“Chegada a este ponto, irão matar-me também? A minha relação com a morte é da mesma ordem da que o equilibrista mantém com ela: ambos praticamos uma actividade perigosa, avaliamos os riscos, mas o nosso amor pela perfeição vence invariavelmente o medo. Amo apaixonadamente a vida, não tenho medo de morrer. Tudo aquilo que construo na Colômbia é também para ter o prazer de aí envelhecer. Para ter o direito de aí viver, sem temer pela sorte daqueles que amo.”
É com estas palavras inquietantes e envolventes que Ingrid Betancourt Pulecio termina o livro “Com raiva no coração”, dedicado aos seus dois filhos, Mélanie e Lorenzo.
Trata-se de um relato apressado e detalhado das circunstâncias que justificam a luta de Ingrid, denotando, em cada passagem, que, quando o escreveu, estava consciente da importância de divulgar o seu testemunho antes de ser calada: “escrevo, obcecada pela necessidade de avançar, de salvar o que ainda pode ser salvo de verdade”, registou ela. E, mais adiante: “Tenho presente uma conferência de Hélène Carrère d’Encausse no Instituto de Ciências Políticas, em que ela explicava de forma pungente o modo como os regimes totalitários reescreviam a História. A amnésia colectiva feita «à medida». Isso horroriza-me mais que tudo (…). Nesses momentos sombrios, tão carregados de ameaças, penso que, se me resta ainda uma batalha a travar antes que me matem, se chegarem a matar-me, é sem dúvida esta: impedir essa manipulação, essa última humilhação.”
A urgência tinha sentido: pouco tempo depois de o livro ter sido publicado em França, Ingrid foi sequestrada por um movimento guerrilheiro, quando fazia campanha eleitoral, na qualidade de candidata à presidência da república da Colômbia. Passaram-se seis anos.
No passado mês de Fevereiro, os sequestradores divulgaram uma imagem dela, desde há muito aguardada, como “prova de vida” e que aqui reproduzo. Ingrid surge talvez acorrentada por um pulso, de olhar propositadamente, julgo eu, desviado de quem fixou e fixa essa imagem. Onde muitos vêem tristeza, sofrimento e desânimo, eu vejo, antes de tudo, a determinação que transmite no livro. Uma determinação lúcida, feita de fragilidade e de força de quem sabe que o preço de ideais elevados é também elevado, mas que sem eles a vida não tem grande sentido. Por isso, ainda que a tristeza, o sofrimento, o desânimo e outros sentimentos como a saudade, o ódio e o medo, a acompanhem na reclusão, o seu carácter, mantêm-se inalterado.
Esta é a opinião de Clara Rojas, sua amiga de longa data e companheira no percurso político, sequestrada na mesma altura, mas, entretanto, libertada: “Acredito que Ingrid, com todas estas mensagens que recebeu em razão das provas de sobrevivência, vai recuperar o seu ânimo e o seu desejo de viver”, declarou recentemente à imprensa.
É inevitável que perguntemos: como formou Ingrid, uma franco-colombiana, bem-nascida, bela e elegante, com uma família estável, que foi eleita deputada e senadora, a sua têmpera, o seu carácter inconformado na defesa do homem e da vida e no afrontar de poderes espúrios. Trata-se, naturalmente, de uma pergunta retórica, pois as razões que vão determinando a existência não se deixam desvendar com facilidade.
Talvez tenha sido a influência do pai, um destacado senador e embaixador da Unesco; talvez a vivência e convivência em Paris, onde passou a juventude, fez estudos universitários e ensinou; talvez o contacto próximo e precoce com intelectuais interventivos como o pintor Fernando Botero ou os escritores Pablo Neruda e Gabriel García Marquez.
O certo é que Ingrid se tornou numa das mais dignas representantes do espírito social e ético das décadas de sessenta e setenta, em que nasceu e cresceu, responsável pela emergência de emancipações, independências, revindicações e militâncias várias, e que provocou pequenas e grandes revoluções. Com epicentro em Paris, esse espírito, se reanimou relativismos, subjectivismos e individualismos de teor pós-moderno, também actualizou algumas das aspirações mais nobres da civilização ocidental e personificou o empenhamento, a não indiferença, a coragem de batalhar pelo que está certo, a tenacidade de enfrentar poderes e poderosos.
Ingrid é esclarecedora quando afirma: “Devo muito à França. Foi lá que fiz os meus estudos, e este livro, escrito em francês, constitui para mim um modo de manter esta ligação, assim como é uma oportunidade para dar a conhecer a minha luta ao país que me ensinou o que é a democracia e o que é a liberdade. Sabem como são poderosos, na Colômbia, os cartéis da droga, esta droga que mina a vida dos nossos jovens. Certamente que têm ouvido falar das matanças e dos escândalos políticos que eles causam. Mas, por trás destas organizações mafiosas, está o meu povo – um povo corajoso e orgulhoso que deseja libertar-se desta engrenagem infernal. É por ele que luto, há mais de dez anos (…)”.
Mas, talvez o carácter de Ingrid deva muito aos seus filhos e ao tão simples quão ancestral anseio de querer para eles um mundo sem o medo que ela explica que sentiu, mais por eles do que por ela: “Tenho dois filhos, que já foram ameaçados de morte. Tive de separar-me deles, para os proteger (…). Estou consciente dos perigos, mas estes não me farão recuar. É nisso que reside a minha esperança (…). Esse Outono de 1996 começa, assim, para mim, sob o signo de uma enorme angústia. Para não perder Mélanie e Lorenzo, escondi o atentado de 20 de Julho, de que escapei à justa, e pago agora o preço da minha irresponsabilidade: estou sempre com medo, por causa dos meus filhos. Um medo animal. Como que um polvo cujos tentáculos me esmagam. Um medo que está sempre presente, que nunca consigo esquecer. Mesmo à noite, quando eles estão em casa de pijama, no quarto deles, Juan Carlos verifica a fechadura da porta de entrada, mesmo nesses momentos, que deveriam ser felizes, tenho medo… (…) Avalio a cada instante o quanto a solidão pode aumentar a angústia, estando sempre atenta a cada ruído insólito (…). Já quase não saio, barrico-me em casa, e escrevo dia e noite, febrilmente, na esperança louca de que este livro fique rapidamente concluído, como se ele representasse a garantia de salvação para os Colombianos, mas também para a minha família, para Mélanie e Lorenzo. Porquê? Como poderia ele protegê-los, eles que são tão vulneráveis? Não sei dizê-lo. Mas é essa intuição profunda, essa convicção, esse dever a cumprir que me dá forças para continuar.”
Como se sabe, Mélanie e Lorenzo sobreviveram e têm vindo a demonstrar a mesma tenacidade da mãe, imbuídos do dever a cumprir, que lhes dá força para continuar... Ingrid, os filhos, família, amigos, conhecidos e muitos desconhecidos, têm mostrado, bem alto, que neste caso, o exemplo da não conformidade. Como dizia Fernando Pessoa: “Ser descontente é ser homem!”
Documentos consultados:
- Betancourt, I. (2002). Com raiva no coração. Lisboa: Terramar.
- http://www.tsf.pt/online/vida/interior.asp?id_artigo=TSF189779
Imagem retirada de:
- http://www.4ingrid.com/images/Ingrid23102007.jpg
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1 comentário:
http://ordemespontanea.blogspot.com/2008/03/from-portugal-free-ingrid-betancourt.html
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