quinta-feira, 19 de abril de 2012

PEDRA FILOSOFAL

Texto gentilmente enviado pelo Professor Galopim de Carvalho.

               Laboratório de um alquimista, pintura de David Teniers (1610-1690)

Sempre que se fala de “pedra filosofal”, vem-me à ideia a figura ímpar de Rómulo de Carvalho/António Gedeão e do meu amigo Manuel Freire que tão bem divulgou a sua extraordinária poesia. Mas não é deles que, neste momento, pretendo falar. Como é do conhecimento comum, a “pedra filosofal” deu vida à alquimia e é desta corrente do pensamento e da sua prática que, numa abordagem despretensiosa e simples, dos seus aspectos mais gerais, ensaiei escrever estas linhas.

O termo alquimia encerra um conceito carregado de sabedoria, nem sempre devidamente apreciado. O nome radica no árabe al kimia, expressão que, certamente, tem origem no termo grego khymeia, que aludia à mistura de vários sucos. Todo este saber vem da Antiguidade, através da tradição popular e dos textos eruditos dos clássicos gregos e latinos.

Surgida no extremo Oriente, a alquimia chegou ao Ocidente e, em particular, à Península Ibérica, na Idade Média, durante a islamização. A mineralogia, ciência moderna essencial à compreensão do planeta que habitamos e de muito mais, nasceu e cresceu no seio da alquimia, deixando para trás muitas das concepções fantasistas e místicas dos escolásticos.

Mas só se afirmou, de facto, como disciplina científica, a partir do século XVIII, a par da química, fazendo-a progredir e tirando dela o essencial do seu próprio aprofundamento como ciência de acentuada organização sistemática.

A primeira obra escrita visando a mineralogia, de que temos conhecimento, é um Tratado sobre as Pedras e foi escrito por Teofrasto, filósofo grego do século III antes de Cristo. Devemos a este discípulo de Aristóteles a primeira classificação mineralógica baseada nas respectivas utilidades. Nesta classificação distinguiu, sobretudo, minérios, pedras preciosas e pigmentos. Há, no entanto, que ter em conta um longo caminho percorrido pelas civilizações que o precederam, (nomeadamente a chinesa, a babilónica, a hindu e a egípcia) no domínio do conhecimento das substâncias, das suas natureza e constituição. Em Roma, no século I, Plínio, o Velho, uma das vítimas da histórica erupção do Vesúvio, tem lugar de destaque através da sua História Natural.

Nesta obra monumental, em 37 volumes, o autor retoma Teofrasto e volta a falar de minérios, pigmentos e gemas, uma outra maneira de dizer pedras preciosas. E o papel da alquimia no estudo dos minerais e, também, na química foi decisivo. Podemos afirmar que a mineralogia percorreu a Idade Média de mãos dadas com a alquimia, numa prática e numa atitude trazidas pelos árabes, seus cultores.

Alguns alquimistas desenvolveram a chamada Polypharmacia, uma actividade onde se manipulavam vários produtos naturais, com destaque para o enxofre e o azougue (mercúrio), e experimentavam processos laboratoriais essenciais a estas duas disciplinas. O enxofre era tido como o princípio fixo, activo, masculino, associado à combustão e à corrosão dos metais. O mercúrio representava o princípio passivo, feminino, inerte volátil.

A partir da 2ª metade do século XVI, evidenciaram-se duas correntes que dividiram os alquimistas. Uma delas preconizava explorar a natureza das coisas, caminhando no sentido da química científica. A outra cultivava a dita atitude fantasista e mística, sem busca da pedra filosofal, da transformação de metais vulgares em ouro e do elixir da longevidade, práticas estas obscuras e responsáveis pela imagem negativa que, injustamente, tem sido divulgada em torno da alquimia e dos alquimistas.

Esta corrente teve como resultado retardar o avanço da química e, consequentemente, o da mineralogia, disciplinas que, como se disse atrás, só começaram a ganhar foros de ciência a partir do século XVIII. No quadro de uma ciência oculta, com magia à mistura, como alguns se referem à alquimia, há os que admitem que a ideia da transformação de metais inferiores em ouro, seja uma metáfora da purificação espiritual em que a ignorância dava lugar à sabedoria. Admitem ainda, que, para muitos alquimistas, este fenómeno simbolizava a transformação da sua própria espiritualidade de um estado inferior para um superior.

Assim, a divulgação do seu trabalho com os metais seria meramente metafórica, visando desviar as atenções da Igreja Católica relativamente ao trabalho espiritual que prosseguiam. É razoável admitir que tinham necessidade de ocultar todo e qualquer comprometimento espiritual no seu trabalho, uma vez que, como foi norma na Idade Média, correriam o risco de serem acusados de heresia e serem perseguidos pelo Tribunal do Santo Ofício. Muitos alquimistas foram julgados e condenados à fogueira por alegado pacto com Santanás. Por isso, ainda hoje, o enxofre, um elemento químico que, como se disse atrás, foi muito usado pelos alquimistas, é associado ao Diabo e ao Inferno.

Em termos de cultura geral, fala-se sobretudo dos esforços da alquimia na procura da chamada “pedra filosofal” necessária à produção de ouro a partir de metais vulgares como o cobre, o chumbo, o estanho, o ferro e outros, considerados inferiores. “Pedra” essa igualmente necessária à obtenção do “elixir da longa vida”, uma panaceia universal que curaria todas as enfermidades e daria vida longa àqueles que a ingerissem. Pelo contrário, pouco se sabe do trabalho dos alquimistas que abriu portas à ciência. No entanto, é um facto que a alquimia se caracterizou também pelo seu carácter de prática precursora da ciência experimental, nomeadamente a química, a mineralogia e a metalurgia, manipulando minerais e outros produtos químicos no propósito de obter novas substâncias. Legou-nos alguns procedimentos em uso nos laboratórios do presente, como o aquecimento à chama e em banho-maria, a destilação, a evaporação, a combustão, a sublimação, a dissolução e a precipitação. Também não podemos esquecer que são evidentes as preocupações de muitos alquimistas com a saúde e a medicina, estando alguns deles entre os precursores da moderna medicina.

Se recuarmos aos primórdios, vemos que há uma alquimia chinesa que se pensa estar ligada ao Budismo e que teria por principal objectivo conseguir o “elixir da longa vida” que, segundo os seus cultores, estava relacionado com a fabricação do ouro. Na Índia, a filosofia védica também estabelece um paralelo entre a imortalidade e o ouro. Próxima do hinduísmo, esta filosofia está explanada em textos antigos, escritos por volta de 1500 antes da nossa era, em sanscrito. Conhecidos por Vedas, estes textos estão incluídos num vasto conjunto de escrituras sagradas desta tradição religiosa da Índia.

A alquimia desenvolveu-se depois ao longo do tempo na Mesopotâmia, no Egipto, com destaque para a cidade de Alexandria, no Mundo Islâmico, na Grécia, em Roma, e no resto da Europa, incluindo, naturalmente, a Península Ibérica. Certos autores defendem que a ideia do “elixir da longa vida” nasceu quando Alexandre o Grande, da Macedónia, invadiu a Índia no ano 325 antes de Cristo. Segundo eles, este conquistador teria procurado aí a fonte da juventude. Há quem admita que essa ideia tenha migrado da Índia para a China, mas também há quem admita o contrário.

Os alquimistas aceitavam que a matéria era composta pelos chamados quatro elementos de Aristóteles (a água, o fogo, a terra e o ar), passíveis de serem afectados por outros tantos atributos (o húmido, o seco, o frio e o quente). Aceitavam, ainda, que combinações destes elementos e destes atributos, nas mais diversas proporções, determinavam a natureza dos objectos e, por isso, acreditavam na transmutação.

É curioso assinalar que esta crença dos alquimistas se tornou uma realidade no século XX, em particular com a fissão e a fusão nucleares. Na linguagem dos alquimistas era frequente o uso de imagens próprias da sexualidade, como seja, por exemplo, comparar a combinação entre dois elementos químicos à cópula. Nesta linguagem, a combinação do enxofre com o mercúrio era referida como o "coito do Rei e da Rainha".

Nesta mesma linguagem era frequente o uso dos nomes de certos planetas para referir alguns metais. Assim, por exemplo, o Sol representava o ouro, Mercúrio, o mercúrio, a Lua, a prata, Vénus, o cobre, Marte, o ferro, Júpiter, o estanho e Saturno, o chumbo. Entre os mais célebres alquimistas, cujas obras abriram caminho à experimentação científica, estão o alemão Alberto Magno e o inglês Roger Bacon, ambos do século XIII. O primeiro descreveu a composição química do cinábrio e do alvaiade e preparou a potassa cáustica. O segundo, conhecido por Doutor Mirabilis, escreveu um longo tratado sobre os metais.

Da mesma época, cita-se o italiano Tomás de Aquino. Este ilustre discípulo de Alberto Magno escreveu largamente sobre o arsénio. Do século XV, recorda-se o alemão, Basilius Valentinus que descobriu os ácidos sulfúrico e clorídrico e dissertou sobre o antimónio. No século seguinte, ganharam nome o alquimista e médico alemão Georg Bauer, mais conhecido por Agricola, considerado o pai da mineralogia, da metalurgia e da prospecção e extracção mineiras, e o suíço Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim (1493-1541), mais conhecido por Paracelso, médico de grande prestígio e pioneiro na utilização medicinal dos compostos químicos; identificou o zinco e alargou a sua actividade à astrologia.

É dele o conceito de homúnculo que se refere a um imaginado homem de muito pequena estatura, com cerca de 30 cm de altura e que, segundo ele, poderia ser criado “colocando sémen humano numa retorta hermeticamente fechada e aquecida em esterco de cavalo durante 40 dias”. Esta ideia, que influenciou outros alquimistas, foi muito mais tarde divulgada na ficção sob a forma de criaturas monstruosas artificiais, das quais ficou famosa a figura de Frankenstein, na obra literária da britânica Mary Shelley, publicada em 1818.

A psicologia moderna também tem algumas raízes na alquimia. A simbologia alquímica, de significado oculto, teve importância no percurso espiritual dos seus cultores. A maior influência da alquimia encontra-se, porém, nas chamadas ciências ocultas como o exoterismo e outras correntes do pensamento que buscam as leis que regem o todo universal, numa procura de conciliação do natural com o sobrenatural.

Uma das ideias mais espectaculares, mas pouco divulgada, de alguns alquimistas, foi a criação de vida humana a partir de materiais inanimados, que parece testemunhar uma forte influência da tradição mística do judaísmo. É do conhecimento dos estudiosos da cultura judaico-cristã que a Kabala admite a possibilidade de dar vida a um ser artificial, a que foi dado o nome de Golem.

Como remate destas breves e soltas considerações sobre a alquimia, é bom recordar que os seus principais cultores nos deixaram uma poderosa mensagem de busca pela perfeição. Na sociedade do presente, mais marcada pelo ter do que pelo ser, rendida ao culto do dinheiro e do poder, as vozes dos antigos alquimistas surgem como um chamamento para o reencontro com o lado espiritual da vida.

4 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Eis um (belíssimo) texto, em nome da ciência.

[Em minha opinião, naturalmente.]

José Batista da Ascenção disse...

Não sei porque coloquei a palavra "belíssimo" do meu comentário anterior dentro de parêntesis. Não era minha intenção. Juro.

Anónimo disse...

Muito bom mesmo.
A alquimia é uma coisa que me deixa curioso, assim como a pedra filosofal. Muito mistério.
Gostei, continue.

Cláudia S. Tomazi disse...

E Plínio o Velho na História Natural, assim os homens as criaturas.

35.º (E ÚLTIMO) POSTAL DE NATAL DE JORGE PAIVA: "AMBIENTE E DESILUSÃO"

Sem mais, reproduzo as fotografias e as palavras que compõem o último postal de Natal do Biólogo Jorge Paiva, Professor e Investigador na Un...