sexta-feira, 11 de junho de 2010

ROBIN HOOD: A HISTÓRIA POR TRÁS DA LENDA


Novo texto de João Gouveia Monteiro saído antes no "Diário de Coimbra":

Tem estado em cartaz a mais recente adaptação ao cinema da história de Robin Hood. Assinado por Ridley Scott e com Russell Crowe, o filme surpreende, pois a história acaba onde as outras começam: no momento em que Robin se torna num fora-da-lei e se refugia na floresta de Sherwood para fazer a guerra ao xerife de Nottingham e ao rei João Sem-Terra, usurpador do trono do bravo rei Ricardo, ausente nas Cruzadas. Afinal, fora este o enredo que todos nos habituáramos a acompanhar, desde a versão de 1938 com Errol Flynn (o Robin de collants verdes) até ao “Príncipe dos Ladrões” (1991, com Kevin Costner), passando pela comédia dirigida por Mel Brooks (1993) e pela série televisiva com Richard Green, sem esquecer a BD e o “arqueiro verde” Ollie Queen.

A equipa de Ridley Scott (“Gladiador” e “Reino dos Céus”) propõe-nos uma revisão da personagem Robin Hood (o nome vem do chapéu com pena, “hood”, e não de “bosque”, “wood”): Robin é um arqueiro que acompanhara o rei Ricardo nas Cruzadas e que, depois da morte deste em 1199, no cerco do castelo de Châlus (no Limousin), regressa a Inglaterra e acaba por vestir a pele do filho de Sir Walter Loxley, Robert, e por ficar com a viúva deste, Lady Marion, tornando-se assim num abastado proprietário de Nottingham. Em pano de fundo, a guerra dos barões do Norte contra o novo rei João Sem-Terra e a rivalidade entre os monarcas de França (Filipe Augusto) e de Inglaterra (sobretudo a disputa pelo ducado da Normandia), bem aproveitada pelos barões para impor a João um documento que este acaba depois por renegar, levando à deserção para Sherwood.

A personagem Robin Hood tem algum pedigree. Remete para um poema épico do século XIII e para uma compilação de c.1400 onde se reuniram velhas tradições orais que relacionavam o Robin com a resistência à cobrança abusiva de impostos e com a actividade criminal no Yorkshire. Sabe-se também que os Normandos conquistaram a Inglaterra em 1066, o que viria a dar origem à dinastia dos Plantagenetas, iniciada por Henrique II. Este herdou dos pais vastos territórios em França e casou com Leonor da Aquitânia (ex-rainha de França) antes de se tornar rei de Inglaterra em 1154. Ora, Henrique e Leonor são os pais de Ricardo Coração-de-Leão. Trata-se de reis de Inglaterra mas que vivem sobretudo em França. Em 10 anos de reinado, Ricardo viveu apenas seis meses em Inglaterra! Quando partiu para a Cruzada, vendeu imensos cargos e disse até que teria vendido Londres se tivesse tido comprador… No regresso, foi preso pelo duque da Áustria e vendido ao imperador germânico, tendo então de pagar um resgate brutal que acabrunhou a Inglaterra. Mas reagiu e dispôs-se a enfrentar Filipe Augusto, recusando-lhe a Normandia e tentando manter os castelos que controlavam o acesso ao sul da França (como Châlus). Morreu de uma seta perdida, num cerco. À sua morte, o irmão João assumiu o trono, com a protecção da mãe. Ricardo, graças ao extraordinário administrador Hubert Walter (arcebispo da Cantuária), deixara-lhes uma máquina governativa poderosa e centralizada que não agradava aos barões. Para mais, os grandes tinham tido de pagar um quarto das suas rendas e bens para financiar o resgate de Ricardo! A revolta estalou, com o apoio de Filipe Augusto de França, através do seu herdeiro Luís. João Sem-Terra desposou Isabel de Angoulême para tentar manter a política de Ricardo no Limousin, mas o seu talento militar era fraco e o seu partido seria derrotado por Filipe em Bouvines, em 1214. No ano seguinte, os barões ingleses tomaram Londres e impuseram-lhe um compromisso: a célebre Magna Carta. João fingiu aceitar mas negociou com o Papa, que a invalidou. Aí, os barões ofereceram o trono inglês a Luís de França, que invadiu a Ilha em 1216 e foi reconhecido como monarca pelos grandes e pelo rei escocês. João morreu logo a seguir. Caberia ao notável regente Guilherme-o-Marechal negociar uma nova versão da Carta e salvaguardar a soberania da Inglaterra.

É neste cenário que se movimenta Robin Hood, o homem por trás da flecha. Ele é um dos northeners” prejudicados pelas exacções fiscais impostas desde o tempo de Ricardo e pela centralização do poder régio. A sua luta não consiste em roubar os ricos para dar aos pobres, mas em minar a autoridade central. Se os barões ingleses negoceiam com a França, é porque os dois reinos estavam unidos por valiosos laços comuns. A própria língua (o anglo-normando) o denuncia. Só após a Guerra dos Cem Anos (1453) as águas ficaram separadas. Assim, João Sem-Terra não é o vilão que julgamos. Nem Ricardo o justiceiro que ama a Inglaterra (onde quase nunca esteve) e os seus súbditos. Ridley Scott, apesar de ter aproveitado muita História, não explorou tudo isto, nem quis estragar o cor-de-rosa de uma lenda centenária. Fez bem: afinal, a ficção costuma ser bem mais agradável do que a realidade…

João Gouveia Monteiro (Historiador)

20 comentários:

joão boaventura disse...

Este história relembra a de D. João II que andando a passear a cavalo com três ministros do reino, na Lezíria do Tejo, os aconselhou a correrem um pouco, ao que ripostaram que só corriam atrás dos ladrões.

Resposta de D. João II - "- Então correi atrás uns dos outros."

Anónimo disse...

Por trás do véu do mito... há quase sempre um vilão. JCN

Anónimo disse...

A pôr-se em prática o princípio nos dias de hoje, atropelavam-se uns aos outros! JCN

Carlos Medina Ribeiro disse...

No filme, há uma curiosa frase que bem se adapta à nossa realidade da "caça à classe média" - cito de memória:

«Quando se quer tirar leite de uma vaca que já deu todo o que tinha, o mais que se pode obter dela é um valente coice» - veremos se assim é...

Anónimo disse...

Se a história fosse a mestra da vida, há muito que a vaca já teria dado o coice! JCN

Anónimo disse...

Não há mito que resista
à investigação histórica
pois não passa de retórica
ou mero fogo de vista.

JCN

Anónimo disse...

Quem havia de supor
que o Coração de Leão
era sem tirar nem pôr
uma espécie de aldrabão!

JCN

José Morais disse...

Meu caro JGM!
Então a luta de Robin Hood (e eu que vivia convencido de que era mesmo Wood, o «nosso» Robin dos Bosques!) «não consiste em roubar os ricos para dar aos pobres»?!
Oh! Agora que Teixeira dos Santos talvez estivesse quase decidido a adoptar o modelo do mítico Robin!!!
Resta uma esperança: que não leia este artigo de... desenganos!
Não vi [ainda] o filme de Ridley Scott. Se vier a vê-lo, sentir-me-ei prevenido contra o rosa e hei-de contrabalançar esse tom etéreo com as cores bem mais terra-a-terra que o João aqui nos dá!
Bravo!

joão boaventura disse...

A vaca referida por Medina Ribeiro traz à memória estas definições que só uma vaca podia proporcionar:

Socialista - Tu dás uma vaca ao vizinho

Comunista - O governo fica cm as duas vacas e dá-te o leite

Fascista - O governo fica com as duas vacas e vende-te o leite

Nazista - O governo fica com as duas vacas e dá-te um pontapé

Eurocrata - A Europa fica com as duas vacas, mata uma, explora a outra e deita o leite fora

Capitalista - Tu vendes uma vaca e compras um boi.

Anónimo disse...

Ainda me recordo o Carlos Fiolhais ter explicado, neste mesmo blog, que o tal "Hood" se devia a um problema de transcrição do original "Wood" (foi no primeiro ano). Não há melhor espaços de humor que os posts do Carlitos de Coimbra.

Leonel Morgado disse...

Só uma correcção: "hood" não é chapéu com pena: é capuz! Como aliás se nota na fotografia do artigos, retirada do filme (o capuz está caído, para trás da cabeça). Nada tem a ver um "chapéu com pena", essa apenas a imagem que nos ficou do Errol Flynn...

Anónimo disse...

Só faltava mais esta: o "Robim do Capuz"! Iremos acabar no "Capitão Robi(m)? JCN

joão boaventura disse...

Ao anónimo de 12 do corrente, 19:43

Se compulsar The Book of Days. A Miscellany of Popular Antiquities (Ed. W. & R. Chambers: London & Edinburgh, 1853, verificará que o Doutor Carlos Fiolhais não fez humor ao abordar a questão da hipótese de “hood” ter sido considerado uma corruptela de “wood”.

Com efeito, a pp 608, linha 15 e sgts da coluna direita, da citada obra, lê-se:

“It was been gravely conjectured that his name, Robin Hood, is a corruption for Robin of the Wood, and that he is to be only regarded as a mythical embodiment of the spirit of unrestrained freedom and sylvan sport.”

Anónimo disse...

Caro Boaventura:

Creio que não percebeu a subtileza do humor do Doutor Carlos. Ele explicou, com a certeza de quem explica uma verdade científica (como tal fosse coisa clara), que o Hood se devia a um problema de transcrição do Wood. Ele não afirmou que se tratava de uma hipótese entre outras. A subtileza do espaços de humor do Carlitos é esta: dar por verdade e ter-se como portador dessa verdade o que é duvidoso. Não há nada mais trágico e, como tal, humorístico, que a ignorância casada com a soberba. É esse o humor de qualidade do Fiolhais.

Anónimo disse...

Parece-me que são subtilezas... a mais! Voltamos ou não voltamos ao... Robim os Bosques? JCN

João Gouveia Monteiro disse...

Meus caros. Vou tentar ser útil e ajudar no esclarecimento do detalhe do nome do Robin.
1. Não parece haver dúvida de que existiu de facto uma interpretação, bastante clássica, que apontava para uma troca de "wood" por "hood" (por corrupção na transcrição da primeira letra). Era uma interpretação sedutora, tendo em conta que a personagem actuava a partir da floresta (Sherwood), e alastrou de tal modo que as traduções directas da 'versão corrigida' não se fizeram esperar ("Robert des Bois", etc.).
2. No entanto, sendo o Robin a personagem famosa que é, tem sido muito investigada a sua possível origem (fictícia ou não), nomeadamente a partir da fonte "Gest of Robyn Hode". Hoje, julgo que a maioria dos autores se inclina muito mais para a ideia de que não houve troca de letra: "hod" ou "hood" terá sido intencional e deve remeter para o traje da personagem (concretamente para a sua protecção de cabeça).
3. Como no inglês moderno (e creio que também em tempos mais recuados) "hood" significa literalmente "capuz", muita gente acha (e com bastante lógica) que a ideia de 'encapuçado' assenta perfeitamente na personagem e na sua condição de fora-da-lei. Mas outros apontam para o chapéu do arqueiro, com a sua pena de ave (curiosamente, diga-se de passagem que "hood" também pode significar cobertura de cabeça usada em aves de caça). Esta interpretação, que não é nova e que inspirou algumas reconstituições da personagem, tem ganho adeptos, até porque porque condiz bem com a prática da arcaria. De tal modo que, para não ir mais longe, se virem a entrada (interessante) que a Wikipédia apresenta para Robin Hood, lá encontrarão a explicação "Robin Hood, que ganha o apelido por usar um 'hood' (tipo de chapéu com pena)", etc.
4. Em síntese, no pequeno parênteses que incluí no meu texto pretendi sobretudo chamar a atenção para a reabilitação do nome "Hood", uma vez que em Portugal também traduzimos por "Robin dos Bosques" (ou não fosse a nossa cultura de então bastante francófona). Mas compreendo bem que muitos colegas ainda estejam afeiçoados à interpretação tradicional (derivada de "wood") ou se inclinem mais para a solução "capuz" (que é o que encontramos em qualquer dicionário moderno de inglês-português).
5. Por curiosidade, e para aferir melhor da forma como os historiadores ingleses da Idade Média ponderam hoje esta questão, depois de tantas averiguações, pedi ontem um esclarecimento ao Prof. Christopher Allmand, de Liverpoool, que é um ilustríssimo medievalista, já jubilado. Se a resposta vier em tempo útil (receio que ele possa estar de férias) não deixarei de inserir um novo comentário neste blogue, porque já agora ficávamos todos absolutamente 'up to date'. Claro que é uma questão marginal relativamente ao sentido principal do meu texto (situar as personagens João Sem-Terra e Ricardo Coração-de-Leão no seu verdadeiro contexto histórico), mas não deixa de ser curiosa.

Um abraço e obrigado a todos pelo vosso interesse, que é sempre gratificante.
João Gouveia Monteiro.

Anónimo disse...

Louvável a vinda a terreiro do Autor do texto questionado. JCN

Anónimo disse...

Caro JCN. Não há subtileza a mais. Convido-o aliás a fazer a seguinte experiência: sempre que o Douto Fiolhais escrever algo relacionado com a História ou com a Filosofia (e por vezes mesmo em relação à Física) observe o tom certo e seguro com que escreve. Depois verifique que aquilo que é dado como certo é, na melhor das hipóteses, muito questionável, não sendo raros os disparates.

Em contraponto, é impossível não se elogiar a postura do Doutor João Gouveia Monteiro. Agradeço-lhe os seus esclarecimentos, cuidado e seriedade.

Anónimo disse...

Já lá tinha chegado, caro Anónimo! Só que subtileza em demasia... redunda em opacidade, não lhe parece? JCN

João Gouveia Monteiro disse...

Caros Amigos:

Acabo de receber a resposta do Prof. Christopher Allmand (que de facto estava ausente, em férias). Ele diz que o debate tem sido mais sobre a verosimilhança da figura histórica do Robin Hood, não tanto sobre a interpretação do seu nome. Em todo o caso, ele, pessoalmente, dado o significado que o termo "hood" conserva no inglês moderno, inclina-se mais para a solução "capuz / encapuçado". Julgamos que é só o que se pode avançar nesta matéria. Um abraço para todos e os votos amigos de umas férias felizes e retemperadoras. João Gouveia Monteiro.

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