A técnica da barriga
Fome. Gula. Vontade de comer. Eis o que sempre afligiu o Homem, muito antes da chegada dos computadores, telemóveis, aviões e outras proezas tecnológicas. Como tal, não espanta que o génio inventivo humano se tenha tantas vezes direccionado para a comida: a descoberta do fogo levou à invenção da culinária; a agricultura aumentou drasticamente a qualidade de vida dos antigos nómadas caçadoresrecolectores, e levou à extinção de umas espécies e à domesticação de outras; o sal, condimento supremo, era utilizado como pagamento pelos hebreus e romanos, daí a palavra "salário".
Mesmo os Descobrimentos, que tanta glória trouxeram a Portugal, não teriam ocorrido se não houvesse comida envolvida: trouxemos novos mundos ao Mundo, mas como metáfora - literalmente, trouxemos as especiarias. E que dizer de Maria Antonieta, mulher de Luís XVI, que teve a reputação estragada por sugerir que o povo comesse brioches?
Portanto, não será de estranhar que mesmo a ciência moderna encontre imensas aplicações na já milenar arte culinária. Para cada ramo da ciência, encontramos uma aplicação tecno-gastronómica:
• a termodinâmica originou o frigorífico, mas também aperfeiçoou o fogão a gás, sem esquecer apanela de pressão;
• a electricidade tornou o fogão eléctrico;
• a mecânica remove os cheiros e vapores através do exaustor;
• a ciência dos materiais reveste as frigideiras com Teflon e derivados, e suporta os tachos em placas vitrocerâmicas;
• mesmo a física da radiação se tornou útil, com o comando da televisão a emitir sinais infravermelhos, impedindo interrupções incómodas à sagrada hora do jantar.
Mas seria graças a um acidente de trabalho que as radiações penetrariam mais profundamente no nosso quotidiano...
Radares e chocolate
Gostamos de ter comida perto. Mas preferimos ter aviões inimigos longe. Esta última preocupação motivou uma das grandes revoluções da navegação marítima e aérea, bem como da arte da guerra: a invenção do radar.
O primeiro radar micro-ondas do mundo, criado pelo grupo do engenheiro William Hansen em 1941, Nova Iorque (Crédito: Unisys Corporation)
Este dispositivo recorre a uma ideia extraordinariamente simples: tal como um morcego utiliza as ondas de som para se localizar, deduzindo a posição das paredes que o rodeiam através dos tempos de chegada dos diferentes ecos, também podemos recorrer a uma onda apropriada para detectar a presença de objectos distantes. Mas não uma onda sonora (embora debaixo de água tal seja possível, como o sonar demonstra); temos de utilizar uma onda electromagnética (ou seja, luz) apropriada.
A sigla RADAR significa RAdio Detection and Ranging - detecção e medição de distâncias por rádio; a pesquisa iniciou-se em 1905 com este tipo de ondas. No entanto, cedo se compreendeu que as ondas rádio não permitiam um alcance muito longo, dada a sua dispersão. Optou-se por ondas electromagnéticas com frequências (logo, energias) maiores, entre um e trezentos GigaHertz. A estas correspondem comprimentos de onda mais pequenos (obtidos dividindo a velocidade da luz pela frequência), entre trinta centímetros e alguns milímetros: por esta razão, esta gama é designada de micro-ondas. A utilização bélica do radar foi estimulada pela ameaça e eventual início da Segunda Guerra Mundial; assim, todas as partes se empenharam activamente em inventar os radares mais potentes e com o melhor alcance.
Um dos investigadores mais inspirado foi o americano Percy Spencer, que trabalhava para a empresa militar Raytheon; desenvolvia os chamados magnetrões, poderosos instrumentos de geração de microondas para uso nos radares. Um dia, em 1945, viu-se atarefadíssimo e sem tempo para comer, quanto mais cozinhar - tinha um chocolate no bolso. De repente, sentiu algo quente e pastoso e, para seu espanto, descobriu que este tinha derretido! Perspicaz como sempre, relacionou o fenómeno com o feixe de microondas em que estava a trabalhar. Para confirmar a sua hipótese, colocou milho (e, talvez, as mãos!) em frente ao raio emitido, e pum! - pipocas instantâneas. Seguiram-se outras experiências, incluindo ovos a explodir na cara dos colegas, água a espirrar para fora do copo, etc.
Boas vibrações
Intuitivamente, compreendemos que o magnetrão emitiu um raio energético, e que esta energia aqueceu o chocolate e outros alimentos atingidos. No entanto, esta explicação não chega: as paredes do laboratório não derreteram, nem o ar ambiente aqueceu.
De algum modo, uma característica dos materiais orgânicos distinguia-os dos demais objectos. Podemos pensar que os compostos de carbono necessários à vida estão relacionados com o fenómeno. Mas estes não estão em maioria no nosso corpo, num pedaço de pão ou copo de sumo. De facto, o aparente truque deve-se à água que todos os alimentos contêm.
Uma molécula de água é constituída por dois átomos de hidrogénio (H) e um de oxigénio (O), como aprendemos; estes ordenam-se numa estrutura fixa, em que os dois átomos de H estão de um lado e o átomo de O no outro. Visto que o oxigénio tem uma maior electronegatividade que o hidrogénio (isto é, uma maior capacidade de atrair electrões), concluímos que a molécula de água é polarizada: os electrões não se distribuem uniformemente à sua volta, mas preferem circular mais perto do átomo de oxigénio.
Um CD depois de alguns segundos no forno micro-ondas: os padrões concêntricos e radiais devem-se ao derretimento da superfície plástica devido a arcos eléctricos formados no filme metálico no interior do disco (Crédito: www.istockphoto.com)
Se for sujeita a um campo eléctrico, uma molécula de água irá reagir como um dipolo, orientando-se de acordo com a direcção do campo aplicado, como uma bússola aponta um íman. Se aplicarmos um campo eléctrico fixo, o dipolo reorienta-se apenas uma vez, estabilizando tal como uma agulha magnética pára depois de "encontrar" o norte (ou o íman mais próximo).
Mas se a molécula de água sentir um campo eléctrico que varie muito no tempo, trocando de sentido com grande rapidez (isto é, frequência elevada), nunca conseguirá equilibrar-se, oscilando continuamente. Para este efeito, surgem as ondas electromagnéticas (como as micro-ondas, infravermelhos, luz visível, raios X, etc.): estas são constituídas pelo campo magnético (aqui irrelevante) e eléctrico, trocando de sentido de acordo com a frequência da onda.
A dança das moléculas
Uma molécula sozinha não encontra resistência nenhuma ao movimento, conseguindo reorientar-se rapidamente na direcção de qualquer campo eléctrico aplicado. No entanto, na presença de outras moléculas, o dipolo da água encontra resistência conforme se tenta realinhar; esta fricção leva a que perca energia para as moléculas vizinhas, mesmo que não sejam fortemente polares e, portanto, não reajam
directamente a uma força eléctrica.
Se aplicarmos uma onda electromagnética de frequência elevada, temos assim um excelente mecanismo de transmissão contínua de energia de uma substância contendo moléculas polares: o chamado aquecimento dieléctrico ou capacitivo.
Podemos julgar que quanto maior for a frequência, mais rápido será o aquecimento. No limite, as radiações podem ser tão fortes que ionizam os átomos ou moléculas (conseguindo "arrancar-lhes" electrões), modificando as propriedades físico-químicas do composto.
Imagem sintética da velocidade dos ventos, medida pelo moderno radar de micro-ondas SeaWinds, a bordo da sonda Quick Scatterometer, da NASA (Crédito: NASA)
Qual a temperatura do vácuo absoluto, isto é, de uma zona sem átomos nem moléculas, completamente vazio? Zero. Aquilo a que chamamos de temperatura é uma manifestação macroscópica dos movimentos desordenados dos constituintes da matéria em causa (sólida, líquida ou gasosa). Assim, a temperatura do ar é elevada quando os raios do Sol provocam um movimento muito rápido das moléculas; reciprocamente, fica frio quando estas diminuem a sua dança louca e aleatória.
A fricção devido à oscilação de muitas molécula de água próximas resulta então num aumento da temperatura da água como um todo. Como os alimentos contêm água, a sua exposição a micro-ondas irá aquecê-los! Outras substâncias polares são também afectadas, como as gorduras - embora em escala mais reduzida, dada a sua menor polarização.
2 comentários:
Jorge Páramos,somos parentes gostava de entrar em contacto com ele,será possível?
Obrigada
O meu mail é jorge.paramos@gmail.com
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