber a cultura em Portugal [8]. Destacamos alguns: António da Silveira, Pedro José da Cunha, António dos Santos Viegas, Francisco de Castro Freire, Aarão Lacerda, Henrique Teixeira Bastos, Álvaro Basto, Egas Pinto Basto, Souza Nazaré, Pinto Basto, Augusto Ramos da Costa, Victor Hugo Lemos, Mário Mora, António Santos Lucas, José de Almeida Lima, Gago Coutinho, Egas Moniz, António Sérgio, Cyrilo Soares, Manuel Peres, Francisco Gomes Teixeira, Manuel Valadares, Branca Marques, Aurélio Marques da Silva, António Aniceto Monteiro, etc.
Foi nesta década que visitaram Portugal dois nomes importantes da Física Teórica: o espanhol José Maria Plans y Freire e o francês Paul Langevin. Na sequência desta última visita foi inaugurada em Abril de 1930 na Biblioteca Nacional uma notável exposição sobre a Relatividade, que contou com a colaboração de sábios estrangeiros.
Não procurámos indagar se todos os homens de ciência deste período histórico foram positivistas. A problemática foi abordada e de certo modo resolvida por Correia Barata no jornal "O Século”, quando, em 1876, na luta contra o pensamento reaccionário e em defesa das concepções darwinistas e positivistas, escrevia que a doutrina de Darwin, “que não era ateu”, podia ”…ser aceite, sem o mínimo de escrúpulo de consciência, pelo melhor católico, porque há um abismo profundo entre a discussão da origem última ou causa prima de todas as coisas existentes e qualquer sistema que tenha por fim explicar os fenómenos biológicos, inorgânicos ou físicos” [9].
Mas, como tudo na vida evolui, também o positivismo evoluiu para o neo-positivismo fundado pelo Círculo de Viena:
“A filosofia das ciências é, no final do século XIX e princípios do século XX, a herdeira histórica do positivismo oitocentista, distinguindo-se desta corrente filosófica pela sua visão crítica da própria ciência e pelo esforço em determinar os limites exactos da validade desta. A filosofia da ciência demarcar-se-á do positivismo metafísico, começando por exercer uma crítica baseada na própria evolução histórica da ciência; dos seus próprios problemas, a ciência passou a interrogar-se sobre o seu método, a natureza deste e os próprios limites do conhecimento científico” [10].
Foi nessas décadas do século XX que viveram os principais investigadores científicos neo-positivistas portugueses: o matemático Mira Fernandes escreveu sobre Relatividade em vários artigos em revistas italianas; o matemático Rui Luís Gomes, que escreveu um manual científico sobre Relatividade e criou um seminário em Física Teórica na Universidade do Porto; o astrónomo Manuel dos Reis. que escreveu O Problema da Gravitação Universal, considerado um livro de referência na área; o físico nuclear Mário Silva, autor de vários livros de ciência e do projecto do Instituto do Rádio em Coimbra; o astrónomo Melo e Simas, que efectuou medidas da luz rasando o bordo de Júpiter para verificar se a luz era deflectida pela gravidade do planeta; o médico Abel Salazar, que empreendeu vários trabalhos de investigação científica, sendo considerado o principal divulgador em Portugal do neo-positivismo (deixou escrito em O Diabo, entre 1936 e 1940, 50 artigos sobre o empirismo lógico); e o matemático e pedagogo de renome Bento de Jesus Caraça. Nestes tempos, participaram na divulgação da ciência revistas como o Jornal de Sciencias e Mathematicas e Astronómicas (publicado até 1905), O Diabo, que já referimos, Águia, Seara Nova, Sol Nascente, Vértice, O Instituto, e outras, com vidas mais ou menos efémeras.
Porém, os inimigos da ciência, muito receosos das novas ideias, cedo se incompatibilizaram com a comunidade científica. Fortalecido o Estado Novo com a Constituição de 1933, caiu de imediato sobre o movimento científico português a versão portuguesa do fascismo internacional. Com a repressão de 1930 a 1950 sobre os homens da ciência, os mais notáveis protagonistas da ciência portuguesa foram desaparecendo da cena nacional, tendo muitos deles sido presos. No ano de 1947 deu-se o "golpe de misericórdia". As veleidades de desenvolvimento científico terminaram então. Mais cientistas foram parar à prisão, outros exilaram-se para não serem presos e para fugirem à asfixia e mediocridade do Estado Novo. Em consequência, no princípio da década de 50 o atraso cultural e científico do país era enorme. A censura, a polícia política e os tribunais de excepção, exerciam estrito um controlo da sociedade.
Apesar do seu desfecho trágico, a 1ª República deixou bem marcado na mente dos portugueses o espírito de liberdade e progresso que a norteou. Hoje, a quase cem anos de distância, não podemos esquecer que o ar de liberdade que respiramos teve, pelo menos em parte, a sua origem no dia 5 de Outubro de 1910.
REFERÊNCIAS:
[1] Fernando Catroga, Os inícios do Positivismo em Portugal, O seu significado político-social, Universidade de Coimbra, 1977, e A importância do positivismo na consolidação da ideologia republicana em Portugal, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1977
[2] A.H. de Oliveira Marques, A 1ª República Portuguesa: Alguns aspectos estruturais, Livros Horizonte, pp. 540 e seguintes, 1980
[3] A.H. de Oliveira Marques, História de Portugal, vol. II, p. 240 e seguintes. Palas Editores, 1973.
[4] Décio Ruivo Martins, Dissertações einsteinianas em Portugal (1911-1930), “Einstein Entre Nós”, Coord. de Carlos Fiolhais, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2005, p. 60
[5] Augusto Fitas, A Teoria da Relatividade em Portugal (1910-1940), “Einstein Entre Nós”, Coord. Carlos Fiolhais, Imprensa da Universidade de Coimbra 2005, p. 15
[6] Veja-se Oliveira Marques, História de Portugal, Edições Agora, vol. II, pp. 232-234.
[7] Amândio Tavares, O Instituto para a Alta Cultura e a investigação científica em Portugal, Lisboa, 1951 e A. Celestino da Costa, A JEN, Publicações da Sociedade de Estudos Pedagógicos, Série A-2, 1934
[8] Einstein entre nós, Coord. de Carlos Fiolhais, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2005
[9] Fernando Catroga, Os inícios do Positivismo em Portugal, O seu significado político-social, p. 40, Universidade de Coimbra, 1977
[10] Augusto Fitas, José M. Rodrigues, e M. Fátima Nunes, “A filosofia da ciência no Portugal do século XX”, in Pedro Calafate, org., História do Pensamento Filosófico Português Lógica, Conhecimento, Filosofia da Ciência, vol. 5, pp. 429-430, Editorial Caminho, 2000.
António Mota de Aguiar
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2 comentários:
É muito curioso que é das poucas revoluções políticas que se procurou justificar científica e filosoficamente. A guerra ideológica também se fez na argumentação racional, embora saibamos que os teorizadores da República eram extremamente ecléticos, embora o Positivismo tenha um visível predomínio. Mas também não podemos esquecer o Evolucionismo de Spencer e o Monismo de Haeckel.
Nota: quando nos debruçamos sobre Teófilo Braga o e Positivismo, podemos acrescentar à bibliografia a obra Solução Positivas da política Portuguesa de Teófilo Braga.
E a ciência e a liberdade em Portugal nasceram a 5 de Outubro de 1910 e deixaram bem marcada na mente dos portugueses esses factos!!! Curioso que quando se perguntava aos portugueses que viveram esse período a única coisa que se lembravam eram as bombas, as perseguições, a crise financeira, e os sucessivos governos. Foi tal o cheiro de liberdade que até celebraram com alegria a chegada de Salazar! Não gostavam do cheiro. Ingratos!
E toda a gente sabe que o Salazar prendeu o Bento de Jesus Caraça por ser um perigoso matemático, porque o facto de ser militante comunista não tinha importância nenhuma para Salazar...
Já vi muitos textos apologéticos sobre a república mas este é assustador por ser escrito por alguém que se intitula de historiador...
Talvez uma releitura (supondo que o tenha lido) de Fernão Lopes para aprender algo sobre, pelo menos, uma tentativa de contar a história de modo isento (tanto quanto possível, que isto de isenções não existe, mas pode disfarçar-se).
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