sábado, 15 de março de 2008

E agora?


O nosso colaborador habitual Rui Baptista continua atento à actualidade educativa:


“O absurdo, tal como a dúvida metódica, fez tábua rasa do passado.

Deixou-nos num beco sem saída. Mas tal como a dúvida, pode, mudando

de atitude, orientar uma nova busca”.

Albert Camus (“O homem revoltado”)


No rescaldo da mega-manifestação dos professores de há dias, organizada com grande esmero pela Fenprof e uns tantos sindicatos aderentes, a pergunta que não pode deixar de ser feita é esta: E agora?


Para já, duas ilacções se podem tirar:


1) Pôr cem mil professores na rua não é um número, de forma alguma, despiciendo, embora as grandes manifestações de massas levem a que muitos dos participantes, como escreveu Aquilino, “tragam às costas a opinião dos outros como uma mochila do regimento”.

2) A teimosia da ministra da Educação fez com que o descontentamento inicial dos professores se transformasse numa verdadeira batalha campal com insultos de parte a parte que não dignificaram quem os proferiu.


Sobre a génese do que se veio a passar, deixei escrito, há 16 anos: “No desrespeito pelos professores licenciados, o Estatuto da Carreira Docente integrou num quadro único licenciados e bacharéis, leccionando do ensino infantil ao ensino secundário, sem ter na devida conta as estaturas científicas, técnicas e pedagógicas dos respectivos docentes, transformando anões em gigantes e gigantes em anões! (“Jornal de Notícias”, 25.Junho.1992). Não é sem espanto, portanto, que vejo hoje professores que na altura tiveram um silêncio cúmplice perante este “statu quo” porem agora em causa a menor habilitação académica de alguns dos professores titulares que os irão avaliar, ainda que docentes da mesma disciplina.


Curiosamente, sempre que se anuncia uma reforma do ensino não superior nasce na alma de alguns professores dedicados e alunos briosos, prejudicados pelo “ódio aos melhores”, como diria Ortega y Gasset, o sentimento de que desta feita nada ficará como dantes na qualidade do ensino. Mas, qual disforme Quasímodo, a educação portuguesa, nascida dos ventres licenciosos de inúmeras reformas, contra-reformas e pseudoreformas e acalentada no colo pérfido de interesses instalados, continua a arrastar-se por vielas tortuosas e mal iluminadas de legislação desconexa e sem ter na devida conta a necesidade de um ensino de elevada qualidade para o nosso desenvolvimento. As reformas em Portugal dificilmente passam do papel: ou por isto ou por aquilo, ou porque os alunos não devem ser “castigados” com matérias não hedonísticas, ou porque os exames são considerados “traumatizantes”, ou porque o exame de acesso à profissão docente é “aberrante”, ou porque a avaliação dos professores executada até aqui foi um "modelo de virtudes".


Sem levar em linha de conta os professores que se reformaram ou faleceram pelo caminho, deve ser divulgada publicamente a percentagem de professores que, antes do actual congelamento, não progrediram ao topo da respectiva carreira docente (9.º e 10.º escalões, respectivamente para bacharéis e licenciados), cumpridos os anos de docência necessários e acções de formação em que o professor de uma determinada disciplina podia até frequentar um curso que nada tinha a ver com a sua matéria de ensino. Sem qualquer demora, surja essa percentagem nua e crua! Caso a percentagem dos professores que não progrediram na carreira docente venha a demonstrar a exigência dessa avaliação, mais vale deixar tudo como está para que a paz podre a que nos habituámos no mundo educativo não sofra novas convulsões.


Portugal, um país sebastianista, bem pode esperar, mesmo com desconsolo ou desesperança, por novas tentativas de reforma do ensino. Com a condição “sine qua non” de que continue a haver pachorra da sociedade portuguesa para o sustento de tão perniciosa forma de contracultura!


7 comentários:

Carlos Pires disse...

Porque é que cem mil professores (num universo de, creio, cento e quarenta e três mil) não foram suficientes para fazer o governo recuar a sério? Uma das razões prende-se com o facto triste dos professores não terem conseguido explicar ao país qual é o modelo de avaliação que pretendem, em alternativa ao modelo defendido pelo governo. Tanto os professores que a título individual falaram na TV como os dirigentes sindicais, meteram os pés pelas mãos quando os jornalistas lhes fizeram a pergunta óbvia: o que seria uma avaliação do desempenho justa? Terá sido um simples problema de expressão ou muitos professores, incluindo os dirigentes sindicais, não têm ideias claras sobre o assunto? Infelizmente julgo que a segunda hipótese é que é verdadeira.
E por falar em reformas e contra-reformas. Nas últimas semanas li diversas declarações de pessoas ligadas ao Ministério da Educação, nomeadamente do secretário de Estado Valter Lemos, dizendo que os estudos efectuados mostram que chumbar (eles dizem reter, claro) alunos não é eficaz e recordando que países como a Finlândia têm sistemas de progressão automática. Palpita-me que esta equipa ministerial tem outras surpresas na manga e que as más notícias não terminaram: em vez de mais exames nacionais ainda teremos os alunos a passar automaticamente de ano.

Carlos Pires

Anónimo disse...

Desde Sotto Mayor Cardia quantas já foram as reformas de ensino, propaladas pelos governos. Esta será mais uma, para que tudo não fique na mesma, mas pior?...
Os professores estão descontentes?!!... só falta dizer-se que o ensino e as escolas não precisam deles, há outras alternativas...
Estou a pensar nos pais, para quando a sua avaliação pelos seus pares, formal e com ficha? Para Bem dos educandos e do lar.
Lá chegaremos...

Anónimo disse...

Falta ainda um esquema de avaliação para o desempenho da Ministra e, concomitantemente, dos secretários de Estado.

Se se auto-avaliam, aplique-se então o mesmo critério para os professores.

Anónimo disse...

Caro Rui Baptista
Leio com atenção os seus posts e gostaria de conseguir perceber a sua posição sobre o estado actual da educação e do conflito que está gerado.
Por um lado, parece que acusa o ministério, mas por cada acusação apresenta imediatamente atenuantes.
Defende o actual estatuto, com a paralisação na carreira de um professor que não queira mandar nem coordenar outros ao fim de 20 anos de profissão, num índice salarial que o coloca a cerca de metade de um professor titular do último escalão? Não será que a principal função do professor é ensinar e essa função foi desvalorizada na actual divisão das carreiras?
Defende a forma como foram nomeados os actuais titulares, que a ministra indica como os mais " capacitados e experientes", tendo em conta que quem menos aulas deu foi quem mais pontos obteve, visto que a qualquer cargo correspondia redução da componente lectiva?
Considera justa uma avaliação em que, devido às quotas, os avaliadores saem beneficiados se atribuírem classificações mais baixas, podendo guardar as Muito Bons e Excelentes para si?
Acha justa uma avaliação que não permite classificar todos os professores com os mesmos parâmetros?
Acha razoável que se deixe ao critério dos avaliadores atribuir classificações com base em descritores como , muitas vezes, frequentemente, raras vezes, às vezes, normalmente, ocasionalmente, etc, como surge nas diversas grelhas já públicas?
Considera razoável existirem parâmetros que pressionem os professores a subirem as classificações, ( apesar de o primeiro-ministro, o ministro da presidência e a ministra da educação o negarem), como está patente nas grelhas de avaliação? ( Claro que quem tiver alunos em exames nacionais não tem como fugir. Pode ganhar de um lado e perder do outro).
Eu também acho que o anterior estatuto falhava por não praticar a distinção, mas este é um apelo ao compadrio e ao lambebotismo, emergente da aplicação de muitos parâmetros. Eu não tenho problemas em que me assistam às aulas, analisem se eu cumpro os programas, escrutinem as minhas planificações, as metodologias que emprego e o meu rigor científico, mas já não aceito ser avaliado pela minha não participação em ceias de natal, em arraiais de S. João ou em jogos do Amigo Secreto. ( não estou a exagerar pois isto é avaliado num parâmetro da grelha do Conselho Executivo: participação na vida da Escola/Agrupamento).
P.V.

Rui Baptista disse...

Caro Anónimo:

Grato pelo seus comentário por colocar questões muito pertinentes.

Começo por dizer, inspirado em Sá de Miranda, que “tudo tem os seus avessos”. Seria politicamente mais correcto dar a razão toda aos professores neste braço-de-ferro que os opõe à ministra da Educação. Mas com isso iria contra a minha maneira de ser, como disse Cesar Cantú “por namorar a popularidade, renegando a própria consciência”.

Na medida do possível (medida do possível em termos espaciais de um comentário), tentarei responder às suas perguntas. Claro que a divisão em duas carreiras, professor e professor titular, veio criar injustiças, principalmente por não se ter tido na devida linha de conta a habilitação académica de “quem manda e de quem é mandado” (as aspas tentam salvaguardar a rudeza do “mando”).

Pena foi ter havido presidentes do Conselho Directivo (depois, Executivo), professores dos antigos trabalhos manuais, em escolas secundárias sem que os professores licenciados se tivessem revoltado, ou simplesmente amofinado, contra esta situação. Para além disso, o critério que teve em conta apenas os últimos anos de carreira docente mais agravou a injustiça.

Mergulhemos no tempo: nunca se deveria assistir a esta situação criada pelo facto de no acesso à carreira docente ter havido o “pecado capital” de contar apenas a nota de formatura. Um diplomado pelas escolas superiores que tivesse apenas mais um valor de diploma passava à frente de um licenciado universitário sem ter sido tomado em devida conta a maior exigência de formação deste último. Seria uma injustiça assacar à actual ministra da Educação a responsabilidade por esta aberração da responsablidade de vários partidos políticos em que se fizeram orelhas moucas às palavras judiciosas de Pierre Bordieu ( a massificação do ensino pode explicar muita coisa, mas não é explicação para tudo): “Só uma política inspirada pela preocupação de atrair e de promover os melhores, esses homens e mulheres de qualidade que todos os sistemas de educação sempre celebraram, poderá fazer do ofício de educar a juventude o que ele deveria ser: o 1.º de todos os ofícios”. Seguir esse procedimento para com a actual ministra da Educação será assumir o papel da fábula do lobo e do cordeiro: “Se não foste tu, foi o teu pai!...”

Quanto à nova avaliação, de forma alguma a tenho como justa, como justa não tenho a anterior que ao classificar como bons todos os professores (ou quase todos, daí o eu defender a publicação da percentagem de professores que não atingiram o topo da carreira) cometia a maior das injustiças para com os bons ou mesmo, excepcionais professores nivelando-os por baixo com os maus ou péssimos.Ou, com idêntica injustiça, nivelando-os a todos por cima!

Em um de outros meus post’s referi-me ao facto de as notas dos alunos poderem ser inflacionadas pelos professores em benefício próprio. É um facto! Nenhuma reforma deve deixar de ter em conta a alteração a que certas situações devem conduzir: a necessidade de exames nacionais no fim de cada ciclo de estudos, 1º. 2.º e 3. ciclos do ensino básico e ensino secundário, devendo ser atribuída ao mesmo professor o ensino de cada um destes ciclos básicos e secundário, do princípio ao fim de cada um deles. Suponhamos, por exemplo, que um professor leva a exame um aluno com 18 valores e que ele obtém nessa prova nacional oito valores? Abstraindo o facto de os exames terem sempre um factor aleatório, alguma coisa está mal neste evidente “décaláge”.
Claro que também não concordo que a avaliação seja feita por professores de disciplinas diferentes das dos avaliados. Em resumo, pois o meu comentário já vai longo, não posso deixar de lamentar que não seja nomeada uma comissão de homens bons e sábios para estudar o processo de avaliação. Uma comissão que não integre nenhum elemento litigante nesta batalha campal(diz-nos a Psicologia que ninguém pode ser observador e observado simultaneamente) em que os tiros furtivos possam apanhar as principais vítimas de um sistema de ensino caduco que já demonstrou não servir a sua principal clientela: os alunos.

O futuro do país será aquilo que se fizer de bom nesse sentido, sem a preocupação de apresentar percentagens estatísticas de sucesso para uso interno e, principalmente, externo. Só desta forma se tirará a razão , mesmo que postumamente, a Francisco de Sousa Tavares: “Estamos a formar não um país de analfabetos, como até aqui, mas um país de burros diplomados” .

Anónimo disse...

Olá, Ruy passei aqui para deixar um abraço. Como sempre é bom ler seu texto!
marta bellini
brasil

Rui Baptista disse...

Olá Marta, não calcula como as suas palavras gentis calaram fundo no meu coração. Um abraço grato. Rui

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