A professora Sara Raposo — uma das muitas professoras de filosofia que é exemplo de dedicação, profissionalismo e genuíno interesse pela filosofia — levantou duas objecções centrais à minha ideia de que o ensino deveria ser totalmente livre, objecções que merecem a nossa melhor atenção. Esta é a minha resposta à primeira delas.
Os responsáveis indigitados pelo Ministério da Educação para fazer programas, directrizes e exames nunca dão a cara publicamente; se dessem, defende a Sara, as coisas seriam melhores. E se as coisas fossem melhores, a minha solução radical de acabar com os exames nacionais e com o centralismo estatal perderia uma parte importante da sua motivação.
Esta ideia tem alguma plausibilidade; e muitos de nós concordaríamos que um debate público participado e civilizado sobre os mais diversos aspectos do nosso trabalho — ensinar filosofia — teria alguma probabilidade de melhorar as coisas. E se isso acontecesse, poderíamos então ter programas, directrizes e exames nacionais que todos pudéssemos aceitar, por mais que tenhamos concepções diferentes do que é a filosofia e de como deve ser o seu ensino.
Porém, há dois aspectos que derrotam este argumento.
Em primeiro lugar, nunca haverá da parte dos responsáveis ministeriais qualquer disponibilidade para discutir publicamente e de modo genuíno e civilizado ideias opostas. A capacidade para admitir a diferença radical num debate aberto e honesto é uma conquista de uma mentalidade civilizada que não existe no país; os professores só são capazes de fingir que discutem ideias quando toda a gente concorda quanto ao fundamental. Quando há diferenças profundas — precisamente quando o debate honesto é mais necessário — as pessoas abandonam a simulação do debate civilizado e passam para os jogos de poder, a esperteza saloia e a tentativa de silenciar e eliminar quem pensa de maneira muito diferente. Em Portugal não há tradições de debate académico; as pessoas não sabem fazer isso. Tudo o que conhecem é uma simulação de debate académico, quando todos concordam e quando de qualquer modo se estão nas tintas para o que estão debatendo porque são matérias abstractas e académicas que não lhes dizem realmente respeito, pessoalmente; quando se tenta debater matérias que as pessoas consideram que realmente lhes dizem respeito e quando nesse debate há posições muitíssimo diferentes das deles, o único modelo nacional de debate é o pseudodebate político, cheio de retórica, seduções linguísticas, jogos de poder, desonestidade intelectual e pessoal. Desculpa, Sara. Nós ensinamos os alunos a debater de maneira intelectualmente proba, mas a generalidade dos nossos colegas não só não sabem como tal coisa se faz, como não estão minimamente interessados em fazê-lo. Na verdade, muitos deles nem conhecem a palavra “proba”.
Em segundo lugar, imaginemos que havia mesmo um debate honesto e uma tentativa de chegar a directrizes, programas e exames nos quais todos os profissionais da área se reconhecessem. Essa tentativa seria gorada, mesmo que fosse honestamente feita. Aquando da elaboração das primeiras Orientações para a leccionação dos programas, face à iminência dos novos exames nacionais de filosofia, alguns dos responsáveis que presidiram à sua elaboração vieram depois contestá-las, como se não tivessem participado delas. Fizeram-no porque são desonestos e não aceitam as regras democráticas da tomada de decisão. Para quem, como eu e outros colegas, esteve nessas reuniões, a dose de paciência necessária para aceitar as sugestões dos colegas era gigantesca, pois quase nada do que diziam tinha a mínima relação com qualquer bibliografia académica. A concepção que estas pessoas têm da filosofia é uma conversa fiada supostamente edificante — cultura geral pouco culta — e é isso que querem nos exames, programas e directrizes. Querem-no tanto porque genuinamente é isso que pensam que a filosofia é, e também porque essa concepção de filosofia tem a vantagem, para essas pessoas significativa, de nos poupar o trabalho de estudar bibliografias complexas, sofisticadas e que exigem esforço e dedicação. De modo que o mínimo denominador comum que seria de esperar que todos os professores de filosofia aceitassem — os clássicos, como Platão, Aristóteles, Agostinho, Anselmo, Tomás, Ockham, Buridano, Descartes, Locke, Hume, Kant, etc. — nunca serão aceites por uma parte significativa dos nossos colegas, porque desprezam a história da filosofia, não gostam das complexidades abstractas do pensamento dos grandes clássicos, e preferem qualquer coisa que seja mais ou menos parecida a ler o Público todos os dias (o grau máximo de sofisticação intelectual para muitos professores). Desculpa, Sara, mas o tipo de sofisticação intelectual que ensinas os teus alunos a cultivar e a prezar está ausente da maior parte dos nossos colegas, e é contra isso que eles se rebelam, e é por isso que nunca será possível encontrar um denominador comum no qual todos nos possamos rever.
A minha conclusão é que quando as diferenças de concepções são gritantes entre os profissionais de uma área, e dado que eu defendo o direito de os nossos colegas terem as concepções que muito bem entenderem da filosofia e do seu ensino (coisa que, curiosamente, eles não fazem relativamente a mim), não há sequer a possibilidade de um mínimo denominador comum. Tudo o que podemos fazer é criar condições para que todos os professores se reconheçam no sistema que temos e se sintam bem, quer queiram ensinar numerologia e astrologia (como há alguns casos), quer queiram fazer da filosofia um comentário vago do quotidiano sociopolítico, quer queiram doutrinar os jovens para serem religiosos, quer queiram dar-lhes a autonomia para saber pensar filosoficamente por si mesmos, como tu e eu.
Repara que eu acredito genuinamente que quem não concebe a filosofia como teorização e argumentação intensa e rigorosa sobre problemas reais insusceptíveis de resolução científica, e quem não pensa que ensinar filosofia é ensinar a teorizar e argumentar com autonomia, criatividade e precisão sobre problemas filosóficos, está histórica e objectivamente errado. Historicamente errado porque o género de teorização e argumentação intensa que defendo que está no âmago da filosofia se encontra realmente nos mais reconhecidos clássicos da filosofia; e objectivamente errado porque tal concepção de filosofia e do seu ensino não está de modo algum alinhada com o que se faz nos mais importantes centros académicos do mundo nem com a bibliografia publicada nas mais importantes editoras académicas do mundo. Só que as pessoas têm o direito de estar erradas, e têm o direito de agir, como profissionais encartados pelo estado, segundo as suas crenças erradas. Não vejo o que me poderia dar a mim a legitimidade para chegar ao pé de um colega que tem as mesmas qualificações estatais que eu — ou mais — e impedi-lo de ensinar filosofia como ele muito bem entende, só porque o que ele entende não está alinhado com a bibliografia da área nem com as práticas académicas relevantes.
Se eu tiver de escolher entre impor as minhas concepções aos meus colegas e defender o direito de eles porem em prática as suas concepções — que eu considero profundamente erradas e até pueris — o meu amor pela liberdade e o meu respeito pela autonomia dos outros, em particular dos colegas, obriga-me a nem sequer hesitar e a defender a liberdade e o direito à diferença.
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4 comentários:
Caro Professor Desidério Murcho:
É com enorme prazer e proveito que ultimamente tenho lido os seus Posts neste blogue.
Oxalá que por aqui continue com essa determinação, pois quanto ao rigor e clareza das suas posições e à qualidade substancial da discussão para que nos desafia nem me atrevo a comentá-los por não querer ser redundante e também por manifesta incompetência. Este interessante blogue estava carente de um «upgrade» por se ter deixado enredar na teia estéril e dicotómica de um pretenso debate acerca das culpas do estado comatoso da nossa Educação, traduzido na versão «clubística» da discussão (luta) entre anti-eduquêses e eduquêses (ou pretensos eduquêses, pelo menos na abusiva classificação feita a alguns dos segundos pelos primeiros).
Ora, como muito bem sabe, as coisas são muito mais complexas do que essa simplista dicotomia faz crer, infelizmente para a nossa Educação.
Estou certo de que passarei de um visitante muito esporádico (que raramente comenta) a um visitante assíduo (quiçá um comentador com alguma regularidade).
Quem sabe!
P.S. Um tributo à Prof. Sara Raposo (que não conheço): visito o seu blogue diariamente e lamento não viver perto da Escola Pinheiro e Rosa para poder lá matricular o meu filho, a fazer actualmente o ensino secundário, para que pudesse desfrutar do seu ensino na disciplina de Filosofia.
Primeiro ponto: um argumento não derrota-se, eis que corresponde a aprovação ou não, em considerando como idéia entre iguais.
...nunca haverá da parte dos responsáveis...
O termo aqui utilizado substima a circunstância da inteligência de quem é responsável.
...A capacidade para admitir a diferença radical num debate aberto e honesto é uma conquista de uma mentalidade civilizada que não existe no país;...
Certamente os humildes ão de compreender que todo o esforço delibera um acto que não agrada e não fideliza a idéia de liberdade.
Apenas não lamenta-se da perda, lamenta-se também por conquistas.
"nunca haverá da parte dos responsáveis ministeriais qualquer disponibilidade para discutir publicamente e de modo genuíno e civilizado ideias opostas."
Poderá haver como houve com os Congressos do Desporto... discutiu-se, discutiu-se, e depois o governo legislou como quis. Exemplo? O Regime Jurídico das Federações Desportivas... com o Estado a intrometer-se no movimento associativo!
Cumprimentos!
Muito obrigado pelas suas palavras, José Fontes!
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