quinta-feira, 27 de março de 2008

Bolonha à portuguesa


Rui Baptista debruça-se aqui sobre o ensino superior:

O PÚBLICO de 20 de Março dedicava duas páginas (pp. 14 e 15) ao Processo de Bolonha que bem mereciam a reflexão de Lord Acton (1834-1902): “Poucas descobertas são mais irritantes do que aquelas que desvendam a genealogia das ideias”. O pecado original de todo este processo foi não se ter adoptado o grau de bacharel para o 1.º ciclo de estudos superiores, com longa tradição nos países anglo-saxónicos. Será que as “mentes brilhantes” do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior que detiveram as rédeas desta mudança desconheciam que a tradução de “bachelor” é bacharel? Ou terão pensado, numa consulta apressada a um qualquer dicionário de Inglês, que a tradução era, apenas, solteiro?

Num verdadeiro “cocktail” de indecisões processuais, passaram a existir bacharelatos com génese em cursos médios, bacharelatos do ensino politécnico, licenciaturas universitárias e politécnicas antes de Bolonha (a.B.) e licenciaturas universitárias e politécnicas depois de Bolonha (d.B.), a exigirem, pela prolixidade de que se revestem, uma tabela de reconversão para uso nacional e estrangeiro. E isto é tanto mais insólito quanto as ordens profissionais se maniferam a uma só voz “contra a proposta ministerial de designação do grau de licenciado para o primeiro ciclo, ao fim de três anos de formação, solicitando ao poder político que retire a designação de licenciatura e adopte para os ciclos de formação antes do doutoramento as designações de bacharelato e mestrado” (Agência Lusa, 7.Out.2004).

Este desacordo com o grau de licenciado para o 1.º ciclo ficou claro durante o Seminário Reflexos da Declaração de Bolonha, levado a efeito, em Coimbra, a 12 e 13 de Novembro de 2004, sob a égide do Conselho Nacional das Profissões Liberais. Em artigo de opinião, dele ressaltei as judiciosas palavras do Prof. Adriano Moreira quando alertou para “ o fantasma de uma licenciatura desvalorizada, mau grado o prestígio da Universidade que lhe deu a primeira credencial de título académico nobilitante’” (Diário de Coimbra, 14.Dez.2004).

No passado dia 21, em título de 1.ª página, o diário “As Beiras” anunciava: “ISEC concedeu equivalência a licenciaturas aos bacharéis sem provas adicionais”. E na última página decorria a notícia de que transcrevo parte: “O presidente do Conselho Directivo do Instituto Superior de Engenharia de Coimbra admitiu que todos os cerca de 1400 pedidos de ingresso foram aceites e, consequentemente, todos os cerca de 1400 bacharéis passaram automaticamente, a licenciados. Com tudo isto, o ISEC viu, no presente ano lectivo, o seu número de alunos aumentar cerca de 2800 para os quatro mil, sendo que 1400 só lá terão ido para entregar o pedido de reingresso, pagar a propina e mais qualquer coisa, e, no fim, levantar o certificado de licenciatura”.

A seguir vinha a parte substancial da noticia: “Entretanto, a escola ‘embolsou’ entre 1,1 e 1,26 milhões de euros a mais” (id., ibid.). À substituição da massa cinzenta dos alunos pelo respectivo extracto da conta bancária deve ser dado o nome de mediocratização do ensino superior, em que se bafeja a ignorância, se protege a mandriice, se dá azo ao oportunismo e se presta vassalagem ao rei Midas.

Razão assistiu a Sérgio Rebelo, docente da Universidade Católica, quando escreveu: “Onde antes havia uma pastelaria ou uma pequena mercearia, hoje tende a haver uma universidade ou uma escola superior, onde ontem se compravam pastéis de nata e garrafas de groselha, hoje conseguem-se licenciaturas e mestrados e encomendam-se doutoramentos” (Revista Exame, 4.Nov.96). Desta forma, torna-se simplicíssimo Portugal ficar bem classificado em percentagem de doutoramentos relativamente a outros países europeus. Agora, é só aproveitar a crista da onda e surfar para que o ensino obrigatório se estenda até à obtenção deste grau académico. A obrigatoriedade até ao 12.º ano passou a ser uma meta de políticos de vistas curtas e pouco ambiciosos...

13 comentários:

Anónimo disse...

Preferia que os posts fossem todos devidamente assinados.

Anónimo disse...

O post está assinado em cima pelo Rui Baptista.

Guimaraes disse...

Também não compreendo porque, em matéria de uniformização académica, não se adopta naturalmente o título da BACHAREL equivalente a BACHELOR nos cursos de 3 anos, eliminando-se o título de licenciado.
Será que os licenciados com cursos de 5 e 6 anos também passam a MASTER?
Lembra-me a CP quando promoveu as carruagens de 3.ª classe a 2.ª, mudando a inscrição de 3 para 2!

Armando Quintas disse...

É o pão nosso de cada dia cá na república das bananas, em troca de dinheiro tudo se faz e ele compra quase tudo inclusivé cursos superiores.
A bolonha à portuguesa tem sido 1 palhaçada, aqui no sul, nomeadamente no alentejo centrala universidade fez a transição para bolonha à ultima da hora em cima do joelho (salvo apenas 4 cursos), no fundo uma mega operação cosmética.
Não se ressalvou a questão dos titulos, nem sequer se resolveu ainda a questão de distinguir de uma vez por todas os politecnicos das universidades e quais os cursos de uns e outros.
A licenciatura vai ficar desvalorizada pois o mercado de trabalho já saturado não vai absorver estudantes com 3 anos de estudos, os cursos de bolonha de 1º ciclo nem sequer foram resgardados a nivel juridico, há uma enorme confusão com a questão da licenciatura e que titulo vai ter como por exemplo historia passa de historiador a técnico de história (será?), de sociologo a tecnico de sociologia, vai-se criar uma panóplia de tecnicos de tudo e mais alguma coisa e empurrar copulsivamente os estudantes para o mestrado logo apos a conclusão da licenciatura sem sequer dar a minima possibilidade de ganhar experiencia alguma antes de decidir seguir os estudos, cada vez se sai menos preparado para um mestrado que agora com bolonha passa a ser psicologicamente obrigatório.
Abençoados aqueles que conseguem ainda terminar no curriculo antes de bolonha.

Rui Baptista disse...

Caro guimaraes:

A este propósito, ecrevi: "Referindo-me apenas a estas licenciaturas [ou seja, às universitárias que refere], defendo que lhes deverá ser feita a devida justiça, mesmo em termos legais, face a ervas daninhas que lhe minaram as raízes de uma merecida e incontestável repeitabilidade, através de processos pouco recomendáveis por transformarem diplomas de pechisbeque em vistosos adornos de pouco valor social e nenhum valor académico" ("Diário de Coimbra", 16.Dez.2004).

Para o efeito, defendi, nesse mesmo artigo de opinião, "que [essas licenciaturas] ao terem sido outorgadas por instituições universitárias de indiscutível mérito, não podem, de forma alguma, serem desvalorizadas. ou sequer beliscadas, relativamente aos mestrados vindouros".

Não sei em que termos legais se já se processou essa equiparação ou, mesmo, se ela se virá a processar. Neste país as soluções não são tomadas, muitas vezes, em função da razão mas da pressão que se faz para conseguir as coisas. Razão tinha o comandante do Regimento de Infantaria em que prestei seviço como oficial miliciano que por muito prezar que lhe fossem feitos pedidos se servia de uma expressão popular: - "Sabe? quem não chora não mama!"

Musicologo disse...

E mais catastrófico é o caso de quem tem uma licenciatura "antiga" (4 ou 5 anos) + 1 mestrado "antigo" (com dissertação) (3 anos). Andou-se a estudar 8 anos e a investigar e defender uma dissertação para ficar com o grau de mestre e os benefícios que isso supostamente traria.

E agora há quem tenha licenciatura + mestrados em 4 anos e meio "à bolonhesa", com apresentação de "trabalho de projecto" de 20 páginas.

O título é o mesmo: mestre. Para a FCT parece que a avaliação em termos de futuras bolsas de doutoramento é a mesma. Desde quando isto é uma situação justa?

E os próprios doutoramentos, antes de 5 anos e agora de 3?

Basicamente e resumindo:

Antigamente:
Licenciatura 5 anos
Mestrado 3 anos com dissertação
Doutoramento 5 anos com dissertação

Agora:
Licenciatura 3 anos
Mestrado 1,5 anos com projecto
Doutoramento 3 anos com dissertação

Eu diria que desapareceu o mais alto grau de qualificação académica. O doutoramento bolonhês, passa a ser igual a um mestrado dos antigos! Conclui-se todo o estudo de ciclos em MENOS 5 anos. Que credibilidade isto trará?

Anónimo disse...

Tal como a Câmara Municipal de Coimbra.
Acreditam que ainda não encerrou a sucateira...

Se gosta de coimbra não se conforme e divulgue este caso.

Parece a máfia bolonhesa...

ForbiddenWoods disse...

E quando nós, infelizes, que estavamos numa licenciatura de 4 anos e passamos para 3, no final temos uma formação deficiente e um cartão de crédito com o titulo de DR.

Será a inépcia um requerimento para ocupar altos cargos neste pais?!?!?!?!

Ana Neves disse...

Concluí em Janeiro um dos novos "mestrados" à bolonhesa. Tive que escrever uma dissertação de mestrado e prestar provas perante juri, dissertação esta que incidiu sobre o trabalho de estágio, já existente na licenciatura antiga, que decorreu no meu 5º ano.
Tenho neste momento uma bolsa da FCT atribuída pelo ITN e estou a ser paga como qualquer licenciado "antigo", quanto a mim, justamente.
O problema foi quando me candidatei a um emprego e tive que dizer que tinha uma licenciatura antiga de 5 anos porque no formulário nem sequer estava contemplada a recente divisao "3+2" das antigas licenciaturas.
A conclusão é que o grau de mestre de bolonha não me serviu senão para ter mais trabalho no final, sendo que agora tenho que andar a explicar a toda a gente que fiz exactamente o que um licenciado pré-bolonha fez para que o suposto mestrado não me prejudique!
Se tivesse tido a oportunidade de escolher, garanto que tinha preferido não ter este dito grau de mestre...

Rui Baptista disse...

Caro musicólogo:

Pergunta bem no final do seu comentário: "Que credibilidade isto trará?"

E eu respondo-lhe, nenhuma!
Apenas desacredita quem toma estas medidas.Mas nada se faz sem uma intenção por detrás. Como disse Ramalho Ortigão"isto assim pode ser que seja útil, fácil, vantajoso, pode ser que assim se conquiste as maiorias boçais". A utilidade e a vantagem da medida são plenamente justificadas pelo dinheiro que entrou nos cofres. Num prato da balança em que se coloquem direitos e noutro metal sonante o peso penderá forçosamente para o segundo prato da balança!

Anónimo disse...

a mim, para me profissionalizar, obrigaram-me a tirar uma segunda licenciatura já ia nos meus trinta e poucos anos (de chacha, mas cheia de trebalhos de grupo e considerações didático-pedagógicas)pq eu não conseguia profissionalizar-me em serviço ( pois, tive azar, há 2 anos voltou a haver prof em serv para habil próprias). E, para acabar aquela porra em 4 anos, não consegui dar aulas enquanto andei lá a fazer centenas de trabalhos de grupo . Era impossível.
Mas ok, sou Drª e Engª, tenho duas licenciaturas, fiz o 12º em meados de 80 com média de 17, mas pronto, o estado acha que eu ainda não dei provas suficientes e ainda me contrata.. E o que mais me revolta, é que eu gosto mesmo de ensinar, sabem? Nasci para ensinar. Deveria ter tido essa percepção mais cedo, aos 18, não tive. Tive-a aos 23. É assim tão tarde?
Ando tão triste.........
Queria fazer o mestrado, nem sei no que me meta por causa do ECD. Falam lá de mestrados releventes para o grupo ou área de ensino e depois não os definem. Que mestrados são estes, alguém sabe?

Rui Baptista disse...

Prezada Maria:

Num mundo em que há professores que só o são por não terem encontrado outra forma de vida que lhe dê o sustento do dia-a-dia ou apenas para comprar os seus alfinetes, o seu depoimento é um raio de esperança de haver quem se prepa afincadamente para ser professor por vocação.

Infelizmente, num ensino burocratizado e inundado por despachos que contradizem as próprias leis é difícil responder a certas perguntas, de entre elas a sua: "Que mestrados são estes, alguém sabe?"

Eu não sei, mas estou convencido que quem souber estará pronto a elucidá-la sobre o assunto para que possa realizar o seu sonho de ser Professora.

Anónimo disse...

Maria,

Se é a mesma maria do artigo do Fiolhais sobre a Matemática não ser chinês venho pedir-lhe por favor que não ande tão triste.

Devo ser uns 10 anos mais novo (ou um pouco mais) mas deixe-me dizer-lhe que os seus comentários demonstram alguém com um profundo sentido crítico e integridade que é muito raro (diria menos de 1% pela minha experiência de vida).

Não desista e resista à estupidificação que lhe querem impor.

Quanto ao mestrado não sei (e sinceramente nem quero saber) mas pense se não será mais um logro como a sua 2ª licenciatura da treta (ou de chacha como escreveu).

Obrigado pelos seus comentários.

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