quarta-feira, 4 de abril de 2012

Arquitetura e função: a escolástica


Regressa como autor convidado António Mouzinho, que já aqui nos ofereceu antes belos textos sobre a educação nacional (na imagem a Escola Jacome Ratton, remodelada pela Parque Escolar):

(artigo suscitado por coisas da vida, por outras deste blogue, e por uma reportagem da RTP de 3 de abril sobre a intervenção da Parque Escolar na escola secundária Jácome Ratton de Tomar — antiga escola industrial a cujo digno espólio não parece corresponder a dignidade do encaixe num espaço museológico…)

1. Preâmbulo

Poderão dizer: agora está em voga dizer cobras e lagartos da Parque Escolar, e cá temos mais um…

De maneira que começo por pedir desculpa, e licencinha, circunstanciar em murmúrios e sussurrar umas justificações atabalhoadas: sou professor de lyceo, dou aulas de uma matéria obscura num estabelecimento refeito pela Parque Escolar; mas também sou arquiteto, reformado embora da arquitetura há poucos anos. Balanço: perto de 40 anos de ensino e 30 de arquitetura.

Isto dá-me o privilégio de ter o meu caixote montado na escola: de vez em quando trepo e, lá de cima (do caixote), profiro anátemas a toda a volta, conseguindo com isso que a direção e alguns dos colegas considerem que tenho mau génio, o que é bom para todos: mantém os níveis; liberta humores nefastos; em simultâneo, dá apetite e é digestivo.

Aquilo que se segue é, então, a replicação na internet da peroração no intervalo, do cimo do caixote, no lyceo melhorado.

2. Desenvolvimento

Chegou então, ao lyceo, o desenvolvimento: um estabelecimento envelhecido, com algumas necessidades de restauro e outras de modernização, viu chegar os peritos.

Os peritos são arquitetos, engenheiros, etc.; o pessoal do costume. Numa das primeiras operações de sondagem do terreno acertaram numa conduta de gás, que deitou cheiros nefandos, o que considerei mau prenúncio! Dá azar, pensei com os meus botões…

Falaram, claro, com a direção. Mas mais ninguém. Percebem disto! — achei eu. Não precisam de fazer perguntas a professores de Física ou de Biologia, de Desenho ou de Línguas. Sabem.
Passou um par de anos: a escola está praticamente acabada. O resultado é, de modo geral, positivo: comunica-se entre espaços através de escadas, corredores e portas. Algumas paredes ostentam janelas, que facilitam a insolação. As salas têm carteiras onde os alunos se sentam, com um ar recente, de estreia. Continua a não chover lá dentro, o que poupa os cadernos e os livros.

Temos escola.

Então porquê o meu ar empinado, em bicos dos pés? No caixote?

Porque — é assim (como passou a dizer-se há uns tempitos): a boa arquitetura pressupõe uma boa relação entre a forma e a função. Ora na minha escolinha (como também se passou a dizer há uns tempitos), nem sempre as coisas são tão claras:

– em virtude de termos a latitude e a proximidade do mar que temos, o nosso clima não é outra coisa senão o que era antes das obras; aquilo que, com poucos custos, se regulava facilmente com a abertura e o fecho judiciosos de janelas e estores, somando-lhe algum aquecimento pontual, passou a estar dependente de um sistema de climatização que foi caro, e é caro de manter — mas, sobretudo, não funciona: está caprichoso, arrefece de mais, aquece de mais, é barulhento (dá outra substância às aulas), e invencível; bom, mesmo bom, é quando está desligado — o que prova não sei bem o quê;

– tipicamente, temos descargas diretas, nos pátios, de cachorros colocados sobre os percursos prováveis das pessoas e de tubos de queda das águas pluviais, numa metáfora naturalista que não nos poupa as canelas e as solas (NOTA: parece ter deixado de chover em Portugal, o que melhorou muito este aspeto da construção);

– aqueles pavilhões que mantêm as janelas quadragenárias (o lyceo é de final dos anos 60), têm um sistema comprovado a funcionar; todos os outros ostentam umas bisarmas com painéis fixos de vidro de perto de 4 m2, e grandes janelas de batente, com vidro único de perto de 2m de altura, que permitem duas modalidades — fechada e aberta, sem regulação ou fixação intermédia; são desenhos, evidentemente, pensados para o Norte da Europa, o que lhes dá um certo perfume de exotismo;

– as fachadas exteriores ostentam um florestal revestimento de bandas de ripado de madeira de qualidade, que já andaram meio encavalitadas ao sabor das variações térmicas e higrométricas da zona, e que hão de acabar prostradas por uns (poucos) anos desses humores do clima; como aparecem em simultâneo com salas de grandes janelões, fica a impressão de terem sido montadas na direção errada: aquilo que serviria, na horizontal, para moderar o excesso de insolação foi, por distração de alguém, grudado às paredes, na vertical; tanto melhor: enquanto há Sol lá fora (toda a manhã, por exemplo), entra-se nas salas, correm-se as cortinas para baixo e acende-se tudo o que é luz, num permanente exemplo do que é a adaptabilidade e o engenho do ser humano; o Sol incomoda? — tapa-se: todo!

– um auditório catita, com 200 magníficos lugares, é um perfeito paralelepípedo, com todas as vantagens acústicas que tal proporciona (reverberações descontroladas, ecos vários, ressonâncias surpreendentes, potenciando a experiência acústica); está localizado a Poente da biblioteca, com uma parede comum; como são espaços de cultura e de comunicação, não lembrou a ninguém que precisariam de ser isolados, de forma que não o são; por cima, há salas de aula, que também são espaços de cultura e comunicação, e tal, e couves; uma claraboia cujo obscurecimento total não foi previsto sobrepõe-se à zona de projeção, o que torna claros todos os assuntos; as portas — de madeira clara, bonita —, pesadas e de construção elaborada, abrem para dentro, fornecendo intimidade a situações eventuais de pânico; abrem, placidamente, segundo um esquema hierarquizado de um pano antes (o previsto na conceção), o outro, depois, após bom entendimento do esquema de encaixe — senão, os encaixes partem-se, ou os gonzos, ou tudo;

– a dita biblioteca tem um amplo espaço de estar perto da entrada; apesar de ter fofos cadeirões a condizer com os vãos (com dimensões nórdicas, o que deixa rabos nacionais a considerável distância do fundo e suscita variados movimentos ginásticos em busca do conforto), não tem prateleiras que cheguem para as encomendas: umas, porque são extensas de mais, não são utilizadas, porque a ameaça de grandes flechas causadas pelo peso dos livros inibe a experiência de as preencher; outras, porque são altas de mais, são o exato contrário de todas as políticas seguidas em bibliotecas escolares, que querem os livros à mão dos leitores; no todo, seja como for, são poucas, porque são periféricas, e não há paredes suficientes sem vãos; os cadeirões situam-se junto aos janelões (repare-se nos «ões», «ões», a certificar a generosidade da oferta); sobre estes, atravessam os prateleirões, a uma altura tão metafórica como a dos tubos de águas pluviais que há pouco mencionei: a elevação da cultura, pois decerto; só não levam livrões por causa da tal flecha; falando de pluviais: quando chove muito, o piso de baixo da biblioteca (onde há mais livros, por sinal) fica imediatamente inundado: isto permitirá a liquidação periódica de alguns espécimes caídos em desuso, assim haja o cuidado de os expor nas prateleiras inferiores, e esperar que chova; não posso deixar esquecida a boa imagem que os conjuntos cadeirões/janelas, colados à rua, dão de uma biblioteca escolar — miúdos aos molhos, esparramados nos sofás, com um ar vago, em silêncio, sem sequer uma revista nas mãos: estão meditando;

– muitas salas de aulas estão sobremobiladas; são grandes as mesas? são pequenas as salas? há meninos a mais? enfim: estão sobremobiladas em mesas; já o não estão em cabides, em prateleiras, em arrumações variadas, porque isso não foi pensado em termos globais; o que foi pensado em termos globais foi a instalação de quadros interativos, que ainda não se encontram em funcionamento e que constituem uma base de trabalho cara e discutível; acrescentou-se uma chapa três de quadros brancos de acrílico para canetas de feltro, que derrapam (que medo, senhores!) e propõem aos utentes uma chapa não menos três de uma paleta de quatro cores: Benfica, Sporting, Belenenses e Académica (esta, porventura a mais utilizada); os quadros antigos foram substituídos (deitados fora?); os paus de giz, a que alguns professores eram alérgicos, foram trocados por canetas apropriadas, a cujo pó alguns professores são alérgicos; percebe-se a vantagem da perda do giz — um riscador com uma dúzia de cores, vendido em grandes caixas de 100 paus, sem quebra de qualidade ao longo da longa utilização, podendo ser usados em variadas posições (deitado traça uma mancha), a que os quadros ofereciam um atrito confortável, extremamente barato — por um sistema caríssimo, limitado nas cores, na consistência do traço, na duração, na variedade e qualidade de utilização, desconfortável pelas tentativas de fuga aos nossos desígnios e suscitando alergias novas: ao pó, e ao zingarelho, numa problemática troca de alergias; o custo da operação poderá ser 4 a 10 vezes superior, se juntarmos ao preço das canetas os apagadores que se partem, e cujo «pano» há que substituir com alguma frequência, e a reforma dos quadros (que, entretanto, não durarão o mesmo que os de pedra natural ou artificial); há os quadros interativos; pois há, mas não são a mesma coisa: quem o diga que experimente deixar de usar lápis e papel, e passe a escrever sempre em «tablet»…

– temos boas salas de desenho, de facto — salas; estão equipadas a esmo com uns estiradores agradáveis à vista que não se adaptam bem a todos os trabalhos e tamanhos de alunos e começam a desconjuntar-se (posso um dia escrever um tratado sobre estiradores inadequados pela altura, pela relação com a cadeira, pela articulação, pelo processo de fixação da prancheta à estrutura, pela adaptação às irregularidades da base, pela consistência no fabrico, pelo sorriso e pelo penteado…), além de não servirem para trabalhar de pé e de estarem deficientemente iluminados, o que me leva a pensar que mais valia ter simples e robustas mesas de tamanho semelhante, iluminadas como deve ser: não estou a criticar os índices lumínicos que — como me explicou, condescendente, um zeloso funcionário da Parque Escolar com quem tive esta conversa — são adequados (basta descer a cortina da janela e acender a luz, fica logo tudo bom): é a forma como a luz se apresenta a quem a utiliza para traçar, para pintar, para cortar, para medir; essa forma é tanto mais adequada quanto mais forte for a luz, e dirigida de frente para o traçado; e nunca se passa nada disso, porque a luz é fornecida por armaduras de teto, e à frente de um esquadro há sempre três ou quatro sombras em competição pela perda de qualidade da visualização do boneco; predominam, de resto, as madeiras claras, agradáveis à vista e ao tato; boas de grafitar, por outro lado, e ocupando bancadas que deveriam ser de sujos: águas, diluentes, tintas líquidas, «sprays», etc.; nas paredes, em contrapartida, há poucas áreas de afixação por alfinetes;

– um espaço de ar livre coberto (isso mesmo) «abriga» campos desportivos; com chuva e vento, conjunto comum no nosso país, ficam inaproveitáveis: a chuva entra na mesma, por um engradado de peças lá no alto, a toda a volta, mas os pavimentos, sem vento ou insolação direta, não secam quando pára a borrasca;

– poderia continuar nesta toada muito mais tempo, mas não me apetece: posso já tirar algumas conclusões, e a enumeração começa a ser fastidiosa.

3. Conclusão

A forma e a função, portanto: é sobretudo isso a arquitetura. A arquitetura não é coisa de artistas, a fazer umas flores e umas formas giras, centrados tanto na composição como no umbigo. Pode ser coisa de artistas, no entanto; para que não seja mal entendido, vou dar um exemplo: na pousada da Flor da Rosa, no Crato, existe uma parede a separar a piscina do castelo; parece tontice, separar o hóspede, a banhos, daquilo que, porventura, o levou à Flor da Rosa. Não é: a parede tem um longo rasgão, longitudinal: o que a parede esconde, o rasgão revela, e emoldura. Afinal, fica a revelação. O João Luís Carrilho da Graça, arquiteto de serviço, liga à forma, e à função, e tem uma tirada artística. Mas que é uma tirada eminentemente funcional, também. Tem qualidades plásticas, e serve a função. As duas coisas não ficam separadas, e não é giro: é bonito, é adequado, e é muito boa arquitetura.

A minha escola tem coisas giras e, em geral, má arquitetura. Gosto só de falar do que entendo, e disto entendo: sou professor, tanto como arquiteto. Sinto-me confortável a falar da minha escola e da Parque Escolar na minha escola: o trabalho foi negligente, pretensioso, provinciano, caro; com a passagem dos anos, ficará ainda mais caro: afinal, o furo na conduta do gás foi mau presságio; afinal, os técnicos não percebiam daquilo, fizeram mau trabalho, facilitaram, foram descuidados… estamparam-se!

Uma colega que tem os laboratórios renovados, modernizados (e, penso, está satisfeita com isso) diz o seguinte: «preferia a escola antiga»…

António Mouzinho
(professor em atividade; arquiteto nem tanto)

2 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Se eu falasse uma linguagem atual diria: é

muito isto!

Na minha escola também há um auditório

paralelipipédico, com 125 lugares, com a porta

ao lado da zona onde ficam os palestrantes e

com uma vitrina do lado oposto onde a luz

abundante limita a visão das imagens

projetadas. Depois há uma porta pequena, ao

fundo, dizem-me que de segurança. No resto é

uma caixa fechada, desagradável, sem

ventilação, onde quem entra atrasado passa

imediatamente pela frente de quem fala para o

público. E para quem sai antecipadamente, o

mesmo. O piso era todo chão. Pelo que foi

preciso improvisar uma rampa desnivelada e

voltar a colocar chão e cadeiras por cima e

que levou a que, ao fundo, o teto esteja algo

próximo das cabeças... Quando há muitas

pessoas morre-se de calor. Se se liga o ar

condicionado para uns se sentirem agradáveis,

quem fica junto às paredes morre de frio.

Enfim, o antigo e velhinho auditório não era

pior.

Na biblioteca, na continuação do que já vinha,

com uns "inovadores" muito diligentes, temos

também uma área considerável para uns sofás

com umas mesitas com uns televisores em cima,

que a mim sempre escandalizaram, por supor,

antiquadamente, que uma biblioteca devia

bastar-se com cadeiras e mesas e livros e CDs

e DVDs e computadores e tal. Mas isto sou eu,

que também não percebo por que é que a sala

dos professores tem um televisor na parede,

que eu e outros agradecemos que se mantenha

desligado (até já desejámos que alguém o

roubasse...), e o mesmo para outro que está

colado a uma das paredes no átrio de entrada...

O texto do Colega António Mouzinho faz o

retrato adequado da coisa, e por isso o

felicito.

Não esquecer que figuras gradas da parque

escolar viam nesta arquitetura(?) um fator

importante de valorização da aprendizagem. E

assim o disseram.

Mas, também, que haviam eles de dizer?...

António Bettencourt disse...

Excelente texto.

Tirando a parte da biblioteca inundada e do auditório, aplica-se totalmente à minha escola.

E sobre a minha, muito mais havia a dizer, mas muito sinceramente, não me apetece falar de vigarices agora nas férias.

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