segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Por que gostam os políticos de brincar com os números?


Embora não seja norma nossa republicar artigos dos grandes jornais, não resistimos a aumentar por este meio a difusão de um artigo publicado no "Público" de hoje sobre as "habilidades matemáticas" de alguns políticos, assinado por Sílvio Duarte Queirós, físico pela Universidade do Porto que trabalha em física estatística aplicada à indústria:

Infelizmente em Portugal o número de utentes que aguardam tratamento médico não é assim tão diminuto. Apesar de não residir há vários anos no país, sigo de perto o quotidiano português. Faço parte de uma mole cada vez maior de pessoas que apenas fora de Portugal encontram espaço para desenvolver as suas actividades com as condições financeiras e de estabilidade que mais de vinte anos de estudo, batalhas com referees de periódicos científicos, pesquisa catalisadora de valor para a sociedade e et cetera merecem. A situação torna-se mais preocupante quando muitas pessoas nas quais me incluo fizeram doutoramento e pós-doutoramento no estrangeiro sempre a expensas da Fundação para a Ciência e Tecnologia e que acabam por não devolver um único euro que foi investido na sua formação. Mas não é para fazer de profeta da desgraça que escrevo estas linhas.

Há dias, estava eu a assistir à minha "missa das 22 horas" [i.e., a Edição da Noite com a inefável Ana Lourenço], quando ouço numa das peças o secretário de Estado da Saúde referir-se ao facto de que Governo cumprira o objectivo de baixar a MEDIANA do tempo de espera. "Mediana?" Disse-o para mim. De todas as médias, a mediana não é com certeza a mais utilizada. Conhecendo um pouco de estatística e bastante a arte de bem jogar com os números por parte de algumas pessoas, atrevi-me escrever este ensaio sobre a arte de bem usar a estatística por parte da classe política.

Em primeiro lugar cabe definir mediana e valor médio, ou média aritmética. Apesar de coloquialmente se associar média a valor médio, rigorosamente mediana e valor médio são duas definições diferentes de média (um outro exemplo é o modo). Procurando manter-me a nível bem simples, apresentarei então o seguinte exemplo: Imaginemos o seguinte conjunto de números: {2, 4, 5, 8,10}. O valor médio corresponde ao valor da soma dos valores dos elementos do conjunto (que dá 29) e dividida pelo número de elementos do conjunto. Tem-se então que o valor médio é igual a 5,8. A mediana define-se simplesmente pelo valor do elemento do meio quando todos os elementos do conjunto são ordenados. Consequentemente, no exemplo anterior a mediana corresponde ao valor referente ao terceiro elemento, ou seja, 5. O valor médio é bastante susceptível a valores extremos, particularmente para conjuntos com pequeno número de elementos, enquanto o valor da mediana está fortemente associado a um único valor, o "valor do elemento do meio". Por exemplo, o valor 8 no nosso conjunto pode tornar-se 80, contudo, a mediana mantém-se igual a 5, muito embora o valor médio tenha subido para 20,2.

Infelizmente, em Portugal o número de utentes que aguardam tratamento médico não é assim tão diminuto, logo retorno à questão base: "Por que motivo usar a mediana?" O desconhecimento dos números afecta as conclusões que aqui se podem apresentar e apenas me permitem ficar pelo lado das conjecturas que, não obstante, são bastante plausíveis e que seguidamente apresento:

Acredito que a utilização da mediana em vez da média aritmética, acompanhada de outras medidas como a dispersão, serviu para disfarçar a incapacidade do Governo para resolver os casos em que os tempos de espera são grandes (e que representam as "caudas" da distribuição) aproveitando-se ao mesmo tempo de um aparente sucesso na resolução dos casos em que os tempos de espera são menores. Trata-se, por conseguinte, de valer-se do facto de, seguindo o nosso exemplo, se transformar o 5 em 3 (que pode ser feito com medidas técnicas acessíveis a qualquer gestor), mas de não se conseguir fazer baixar o 10 (que necessita de boas medidas políticas). Está assim a criar-se um sucesso governativo artificial, pois a ineficácia de um tratamento clínico pode aumentar consideravelmente com o tempo de espera. É certo que a média também diminui de 5,8 para 5,4 quando o 5 se transforma em 3. Todavia, não é preciso ser-se um perito de marketing para saber que uma diminuição de 5,8 para 5,4 tem muito menos impacto do que um decréscimo de 5 para 4 tal como acontece com a mediana.

Além do mais, a apresentação dos números nesta forma (divulgando apenas a mediana) esconde também consequências sobre o estado da democracia. Num regime democrático ideal, o tratamento (ou a falta dele) deve tender para a homogeneidade chamada tradicionalmente de "igualdade". Ora transformar o 5 em 3 faz com certeza baixar a mediana, mas faz também aumentar o desvio padrão, ou se preferirmos, torna o conjunto mais desigual (de 3,19 aumenta para 3,43) e logicamente diminui a qualidade real da nossa democracia.

Se o Governo elegeu então a mediana como a sua média predilecta, seria então muito interessante que apresentasse também as medianas do rendimento médio ou então as medianas dos exames nacionais. Basta ter em conta o primeiro exemplo (passar o 8 a 80) para se entender por que os governos preferem nestes casos os valores médios.

Desta forma é necessário que a sociedade preste atenção a estes pequenos truques usados pela classe política (seja ela de esquerda ou direita). É óbvio que tal depende e muito da qualidade de ensino que lhe é oferecida e nada melhor do que um povo pouco educado para que melhor este possa ser manipulado.

Sílvio Duarte Queirós

6 comentários:

Anónimo disse...

Confesso que não estou suficientemente por dentro do assunto para dizer estas coisas com certeza, mas há algumas coisas que devem ser consideradas:

Há muitas pessoas que não aceitam as datas para cirurgias que lhes são propostas inicialmente, adiando uma ou mais vezes. Como é contabilizado o tempo de espera para essas pessoas? Caso os números disponíveis não tenham em consideração esse facto a média seria distorcia mas não a mediana.

O mais importante era mesmo ser disponibilizado um relatório onde estivesse presente a distribuição e não apenas divulgar a média ou a mediana.

Sem conhecer a situação concreta é difícil de saber ao certo qual o melhor indicador a usar. É certo que no caso em apreço a mediana tem a sua conveniência política, mas o recurso à média em detrimento da mediana é muitas vezes devido à falta de conhecimento estatístico e não à sua qualidade.

Anónimo disse...

Há muitas maneiras de construir imagens homomórficas da realidade. Cada um utiliza a que mais lhe convém salvo se for estúpido. O autor do presente artigo limita-se a confirmar que os políticos não são estúpidos. Ou seja, o artigo é uma banalidade.

Anónimo disse...

Por que será que os estatísticos gostam de brincar com a política?

Leonel Morgado disse...

Participei de 1998 a 2003 (sensivelmente, a memória pode estar a atraiçoar-me) no processo de informatização do então chamado PPMA (Programa de Promoção e Monitorização do Acesso), de combate às listas de espera.
Fez-se muita coisa nesse projecto: conseguiu-se pela primeira vez estar em todo o país a recolher informaticamente, mês a mês, dados das listas de espera dos vários hospitais; estar a conseguir definir formas de agrupar os milhares de patologias e procedimentos cirúrgicos para poder analisar de forma global a evolução da situação; processos de "workflow" claro, etc.
Foi a primeira vez que houve números EXACTOS de listas de espera no país; números associados a nomes, a números de identificação, a telefones, a moradas.

Uma das coisas que se constatou é que a existência de doentes que estão há muito tempo à espera não é só "incapacidade do governo". Não! Há sem dúvida casos de falha, mas não representam nem a maioria nem sequer uma parte significativa desses casos antigos. A maioria era de doentes que têm outros problemas médicos associados e, quando chamados para operação, geralmente não se encontram em condições de ser operados. Por exemplo, doentes que teriam de receber uma prótese de anca mas que por questões cardíacas, hemáticas, etc... não podem ser sujeitas a uma intervenção cirúrgica. Mas precisam dela: não podem ser retiradas da lista. Simplesmente, só a equipa médica que as acompanha pode ir tentando arranjar forma, se a houver, de conseguir "equilibrar" ou "estabilizar" estes casos para - só então - serem operados. Muitos nunca o serão, porque o benefício da operação é inferior ao risco. Mas estão nas listas de espera!

Por isso se passou a usar a mediana. Porque de facto os casos de 10 e 20 anos inflaccionam a média mas não reflectem a realidade real do sistema de saúde; não é a média que indica se o cidadão comum está muito ou pouco tempo à espera.

Óscar Mota disse...

Penso ser consensual que a mediana é, em geral, preferível à média: É igual à média em distribuições normais, difere pouco nas pouco assimétricas {2, 4, 5, 8,10} e, nas muito assimétricas {2, 4, 5, 80,10}, a média não deve ser usada por ser muito influenciada pelos valores extremos.
O aa. apresenta exemplos de manipulação de estatísticas tão estranhos que, em minha opinião, perdem credibilidade. Não teria sido preferível que tivesse discutido as próprias estatísticas de Portugal que criticou e que estão disponíveis?

Unknown disse...

PERFEITO!! EXATAMENTE O QUE ESCREVI EM POST AGORINHA MESMO

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