O professor Carlos Reis, reitor da Universidade Aberta, defendeu ontem no Público o acordo ortográfico. Isto faz-me voltar ao tema, mas quero antes dizer uma coisa simples: estas conversas são apenas interessantes intelectualmente. Em termos práticos, quem tem a faca e o queijo na mão — os políticos e quem voluteia em seu torno — faz o que muito bem lhe apetecer, independentemente de todo o debate. E em grande parte é precisamente por isso que o acordo é uma treta.
Afirma o Carlos:
“sei bem que a ortografia e os seus reajustamentos contendem com diferentes, às vezes melindrosos, aspectos e interesses: de editores, de educadores, de escritores, etc. De todos estes e também do cidadão comum, para quem, quase sempre subconscientemente, o idioma é um repositório de representações, de volições, de atitudes simbólicas e mesmo de traumas assentes em séculos de uso, de transformação e de relacionamento intercultural.”
A que “séculos” de uso poderá referir-se? Em língua portuguesa, a nenhuns. Praticamente todos os livros que tenho em minha casa de Portugal estão ortograficamente errados, e já o estavam desde há muitos anos. Porque a ortografia portuguesa está sempre a mudar. Da generalidade dos livros que estão nas bibliotecas nem vale a pena falar. Basta que tenham um só século e são quase ininteligíveis para um leitor culto — e são de certeza para um adolescente. Ninguém consegue ler sem tropeços Eça ou Fernando Pessoa tal como eles escreviam. Mas consegue-se ler os ingleses contemporâneos deles sem tropeços.
Isto é particularmente mau no Brasil, em Angola, em Moçambique, onde abundam nas bibliotecas das pequenas cidades as edições portuguesas mais antigas. Mas, claro, quem defende o acordo está-se nas tintas para essas pessoas. Este acordo é sobre pessoas, mas não essas: é sobre os autores do acordo, que querem ficar com o seu nome na história.
O Carlos dá-nos esta razão a favor do acordo:
“Se queremos (eu quero) que o português tenha hipóteses, mesmo que de difícil concretização, de alguma afirmação internacional em confronto com outras línguas, então não podemos continuar a ignorar as debilidades de um cenário linguístico em que alegremente convivem duas ortografias”
Este é o argumento usado pelos defensores do acordo. Só que este argumento é sempre meramente esboçado. E bastaria tentar formulá-lo e explicá-lo mais detidamente para se ver quão absurdo é. Não se trata apenas de ser um mau argumento. É um disparate. Por causa disto:
1) O inglês tem várias ortografias, mas não tem problemas de afirmação internacional.
2) Ter duas ou mais variantes ortográficas de uma língua não é ter duas ou mais línguas e em nada enfraquece o poder cultural ou estratégico dessa língua.
3) O poder cultural ou estratégico de uma língua é exclusiva função do poder económico, cultural e político de quem fala essa língua, e não o contrário. Ou seja, é porque os países de língua inglesa são os maiores produtores de cultura, riqueza e bombas, que a língua deles tem tanta implantação. Sempre foi assim e sempre há-de ser. Se estamos preocupados com a afirmação linguística do português, então criemos as condições para haver produção cultural em língua portuguesa — de matemática, filosofia, artes, geografia, etc., e bombas. Mas esta é uma batalha perdida. O melhor que temos a fazer é como os suecos ou como os israelitas: o inglês é para eles a segunda língua, na qual se movem com à vontade, e a outra língua é só para consumo interno. Se estamos preocupados com a afirmação cultural do português o melhor que temos a fazer é dar condições aos seus agentes culturais — os estudantes, professores, intelectuais, artistas — de se afirmarem no mundo. E a melhor maneira de o fazer é dar-lhes uma educação de alta qualidade e o domínio da língua inglesa. O acordo ortográfico é só para levantar poeira porque nada resolve. Mas é muito mais fácil do que pensar realmente em desenvolver o poder cultural das pessoas que são naturais dos países de língua portuguesa. Em última análise porque é sempre mais fácil pensar em abstracções políticas do que em pessoas concretas.
O Carlos afirma ainda o seguinte:
“pensar uma língua sem qualquer espécie de regulação é convidar à sua rápida e irreversível fragmentação.”
Defender que a ortografia não deve ser regulamentada por lei não é defender que a ortografia não será regulamentada. Tal como a gramática não é — felizmente — regulamentada por lei sem que deixe por isso de ser regulamentada por quem de direito (pela prática das pessoas e por quem escreve as gramáticas), também a ortografia pode perfeitamente não ser regulamentada por lei sem deixar por isso de ser regulamentada.
Finalmente, o Carlos acaba dizendo o seguinte:
“o inglês não precisa de acordo ortográfico. É óbvio que não. Mas essa é outra questão, que tem que ficar para outro momento.”
É pena que tenha acabado no princípio. Ficamos então à espera desse outro momento.
domingo, 23 de março de 2008
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12 comentários:
eu só acho uma coisa...
fomos pelo mar fora, descobrimos o Brasil, ensinamos aquela gente a falar o português. Aprenderam mal o português e agora são eles que nos ensinam a uniformizar a língua portuguesa. Para mim, não faz qualquer sentido.
Continuação de um bom blog.
O Rapé.
Assim como não entendo por que é que é óbvio que o inglês não precisa de acordo. Está imune? Vive em ambiente asséptico?
Já agora gostaria que fizesse o mesmo exame às declarações de Vasco de Graça Moura sobre o mesmo assunto.
Cordialmente.
Acerca das relações da Inglaterra com os Estados Unidos, escreveu Oscar Wilde: "Tudo nos une, só a língua nos separa".
Pois apesar desta desunião de um idioma uniformizado por tratados, a Commonwealth of Nations, constituída por territórios autónomos mas, de certa forma, dependentes do Reino Unido, estão unidos por importantes laços económicos. E tanto assim é no respeitante ao idioma que Moçambique, um país ligado a Portugal por séculos de lusofonia, se integrou nesta comunidade, que tem por língua comum o inglês, em 1955.
Portugal teve um colonialismo diferente de outros países europeus coloniais. Numa época pós- colonial em nada se identifica com a Inglaterra. Num romantismo serôdio de mestre-escola pretende apenas que o português falado e escrito no Brasil, em Angola, em Moçambique, etc., seja igual a papel químico ao português de Portugal nem que para isso sejam os outros países a empunhar a batuta da grafia.
Acordos comerciais, para que vos quero? Pobretes mas alegretes, porque facto passará a ser escrito fato! Este é um "fato" indesmentível!
Caro Rui Baptista
Por acaso o "fato" é desmentível. As consoantes mudas articuladas continuam a escrever-se no Novo Acordo Ortográfico. Sugiro a leitura do livro publicado recentemente pela Texto Editora sobre este assunto. Depois de o ler, passei a concordar com o novo acordo.
Independentemente de que o acordo ortográfico tenha argumentos convincentes a seu favor (que provável/possívelmente tem), todo o acto de legislação da ortografia para unificar a escrita da língua portuguesa, não pode ser descrito como mais que simplesmente esúpido.
Independentemente dos acordos ortográficos podemos dizer que a compreensão do Português escrito em Angola, Moçambique, no Brasil, etc... não melhorará significativamente.
O facto preponderante no meio disto tudo é que o "Português" falado pelos mesmos, continuará a ser pouco mais que incompreensível, eles (e nós) continuarão a pôr [ou tirar] vogais e consoantes em [de] sítios onde elas estão [não estão] o que torna todo o esforço, no mínimo, despropositado.
Por fim há que salientar que o Português é uma língua derivada do Latim, tal como toda a língua Portuguesa se formou por divergência ao longo de séculos, é de esperar que países lusófonos adoptem mais cedo ou mais tarde a sua própria língua, será isto um esforço para retardar o inevitável? ou estaremos a longo prazo a pensar em fazer um acordo ortográfico para todos os países de índole Latina? (é melhor não dar ideias).
Uma língua é uma espécie de organismo vivo: adequa-se às circunstâncias, experimenta alternativas, ritualiza-se, fenece, pode inclusive morrer.
Por isso, creio absolutamente necessário que se alimente o espaço vital, necessário à evolução, de uma língua.
Agora, concordo com Desidério Murcho sobre a irrelevância de um acordo formal. Basta que os novos "criadores da língua" passem por filtros censurantes que não a impeçam de respirar, mas apenas de empobrecer irredutivelmente o léxico, a morfologia e a sintaxe. Como diz Desidério, eduquem bem as pessoas e passem-se dos acordos que só beneficiam os acordadores.
Os EUA teimam em usar um sistema de medidas medieval. Isso não os impediu de ser a primeira potência mundial. Deve Portugal abandonar o lógico e simples sistema métrico decimal e voltar a medir em pés e polegadas? Vai-se com isso converter-se numa potência mundial?.
Com certeza que não. Os EUA são a primeira potência mundial apesar de medir em pintas e jardas, não graças a isso.
A China foi durante séculos um dos maiores impérios apesar de usar uma escrita logográfica, em vez duma escrita alfabética. Deve o português escrever-se em caracteres Han?
O inglês é hoje em dia a primeira língua do mundo, em produção cultural e científica, e pode permitir-se certas ineficácias, mas pode o português fazer o mesmo?
Compare-se o português com o francês, o castelhano ou o alemão. Olhar só para o inglês pode ser muito enganador.
Caro António Parente: Nunca pensei ter um efeito opinativo dissuasor tão forte, a ponto de depois de me ler ter mudado de opinião.
Independentemente da minha ignorância em não ter lido o livro da Texto Editora, julgo que o essencial do meu comentário se mantém num plano de discussão que se não deve circunscever "a uma consoante muda articulada". Num mundo em crise os interesses da Economia dos países unidos por um passado comum serão menos importantes que um acordo ortográfico? Não será este um facto "concreto" a considerar?
"Sans rancune", obrigado pelo esclarecimento.
Caro Rui Baptista
Penso que me expressei mal. Mudei de opinião depois de ler o livro da Texto Editora e não em função do seu comentário. Há uma semana também eu estava convencido que "facto" passaria a "fato" e iria escrever "à brasileira". Afinal não é assim. O acordo, se o essencial está descrito no livro do Texto Editora, tem um impacto limitado na forma como escrevemos, facilita a aprendizagem dado que opta pelo critério fonético na ortografia e é intituitivo noutras normas. A sua principal mais-valia é "oficializar" a grafia dupla no que denomina a "norma culta luso-africana" e a norma "brasileira". Tem coisas más, na minha opinião, como a distinção, por exemplo, entre para e pára, que passa a ser feita pelo contexto em que é escrita dado que o acento desaparece, e a abolição do hífen nas formas verbais do verbo haver.
Quanto aos aspectos económicos julgo que são exagerados. Desde a adolescência que leio livros escritos em "brasileiro" e isso nunca me perturbou nem creio que as novas gerações fiquem desorientadas quando lerem livros no português "antigo".
O que o acordo nos recorda, em toda a sua crueza, é que já fomos uma potência e que deixámos de o ser. O Brasil será uma das maiores potências económicas do século XXI e a língua é um instrumento de domínio nos negócios. Um americano vai a qualquer lugar do mundo e não necessita de se esforçar para aprender a língua local porque todos falam inglês. Pode ser que um dia isso aconteça com o português.
Com este acordo ortográfico Portugal será beneficiado a médio prazo. Se o Brasil for uma das potências económicas dominantes pode ser que exista mais interesse na aprendizagem do português por parte de outros povos.
Cumprimentos,
Não haja dúvida que muito se inventa neste país. Concordo com as opiniões expressas no seu post.
Neste cantinho da europa toda a gente gosta de deixar a sua marca; deve ser por isso que o país está todo marcadinho, à força de tanta vontade para deixar as ditas marcas. Ou então é para justificar o tacho onde se agarram.
É falso dizer-se "O inglês tem várias ortografias, mas não tem problemas de afirmação internacional.", simplesmente falso. Se o inglês tem duas ortografias, também o português continuará a ter na era pós-acordo. É que o número de palavras escrita de maneira diferente no Portugal e no Brasil continuará a ser maior ao número de palavras escritas de maneira diferente nos EUA e Inglaterra.
Já li ene textos anti-acordo e ainda não consegui encontrar nenhum argumento fora da lógica xenófoba/nacionalista e/ou saudosista/atávica. É uma absoluta seca... Chego a desejar que Portugal não adopte nunca o acordo, para que toda a restante CPLP o faça e se emancipe de vez da pesada herança lusa.. é que nem depois de descolonizados os deixamos de atrasar a vida, é preciso ter azar.
PS: Ao sr. que escreveu o primeiro comentário e diz "ensinamos aquela gente a falar o português", convirá lembrar que "aquela gente" descende maioritariamente de portugueses, já que a esmagadora maioria dos portugueses que foram ao longo de séculos para o Brasil por lá ficou. Para trás ficaram os velhos do Restelo, e nota-se!
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