sexta-feira, 14 de março de 2008

Células estaminais e expressão génica

Há uns tempos, o Desidério escreveu um post imprescindível, «Argumentos contra a clonagem», que vale a pena (re)ler.

Os argumentos que o Desidério desmonta - supostos argumentos que não passam «de preconceitos religiosos ou outros que se querem fazer passar como se fossem princípios tão importantes, tão importantes, que o melhor é nem usar o nosso sentido crítico para saber se há boas razões para os aceitar ou não» - são usados não apenas contra a clonagem reprodutiva mas igualmente contra a clonagem terapêutica, contra qualquer tipo de manipulação genética e investigação que não se subordine a esses «princípios importantes», nomeadamente a concessão de «dignidade humana» a toda e qualquer célula totipotente que torna «criminosa» a investigação nestas células estaminais, qualquer que seja a sua origem.

Os objectores à investigação em células estaminais são-no apenas por razões religiosas, como foi o caso de GW Bush que usou pela primeira vez o veto presidencial para rejeitar legislação aprovada no Congresso norte-americano - que pretendia expandir as restritas leis que governam o financiamento da investigação em células estaminais embrionárias, restrições impostas pelo próprio Bush em 2001 e que limitam a investigação nesta área a 71 linhas de células. Mas é a Igreja de Roma quem lidera os oponentes (muito vocais e bem organizados) da investigação em células estaminais totipotentes.

Por exemplo, em Agosto de 2006, Monsenhor Elio Sgreccia, que preside à Academia Pontifícia para a Vida afirmou numa entrevista à Rádio Vaticano que o método desenvolvido por cientistas da Advanced Cell, em Alameda, Califórnia, «não resolve os problemas éticos» desta área de investigação.

Daniel Serrão, católico e membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida assim como Rui Reis, presidente da Sociedade Portuguesa de Células Estaminais e Terapia Celular, tinham considerado que com esta técnica «caem assim por terra os argumentos contra a investigação em células estaminais embrionárias, porque mantém a integridade do embrião». Mas ambos se esqueceram da «dignidade humana» atribuída pela Igreja católica a uma célula totipotente.

O novo método - descrito na Nature - consiste em colher um embrião numa fase muito primitiva de desenvolvimento e retirar-lhe uma única célula, que pode dar origem a uma estirpe de células estaminais embrionárias. O embrião, excedentário de fertilização in vitro, não é destruído no processo e mantém todo o seu potencial de desenvolvimento, embora o seu destino mais provável seja a destruição. Contudo, notou Sgreccia, o novo método não tem em conta que mesmo aquela única célula removida, uma célula totipotente, pode evoluir para um ser humano totalmente desenvolvido ou seja, esta técnica é ainda mais reprovável que a anterior porque… destrói incontáveis pessoas, tantas quantas as células produzidas.

A questão da investigação em células estaminais assumiu esta semana uma especial relevância, não apenas devido à guerra que a Igreja está a manter no Brasil - em relação à investigação em células estaminais e ao aborto - mas também pelo anúncio de novos «pecados», proeminente entre eles a manipulação genética, tema que será abordado no próximo post.

No Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) pediu aos ministros que votem a inconstitucionalidade do Artigo 5º da Lei 11.105/05 - que prevê a investigação com células embrionárias obtidas a partir de embriões excedentários da fertilização em vitro que estejam congelados há pelo menos três anos e que está a ser analisada no STF (Supremo Tribunal Federal).

Dada a actualidade do tema, relembra-se alguns dados referentes a estas células totipotentes, que são apenas isso, células, mas que são capazes de diferenciarem-se em todos as mais de 200 tipos de células que constituem os tecidos do corpo humano. Ainda não conhecemos o processo pelo qual esta diferenciação celular ocorre, sabemos apenas que as células somáticas diferenciadas perdem a capacidade de originar qualquer tecido. As células descendentes de uma célula diferenciada vão manter as mesmas características da célula original, isto é, células de um qualquer tecido, seja fígado, músculo, neurónios, etc., vão originar apenas células desse tecido.

Apesar de a informação genética ser a mesma em todas as células do nosso corpo, os genes nas células somáticas diferenciadas expressam-se de forma diferente em cada tecido, isto é, a expressão génica é específica para cada tecido. Com excepção dos genes responsáveis pela manutenção do metabolismo celular (housekeeping genes) que se mantêm activos em todas as células do organismo, apenas determinados genes irão funcionar em cada tecido ou órgão. Os restantes são «silenciados», isto é, não são transcritos.

No caso da clonagem terapêutica, a preparação duma linha de células estaminais embrionárias implica a criação dum zigoto, o seu desenvolvimento até a fase de blastocisto, e a remoção da massa celular interna do blastocisto. O zigoto é preparado introduzindo ADN de uma célula diferenciada num óvulo a que foi retirado o material genético. As células totipotentes obtidas poderão ser usadas numa futura medicina regenerativa, quando percebermos como as «programar», isto é, como obter diferenciação optimizada de células estaminais. Poderemos então produzir tecidos em laboratório que permitirão, por exemplo, reconstituir a medula de um paraplégico ou substituir tecido cardíaco danificado por um enfarte.

Alguns dos prémios Nobel de 2006 e 2007 ajudaram-nos a perceber esta questão fundamental em biologia, lançando luz sobre a activação e desactivação de genes.

O investigador norte-americano Roger D. Kornberg foi distinguido com o Prémio Nobel da Química 2006 pelo seu trabalho sobre «a base molecular da transcrição eucariótica».

A resolução da estrutura atómica da ARN polimerase serviu de base a um trabalho extremamente elegante que foi decisivo para elucidar a nível molecular o mecanismo de transcrição em eucariotas (organismos cujos células têm núcleo - todos os organismos multicelulares são eucariotas).

Como já referi, a transcrição é a leitura da informação contida nos genes ou fragmentos de ADN, informação transcrita numa molécula de ARN que é complementar à cadeia da dupla hélice de ADN «lida». É o primeiro de dois passos, transcrição e tradução referidos conjuntamente como expressão génica, necessários à produção de proteínas. A transcrição não se limita à expressão de proteínas já que o ARN tem outras funções para além de servir de ponte entre o ADN e a produção de proteínas.

A ARN polimerase é a principal enzima do complexo enzimático responsável pela transcrição do ADN em ARN. Ao contrário dos procariotas ou procariontes - organismos unicelulares, por exemplo bactérias, cujas células não têm núcleo - onde o processo de transcrição é relativamente simples, com apenas um co-factor designado por factor sigma, nos eucariotas existem uma série de co-factores necessários à transcrição, os factores de transcrição ou TFs.

Esta complicada coreografia molecular está directamente relacionada com o grau de complexidade celular encontrado nos organismos multicelulares. Estes organismos apresentam células especializadas, como um neurónio ou uma célula muscular, que necessitam expressar diferentes proteínas, isto é, de activar genes diferentes. Ou seja, é a transcrição selectiva das dezenas de milhares de genes presentes numa célula que determina se esta se transformará num neurónio, numa célula muscular ou do fígado. E determina se uma dada célula se desenvolve normalmente ou se transforma numa célula cancerígena.

Enquanto o Nobel da Química de 2006 tratou da activação e transcrição de genes, o prémio Nobel da Fisiologia e Medicina, atribuído aos investigadores norte-americanos Andrew Fire e Craig Mello, tem a ver com a desactivação ou silenciamento de genes.

Os dois cientistas foram galardoados pela sua descoberta da interferência de ARN (ARNi), mecanismo que permite silenciar genes introduzindo na célula uma curta cadeia dupla de ARN complementar à sequência de ARN do gene a silenciar. Ou seja, este mecanismo, presente naturalmente não só em animais mas também em plantas como defesa contra vírus e para regular a expressão de cerca de 30% dos genes, permite, de forma simples e eficaz, manipular a expressão de um determinado gene. Para além de ser fulcral na investigação da função de uma determinada proteína, pode suprimir a expressão de uma proteína que esteja na origem de uma determinada patologia. Por exemplo, pode ajudar a controlar os níveis de colesterol, como indicam estudos preliminares realizados em primatas em que se silenciou o gene que codifica uma proteína envolvida no transporte e metabolismo do «mau» colesterol.

Como escreveu o Paulo, «o Nobel da Medicina e Fisiologia de 2007 foi atribuído a Mário Capecchi, Martin Evans e Oliver Smithies pelos trabalhos que conduziram a uma das técnicas mais bem sucedidas da investigação genética: a introdução de alterações genéticas específicas no genoma de um organismo, recorrendo a células estaminais. A ferramenta desenvolvida por estes biólogos (um geneticista, um embriologista e um bioquímico) designa-se por tecnologia ‘knock-out’, porque corresponde à possibilidade de silenciar um único gene do genoma: e precisamente aquele que pretendemos. É o surpreendente grau de precisão desta técnica que a tornou tão famosa e útil».

Em resumo, quando se fala em clonagem é fundamental perceber a diferença entre clonagem reprodutiva e clonagem terapêutica. É importante perceber também que a investigação em inúmeras áreas da medicina, biologia e bioquímica - e em certas áreas da química - envolve manipulação genética em algum ponto do trabalho. Também é prática rotineira em muitos laboratórios a cultura de células e tecidos. A investigação com células embrionárias apenas conjuga ambas: envolve óvulos (que quando não fecundados são apenas mais uma célula) que após manipulados permitem a obtenção de outras células que por sua vez poderão ser utilizadas na produção de qualquer tecido em laboratório. Urge especialmente perceber que as convicções religiosas são apenas isso, convicções que se aceitam por fé e que não devem ser impostas a todos através do Direito que nos rege por manipulação da opinião pública e por exercício de pressão política.

22 comentários:

Anónimo disse...

Srª Professora

Concordo consigo quando afirma que as convicções que se aceitam por fé não devem ser impostas a todos através do Direito. Infelizmente as convicções de quem é a favor do aborto foram impostas a todos, inclusivé a quem não concorda, através do Direito. Mas com isso a Srª Doutora não se importa dado que o Direito está de acordo com as suas convicções pessoais. Mas passemos adiante.

Tal como as convicções por fé não devem ser impostas a todas através do Direito as convicções pessoais da Srª Professora também não devem seguir o mesmo caminho, isto é, não devem ser impostas a todos através do Direito, nem da manipulação da opinião pública nem de pressões políticas.

Dito isto, ficamos num impasse. O melhor é calarmo-nos todos e extinguirmos todas as leis, dado que se queremos ser justos se as ideias religiosas não devem influenciar as não religiosas também não. Já percebeu o absurdo a que pode conduzir o seu raciocinio?

Há outros absurdos no que escreveu. Porque não podem as ideias religiosas procurar influenciar a opinião pública ou exercerem pressões políticas? Porque a Senhora Doutora não o quer? Com que legitimidade? Em nome de um laicismo que exclui os "religiosos" da vida pública? Não acha essa espécie de laicismo um pouco arcaica e démodé?

Eu, como "religioso", quando preencho a minha declaração de impostos devo esquecer a recomendação religiosa de dar a César o que é de César? Sabendo eu que a Senhor Doutora é ateísta devo exigir o seu silêncio e reivindicar que não tente influenciar a opinião pública nem pressionar a política dado que posso desconfiar que o seu objectivo é difundir o ateísmo?

Defenda as suas ideias, Senhora Professora, o melhor que souber ou puder. Eu faço o mesmo. Mas não torne o "jogo" desleal expulsando os adversários de campo de modo a marcar golos sózinha. Não me parece justo.

Bom equinócio de Março :-)

Unknown disse...

Fantástico post Palmira! Cinquenta estrelas :) Mal consigo esperar pelo seguinte, que já estava a estranhar não ter sido devidamente tratado :))))

Caro António Parente: ninguém lhe impôs nada coma lei do aborto. Tanto quanto eu saiba ninguém, incluindo o António Parente, é obrigado abortar indo contra as suas convicções religiosas.

O que se permite é que quem não tem essas convicções religiosas possa agir de acordo com a sua consciência.

O que a Igreja e o António Parente quer é que todos sejam obrigados a agir de acordo com as tretas da ICAR.

felizmente já não estamos na Idade Média mas há muita gente que ainda não se apercebeu disso e continua apensar que tem direito a impingir aos outros as patetadas em que acredita!

Anónimo disse...

Estimada Rita

Deixe-me cumprimentá-la e saudá-la dado que não a via há muito tempo ;-)

As suas "cinquenta" estrelas, a sua referência ao que "só aborta quem quer" (não se percebe que haja leis penais porque só mata ou rouba quem quer...) e o recurso à cassete da "idade média" mostra como o meu comentário foi eficaz.

Beijo na testa :-)

Anónimo disse...

Bom Post Palmira.

António Parente, quer se queira quer não se não fossem os laicos provavelmente ainda estaríamos na idade média numa espécie de Afeganistão Cristão!

Mais um aparte. Eu leio um pouco do velho testamento e vejo um Deus ruinzinho "como as cobras". Dá vontade própria aos Homens e depois não concorda com a vida deles e MATA TODOS (incluindo animais inocentes que nada tinham a ver com os homens) à excepção de um casal e diz que daí para a frente não voltará a fazê-lo porque o homem é mesmo assim e não há que castigar todos os seres vivos (bem que Deus este que se enfurece e perde a razão para depois se acalmar de perceber que fez asneira). E depois mata todos os primogénitos do Egipto incluindo animais e filhos de escravos coitados que tanta responsabilidade tinham nas decisões politicas e a coisa continua assim durante todo o antigo testamento.

E ainda há quem queira tomar a bíblia literalmente (IDiotas).

É tudo uma tontice pegada que impões crença idiota através de mensagens de medo. É o mito de criação mais idiota de todos!

Se existe um Deus assim que mata e esfola e se irrita dessa maneira eu quero é que ele se vá... @$%&º.

Não gosto dele nem um bocadinho!

Anónimo disse...

"António Parente, quer se queira quer não se não fossem os laicos provavelmente ainda estaríamos na idade média numa espécie de Afeganistão Cristão!"

Sempre apreciei a capacidade ateísta de regressão ao passado e construção de presentes alternativos. ;-)

Bruce Lóse disse...

Pal,

A totipotência ocorre nas plantas de uma forma que devemos de todo invejar, apesar da coreografia ribossomal também ser para os vegetais de tal modo complexa que poderíamos achar que eles têm mais com que se preocupar. Todo um indivíduo pode ser gerado a partir de tecido adulto.

Infelizmente a totipotência que nos obriga a vasculhar o embrião é também aquela que no futuro nos levará a visitar o museu Madame Tussaud com um grande saco de amendoins (caso a gerência permita alimentar o figurino).

Anónimo disse...

Fala-se muito de massa crítica. Parece que há pouca na sociedade portuguesa e, pelos visto, na das células estaminais.
O estame é o órgão masculino das plantas que produzem flores.
Stem significa tronco ou caule. Daí que o correcto seja falar de células-tronco (também há quem use o termo células-mãe).
O "estaminais" foi uma invenção (leia-se tradução ignorante e à pressa), presumivelmente de um qq jornalista. Não faz qualquer sentido.
Carla Andrade

Abobrinha disse...

Palmira

Gostei do post e voltarei para o comentar mais a fundo. Fiquei um pouco mais informada mas nem por isso com uma posição mais definida.

Chamo só a atenção que "perceber que as convicções religiosas são apenas isso, convicções que se aceitam por fé" não é o mesmo que rejeitá-las só por serem as crenças de religiosos. Há que pensar se fazem sentido ou não. Pode parecer uma observação descabida (e à partida até é), mas há quem tome posições só porque outros as tomam, acriticamente (o que alegam que fazem os religiosos... mas há quem, só para contrariar, tome a posição contrária. Também acriticamente!

Queria ainda pedir-lhe para ler o post do blogue Ktreta abaixo e a troca de opiniões, em que se discutiu se essa história dos novos pecados seria bem assim ou liberdade jornalística.

http://ktreta.blogspot.com/2008/03/new-and-improved.html

Palmira F. da Silva disse...

Olá Abrobrinha:

Já tenho o post dos «novos» pecados capitais quase pronto há uns dias mas tenho andado com mais falta de tempo que o normal.

De qualquer forma transcrevo o que já tenho escrito sobre a dita entrevista ao «L’Osservatore Romano» de Gianfranco Girotti, bispo regente do tribunal da Penitenciaria Apostólica:

«As repercussões da entrevista obrigaram ao esclarecimento de que «O Vaticano não publicou uma nova lista dos sete pecados capitais». No entanto, as preocupações expressas pelo dignitário católico, corroboradas pelas directivas do Vaticano no que refere aos temas subjacentes, nomeadamente investigação em células estaminais,...»

Mr. Shankly disse...

Brilhante post!

"Infelizmente as convicções de quem é a favor do aborto foram impostas a todos, inclusivé a quem não concorda, através do Direito."
Isto é totalmente falso, e chega a ser desonesto. A anterior situação é que impunha preceitos religiosos a quem os não tinha. A comparação com o roubo ou o assassínio é ainda mais desonesta, pois nestes existem partes lesadas.
Ficámos sem saber a sua opinião acerca do fundamental do post.

Concordo no entanto com o que escreveu no 4º parágrafo. Tem todo o direito de influenciar.

Anónimo disse...

Mr. Shankly

Não é falso nem desonesto. Existem motivos não religiosos para se ser contra o aborto e pode-se legislar contra o aborto sem ser por motivos religiosos.

A comparação com o roubo e o assassínio também não é desonesta do meu ponto de vista. Se considerar que mata uma vida, então existe uma parte lesada. Sei que este tema é controverso e limitei-me a exprimir o meu ponto de vista. Tal como procuro entender o que os outros me dizem gostaria que tivessem a mesma generosidade comigo.

Sobre a minha opinião acerca do fundamental do post, ainda não a tenho. Já quando o Desidério Murcho falou no assunto em Novembro eu fiquei silencioso. Continuo silencioso até ter uma opinião definida e fundamentada.

Abobrinha disse...

Palmira

Agora estou arrependida por não ter encomendado o original do "Osservatore romano" (queriam vender-me aquilo em papel, imagine!).

Contudo, a citação escolhida parece-me um bom ponto de partida para uma discussão interessante. Independentemente de eu concordar ou não consigo. Espero pelo post.

Abobrinha disse...

Palmira

Agora o comentário ao post em si.

Li e reli o texto. Reli ainda com gosto o post do Desidério Murcho e acho que ainda me ri mais que da primeira vez que o fiz: está o máximo! Mais que o máximo, está acertadíssimo.

Entendi o post do Desidério Murcho não como a favor nem contra a clonagem. Entendi-o como contra a ideia que clonagem reprodutiva é uma aberração. É um texto fundamentadíssimo (e com um humor fora de série!) acerca de como a clonagem reprodutiva não é uma aberração só porque não tem a mão de Deus. Eu podia ter escrito aquele texto, se tivesse aquele nível argumentativo, porque eu concordo com tudo o que lá está. E não é todos os dias que eu concordo a 100% com um texto que exprime uma ideia!

Este seu post pôs-me a pensar em muita coisa, sendo que parte do que eu penso se relaciona com o que penso sobre o aborto. Nestes dois posts (http://aboborapequenina.blogspot.com/search/label/aborto) está a minha posição sobre o aborto, mas resume-se tudo a eu considerar que há vida desde a concepção. Estranhamente votei "sim" no referendo, por muitos motivos. Um dos quais NÃO era de que a mulher tem direito a escolher.

O que é que isto tem que ver com a clonagem? Tudo! Vou deixar de lado a clonagem reprodutiva e vou só à terapêutica. A técnica anterior implicava a destruição pura e simples de um embrião. Acho que não é preciso dizer que sou contra. Esta retira uma célula de um embrião, na fase em que ele tem 8 células (nesta fase já se chama embrião? Pensei que tinha outro nome)... de modo a que essa uma célula pode ter potencial reprodutivo... ... ou seja, de facto essa célula mantém o potencial de ser um ser humano como eu e a Palmira... isso é confuso, para dizer o mínimo! Independentemente do que diz o Daniel Serrão ou o Vaticano, mete-me confusão e não sei se aceito.

A clonagem terapêutica implica que destruir este potencial ser humano me pode salvar. Mas será que eu quero que salvem a minha vida destruindo uma outra? Eu sou contra o aborto (isto é, não faria um, mas votei sim, o que é estranho), pelo que manda a lógica que não aceite a morte de um inocente como sacrifício pela minha.

Pode ser um avanço científico, mas será um recuo ético? O mais confuso ainda é que nem eu estou plenamente convencida do que eu mesma escrevi atrás. Estou honestamente confusa e sem saber o que pensar.

Para confundir ainda mais, eu sei que não tenho uma doença que tenha uma promessa de cura com células estaminais. Assumindo que o que disse atrás é a minha posição escrita na pedra, será que vou mudar de ideias se desenvolver uma? Será hipócrita da minha parte mudar de ideias se/quando isso acontecer? Será ético?

Voltanto ao post do Desidério Murcho, justificar a alergia à clonagem com argumentos religiosos é válido para quem subscrever inteiramente (não é o meu caso) e/ou acriticamente a posição da igreja. Mas há limites éticos e eu não sei se aceito de todo a clonagem.

Uma coisa é certa: esta segunda abordagem técnica à clonagem veio de rejeitar a mais "fácil", que era a destruição pura e simples daquilo que eu considero um ser vivo. O que me leva a pensar: se o pessoal se esforçar mesmo, será que se pode arranjar ainda uma outra alternativa? Algo como pegar numa célula adulta, ligar todos os genes que interessam (sem passar nunca à totipotência) e desligar os que não interessam e ver o que acontece?

Porque não andar mais devagar e fazer experimentação em animais? Começar mesmo com animais com ciclos de vida mais curtos e aprender mais, em vez de passar directamente para os humanos. E porque não descobrir, como diz o Bruce Lose, o que as plantas sabem e nem se preocupam?

A parte da religião foi fácil de resolver. O pior é o resto!

Abobrinha disse...

Palmira

Como o comentário anterior não foi suficientemente longo e confuso, venho ainda fazer mais uma pergunta: de quem são as células estaminais que se usarão na clonagem terapêutica? De dadores anónimos? Creio que ajudaria à questão pensar: eu contribuiria com um embrião metade feito por mim para uma intervenção destas? Eu não, porque esse embrião seria MEU filho. E eu não sacrificaria o meu filho por mim! Que direito tenho então de destruir o filho de outra pessoa? Matar o filho de outra pessoa!

Isto não seria o mesmo que arranjar uma pessoa adulta e saudável, de quem preciso do coração para sobreviver, arrancar-lhe o coração para pôr no meu peito? Pormenor: esse adulto vai morrer! Eu vivo, mas esse adulto perfeitamente saudável vai morrer. Isto não pode estar certo! E não é preciso meter a religião ao barulho sequer.

A Ciência tem trazido grandes avanços e conhecimento, mas não podemos ultrapassar certas barreiras. A Ciência permite-me saber que uma célula das 8 (segundo a técnica mais avançada) pode dar um ser vivo igual às outras 7 que não foram separadas. O conhecimento é uma bênção e uma maldição: se eu estivesse doente, eu quereria os benefícios da terapia que essa célula permite... mas saberia o preço!

Há religiosos que não pensam. Uns não pensam e não usam contracepção porque estão mal informados e aceitam que a igreja lhes diga que é contra a lei de Deus. Outros não pensam porque abortam só porque lhes apetece e acham que não fazem nada de mal, apesar de saberem perfeitamente que a igreja diz e justifica devidamente porque é que é errado. O que eu defendo é que em questões de aborto e terapêuticas tão complicadas como esta todos têm que estar informados. Saber o que as coisas implicam e pensar nelas. A ética é algo que tem que estar na vida das pessoas e isto é perfeitamente independentemente da religião. Senão não passamos mesmo de animaizinhos irracionais.

Abobrinha disse...

Rita

QUando dizes "Caro António Parente: ninguém lhe impôs nada coma lei do aborto." tens uma certa razão, porque possivelmente o António Parente votou "não". Está perfeitamente tranquilo e pode dizer que por ele não se fez nada de mal. Eu não posso dizer isso: eu votei "sim". Eu sei o que fiz: dei carta branca a mulheres para abortarem "de acordo com a sua consciência".

Acontece que a consciência de muitas não é nenhuma e vão usar o aborto como meio contraceptivo. Vão matar filho atrás de filho. Nenhum desses filhos é meu, mas são seres humanos que eu permiti que se matassem por capricho. E sim, há mulheres que matam/abortam por capricho... e eu deixei!

Tenho que viver com isso. Vivo mal com isso. Vivo mal com a ideia de que o mesmo governo que permitir isto não fez nada para tentar minimizar o número de abortos com informação e medidas dissuasoras de aborto como meio contraceptivo único.

Por isso não venhas dizer que ninguém me impôs nada! Impôs sim: impôs uma maneira de viver que não é ética.

Hoje voltaria a votar "sim", estranhamente. Por ainda ter fé que se faça alguma coisa para não encarar um aborto com naturalidade e por todas as mulheres que realmente estão tão desesperadas que não podem mesmo fazer outra coisa que não um aborto. Eu não me esqueço dessas. Porque algumas delas podem mesmo mudar de ideias.

Palmira F. da Silva disse...

Abobrinha:

na clonagem terapêutica (em caso de problemas não genéticos, claro, reconstruir uma espinal medula danificada por um acidente, etc.) o que se faz (ou antes, fará) é pegar numa célula adulta do paciente, remover-lhe o núcleo e inserir o material genético num óvulo de uma pessoa qualquer (o que torna possível ter células totipotentes do paciente).

Não chega a existir nenhum embrião uma vez que a divisão do óvulo inicial, feita no laboratórip, é parada na fase de blastocisto.

A questão é que os mesmos que protestam contra as células embrionárias portestam também contra o que chamam «comércio de óvulos» esquecendo que há transplantes e é muito mais fácil (e sem consequências para o dador) doar um óvulo que doar, por exemplo, um rim.

E, claro, afirmam que uma célula totipotente, qualquer que seja a origem, uma célula da pele do paciente ou outra qualquer, tem dignidade humana, o que quer que isto seja.

Abobrinha disse...

Palmira

Eu acho que esta "dignidade humana" é o que em "não-religiosês" se designa por potencial em tornar-se uma vida humana. Ateus empedrenidos usam este conceito, mas dizem (e eu concordo) que é ética.

Eu estou à vontade com os meus óvulos: não os dou a ninguém porque se os der e alguém os fecundar, os filhos serão meus. Mas não tenho ilusões que não são vida. Sozinhos são vida potencial, mas não um indivíduo. Só são um indivíduo se fecundados. Outra coisa não faz sentido, senão desde que nasci que ando a assassinar seres vivos. E isto porque não sou homem, que aí o genocídio vai para os milhões e mais. Isto é a palermice da igreja e da contracepção: impedir a fecundação não é impedir vida (ou seja lá qual é o argumento, que eu não sei e nem quero saber).

Tenho dúvidas sobre se um óvulo meu esvaziado do seu conteúdo e preenchido com material genético de uma célula de pele pode gerar um ser vivo (que seja igual a mim não me faz diferença, porque assinei por baixo o post do Desidério Murcho) ou só "células". Dito isto, eu não tenho a espinal medula destruída nem há nada de errado com os meus rins. Ou seja, falo de barriga cheia. Será esta a posição privilegiada para pensar nestas coisas, ou será melhor esperar até ter uma doença destas para pensar? E nessa altura pensarei direito ou só por desespero, sem lucidez?

Estou com dúvidas ainda relativamente ao processo de obtenção de células totipotentes/estaminais, pelo que tenho que me documentar mais. Mas a Dolly não foi criada por um procedimento destes? A Dolly foi um indivíduo, não só um clone, uma aberração! Eu, que até sou vegetariana por ter os bichinhos em grande consideração, não acho que uma ovelha seja o mesmo que uma pessoa.

Não tenho grandes dúvidas que destruir embriões humanos para investigação em células estaminais (e faz-se isso) é eticamente dúbio, senão simplesmente reprovável. Nunca permitiria que um filho meu (isto é, uma célula fecundada metade por mim) fosse usado em experimentação humana. Não religiosos concordam com esta ideia, mas não lhe chamam "pecado", que é uma terminologia religiosa e essencialmente cristã e que já justificou muita coisa e muito má (e isto é verdade e não admite contradição).

Continuo a pensar se este será o caminho certo (tecnica e eticamente) para a investigação em células estaminais. Mesmo porque não tenho (mas isto pode ser ignorância pura e simples) conhecimento de modelos animais em que se tenha comprovado que esta é a terapêutica que vai resolver tudo e mais alguma coisa. Eu acho que isto é experimentação humana e ainda não me convenci do contrário. Ora a maioria das pessoas entende que experimentação humana é reprovável. E eu também.

Mas será isto ética universal, ética estritamente religiosa (aka pecado) ou a minha ética? Tenho o direito de a impor a outros? Não sei! Simplesmente não sei!

E tenho outra falha no meu currículo: eu permiti o "aborto livre desde que solicitado pela mulher em estabelecimento de saúde autorizado até às 10 semanas de gestação". Uma gestação de 10 semanas é mais que um óvulo fecundado. Muito mais, pelo que aparentemente nem coerente sou.

Rui leprechaun disse...

Mas que Abobrinha tão confusa... mui palradora e abstrusa!! :)

Pois eu, quanto a humor apenas sei que sorrio com tantas letras de lei! ;)

Questões éticas e deontológicas à parte, cuja importância jamais de deve subestimar e vão muito para além de quaisquer concepções religiosas, há contudo algo muitíssimo básico e que não deve ser esquecido por quem assume possuir uma visão espiritual da vida e do universo.

É que se Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança, com a tal dignidade de que tanto se fala mais a criatividade inventiva que caracteriza a nossa espécie, então o Ser Humano possui também o "gene da criação", por assim dizer. Ou mesmo, explicando de outro modo, esse Deus ou o poder da vida que em nós existe, recria e aperfeiçoa a sua criação através da criatura mais perfeita e evoluída ou a tal imagem do divino criador.

Como David cantou no Salmo belíssimo:

Vós sois deuses, e vós outros sois todos filhos do Altíssimo.

O filho tem a dignidade e a natureza do Pai e da Mãe de quem procede. Logo, filhos de Deus deuses são! :)

Neste sentido, afirma-se ainda que embora o Ser Humano não tenha o poder de criar novos universos, nele participa contudo como co-criador, pelo menos nesta parte do cosmos onde nasceu, na belíssima Terra-Gaia onde muitos milhares de anos já viveu!

Ah! e mais antiga ainda é uma Abobrinha...

Rui leprechaun

(...com genes de Cinderela princesinha! :))

Anónimo disse...

Ao contrário do que se afirma acima, com a actual Lei do Aborto foi "imposta" a toda a sociedade a participacao indirecta na prática de abortos através do Sistema Nacional de Saúde. Recordo que o SNS é financiado por todos os contribuintes, pró, anti-aborto e indiferentes.

Nao é nada de estranho. Faz parte do sistema democrático que uma parte da sociedade imponha à outra parte regras, preceitos e hábitos, com os quais a outra parte nao se identifica ou concorda.

Tomemos por exemplo a Suécia. Na Suécia, entre os anos 30 e os anos 70 foram esterilizados compulsivamente mais de 25.000 deficientes. Situacoes semelhantes deram-se em vários outros paises democráticos (Austrália, Canadá, Noruega, Finlândia, Suica, Reino Unido,...).

Se em Portugal tivesse sido criada uma Lei que permitisse e impusesse a esterilizacao de deficientes através do SNS, como sucedeu na Suécia, seria errado dizer "em meu nome nao" e protestar fortemente contra tal abuso? Mesmo que que a ideia em causa fosse apoiada por vastos sectores da sociedade, nomeadamente pelos cientistas? Seria errado a Igreja Católica opôr-se activamente e exercer pressao política, como fez nesses paises?

Anónimo disse...

Que acontecerá quando o Home tiver a capacidade de se autoregenerar e não morrer?
Não haverá discriminação social, em que os mais ricos terão acesso a esta práctica e os desfavorecidos impedidos de a realizar?
Imagine-se os mais ricos com tal possibilidade!! Era pior que o absolutismo, pois ninguém estaria acima desses déspotas - nunca mais teriam que largar o poder!!!
No contexto actual, a morte é, ainda, o que faz ter uma certa consciência moral social.
Como o comprova um colunável português da revista Forbes, "o que distingue o nascimento da morte, é um par de sapatos e um fato!"
Veja-se o caso da energia nuclear, em que os países mais ricos é que ditam as leis.

"Quo vadis homo sapiens?"

Não!… Não sou religioso, sou ateu!

Mr. Shankly disse...

"Ao contrário do que se afirma acima, com a actual Lei do Aborto foi "imposta" a toda a sociedade a participacao indirecta na prática de abortos através do Sistema Nacional de Saúde. Recordo que o SNS é financiado por todos os contribuintes, pró, anti-aborto e indiferentes."

Parece-me que a discussão ia um pouquinho além da lógica financeira e contributiva.

bróculo. disse...

Gostei muito do post. :)
sou uma aluna do 11º ano e estou a começar a fazer um trabalho para biologia sobre células estaminais.
gostaria de lhe pedir se poderia indicar-me sites uteis sobre esta matéria.
ana nunes (viseu)

50 ANOS DE CIÊNCIA EM PORTUGAL: UM DEPOIMENTO PESSOAL

Meu artigo no último As Artes entre as Letras (no foto minha no Verão de 1975 quando participei no Youth Science Fortnight em Londres, estou...