quarta-feira, 25 de abril de 2012

Uma lição de Orwell

No justamente famoso artigo "A Política e a Língua Inglesa", publicado por George Orwell em 1946 e que agora podemos ler em português na pequena antologia por mim organizada e traduzida para a Antígona (Por Que Escrevo e outros ensaios), podemos ler estas palavras:
"O grande inimigo da linguagem clara é a insinceridade. Quando há um hiato entre os nossos verdadeiros objectivos e os objectivos declarados, voltamo-nos como que instintivamente para as palavras longas e para as expressões gastas, como um choco a largar tinta."
Esta parece-me uma observação lúcida, e muitas vezes acertada. O próprio Orwell dá como exemplo extremo deste fenómeno a seguinte passagem:
"Apesar de conceder de bom grado que o regime soviético exibe certas características que o humanitário pode sentir-se inclinado a deplorar, temos, penso, de concordar que uma certa limitação do direito a fazer oposição política é um concomitante inevitável de períodos de transição, e que os rigores que o povo russo foi chamado a suportar foram amplamente justificados na esfera do que concretamente se alcançou."
Todo este palavreado, afirma Orwell, quer apenas dizer "Defendo que se deve matar os oponentes quando se consegue com isso bons resultados". Como esta última afirmação custa a engolir, e como o próprio autor é incapaz de a admitir para si mesmo, é incapaz de a exprimir com clareza e precisão. O fenómeno foi mais tarde apontado por Stanislas Andreski, no livro de 1972 Social Sciences as Sorcery, denunciando a prática académica de escrever de maneira esquisita para dar a aparência de cientificidade ao puro vento. O exemplo dele é este:
Para aqueles cujos papéis envolviam primariamente a execução de serviços, por oposição à assunção de responsabilidades de liderança, o padrão básico parece ter sido uma resposta às obrigações invocadas pela liderança que eram concomitantes ao estatuto de membro na comunidade societal e em várias das suas unidades segmentadas. A analogia moderna mais próxima é o serviço militar executado por um cidadão comum, excepto que o líder da burocracia egípcia não precisava de uma emergência especial para evocar obrigações legítimas.
Esta estranha passagem quer apenas dizer que no antigo Egipto as pessoas comuns podiam ser recrutadas para trabalhar. Poder-se-ia pensar que este caso é apenas um exemplo de academismo, mas do meu ponto de vista o diagnóstico de Orwell aplica-se-lhe ainda, pois o academismo resulta da falta de sinceridade, que nos impede de admitir perante nós mesmos e perante os outros que o nosso trabalho é bastante modesto e de limitado alcance.

Hoje comemora-se em Portugal os 38 anos da revolução que, sob a iniciativa de corajosos e honestos capitães e soldados, e com o apoio comovente e civilizado da população de Lisboa, pôs fim a uma ditadura cujo discurso se caracterizava precisamente pelo lodo gramatical e pelas palavras grandiosas que ocultavam a verdade das coisas: no país não havia liberdade. Não a havia porque não havia coisas muito simples, como o direito de uma pessoa publicar as ideias que lhe apetecesse num jornal ou num livro; porque uma pessoa não podia ensinar o que quisesse; porque uma pessoa não podia fundar um partido de oposição democrática e pacífica, tentando ganhar o poder por via de eleições universais. Estas eram as coisas óbvias e simples; mas se formos ler o discurso político da altura, estas coisas óbvias e simples perdem-se no mar de palavras que sugerem que, apesar de todas as aparências, vivíamos na verdadeira liberdade, porque a verdadeira liberdade era outra coisa.

O regime foi-se, e não lhe guardo saudades, apesar de reconhecer a quem lhas guarda o direito de o fazer. Mas o que ficou foi o tique linguístico da expressão turva, que faz quem defende o contrário da liberdade continuar a dizer que a verdadeira liberdade é o poder de uns imporem aos outros o que estes não querem e têm o direito de não querer.

2 comentários:

Cláudia S. Tomazi disse...

Ingenuamente acredito que o homem em todo sentido, em todos os tempos e assim acusara a história, fora refém de boa intenção em nome da (tensão) liberdade, aliás deveríamos esquecer o suor e os anseios... e de quais vos discrimina os de boa intenção, quando penalizara da própria liberdade; de quando obviamente terá sido outra coisa; ou que nem terá sido ao que vigorara, e por fim dando conclusão ao que assiste-se. É assim tão simples! Então comemora-se. E pensar-se-ia que apenas de comparações ao passado é que tecnicamente deveria ser possível de correcção em relação a projecção futura, em decorrência dos tantos mil anos da dita humanidade, ou não.
Deveras a lama gramatical!
Perdoa da incoveniência. Quis dizer, aliás nem consigo:(lodo gramatical). Talvez, da estima a língua da vossa pátria, já que vos estais do desejar.

José Batista da Ascenção disse...

Sim, "o grande inimigo da linguagem clara é a

insinceridade". Mas há outro inimigo (ou fator

impeditivo) da linguagem clara - a ignorância

e a incapacidade de... ser claro.

É o que acontece com grande parte (a maioria?) do nosso

povo, da nossa juventude e das nossas crianças. Porquê?

Porque a escola tem sido, a este nível, muito ineficaz.

De quem é a culpa, digo, responsabilidade?

- De quem "(des)governa" a escola;

- De quem "(de)forma e "desforma" professores, quero dizer,

de universidades e escolas (ditas) superiores (?) de

educação, através das suas "fabulosas" teorias (?);

- De quem pôs/põe a escola ao serviço da ignorância,

sobretudo dos filhos dos pobres [falando embora por mim,

pois (do resto) deles não tenho (qualquer) procuração...].

Em minha opinião, devido à ação de uns militantes desse

estado de coisas a que alguém chamou "eduquês", que muito

diligentemente o defendem e procuram manter.

A insinceridade tem levado também à adoção de uma

"novilíngua" por parte dos nossos governantes atuais, como

tem escalpelizado Pacheco Pereira, em "jogos do poder,

destinados a não dizer nada, dizendo, ou a dizer tudo, não

dizendo"

Estamos bem entregues.

Porque nos entregámos.

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