Crónica publicada primeiramente no Diário de Coimbra e posteriormente em outros jornais regionais.
Migrar é uma
das características da vida.
Até podemos dizer, salvaguardando a armadilha que
é generalizar, que migrar é um acontecimento constante da vida.
Todos os
organismos vivos conhecidos migram em alguma fase do seu desenvolvimento.
Alguns, como
os microrganismos unicelulares mais simples, por exemplo uma bactéria (“uma
bola de sabão com informação genética”), migram à procura, ou em direcção a
regiões aquáticas mais ricas em nutrientes, ou para se afastarem de substâncias
nefastas e por ventura fatais. A sua migração depende muito de correntes de
água, ou outras convecções de meios de suporte que, com um certo nível de acaso
acabam por decidir a tonalidade do fado.
A sorte, é ser capaz de suportar
longos períodos de escassez de nutrientes, de resistir às agruras de
toxicidades, em agilizar mecanismos de mutação para uma melhor adaptação às
condições existentes. Ficar a hibernar no tempo, esse grande escultor (como
escreveu Marguerite Yourcenar com outros propósitos).
A - Protozoários com cílios; B - Espermatozóides com flagelos.
Outros microrganismos
têm cílios, flagelos, que propulsionam essa migração à custa de trabalho.
Trabalho mecânico sustentado por uma bioenergética quase universal, feito de
transduções da energia contida nas ligações químicas de moléculas de açúcar,
como a glicose, para trabalho mecânico, motores e rotores proteicos que se
prolongam em filamentos helicoidais, eficientes máquinas manométricas.
Propulsionam a migração à custa de “trabalho bioquímico”, à procura de uma
região que lhe proporcione a quantidade bastante para uma qualidade de vida
eficiente.
O aumento de
complexidade, na estrutura e organização dos seres vivos, sob o cisel
implacável da selecção natural e sexual (actuando estas diferencialmente e em
fases distintas da vida, quer ela seja linear ou cíclica), manteve o fenómeno
da migração no reportório das habilidades para procurar os “ambientes” mais
propícios à alimentação, ao acasalamento, à reprodução, à hibernação, à fuga à
chegada sazonal de predadores ou das estações climáticas mais rudes e contrariantes
para a vida.
Algumas células reprodutoras dos animais superiores, como sejam os espermatozóides,
migram. Migram para entregar a uma outra célula reprodutora (oócitos, óvulos),
informação genética. O trabalho mecânico da cauda do espermatozóide é forte, o
suficiente para avançar contra a corrente, numa escalada da parede uterina, sem
retorno pois o objectivo único é o de encontrar a célula reprodutora feminina.
Num tempo indeterminado, uma ou algumas células adultas tornam-se, por razões diversas, em células tumorais, eventualmente
cancerosas. E uma das características, para além daquela que subverte a ordem
local da organização e estrutura anatómica, histológica e fisiológica do tecido
contextualizante, é a de espoletar migrações mais conhecidas por metástases. O cancro é uma perturbação migratória dentro do organismo!
Na doença,
migrações de várias espécies e escalas são de possível identificação.
Mesmo na
morte, em que o trabalho bioquímico se anula e já não há mais transferências de
energia, calor, em que cessa a produção de trabalho útil e funcional, outras
migrações se iniciam. A matéria-prima de que era fingida a vida é agora apelo
para outros seres migrarem para esta “nova” fonte de nutrientes.
(continua)
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