quinta-feira, 26 de abril de 2012

A primeira objecção da Sara

A professora Sara Raposo — uma das muitas professoras de filosofia que é exemplo de dedicação, profissionalismo e genuíno interesse pela filosofia — levantou duas objecções centrais à minha ideia de que o ensino deveria ser totalmente livre, objecções que merecem a nossa melhor atenção. Esta é a minha resposta à primeira delas.

Os responsáveis indigitados pelo Ministério da Educação para fazer programas, directrizes e exames nunca dão a cara publicamente; se dessem, defende a Sara, as coisas seriam melhores. E se as coisas fossem melhores, a minha solução radical de acabar com os exames nacionais e com o centralismo estatal perderia uma parte importante da sua motivação.

Esta ideia tem alguma plausibilidade; e muitos de nós concordaríamos que um debate público participado e civilizado sobre os mais diversos aspectos do nosso trabalho — ensinar filosofia — teria alguma probabilidade de melhorar as coisas. E se isso acontecesse, poderíamos então ter programas, directrizes e exames nacionais que todos pudéssemos aceitar, por mais que tenhamos concepções diferentes do que é a filosofia e de como deve ser o seu ensino.

Porém, há dois aspectos que derrotam este argumento.

Em primeiro lugar, nunca haverá da parte dos responsáveis ministeriais qualquer disponibilidade para discutir publicamente e de modo genuíno e civilizado ideias opostas. A capacidade para admitir a diferença radical num debate aberto e honesto é uma conquista de uma mentalidade civilizada que não existe no país; os professores só são capazes de fingir que discutem ideias quando toda a gente concorda quanto ao fundamental. Quando há diferenças profundas — precisamente quando o debate honesto é mais necessário — as pessoas abandonam a simulação do debate civilizado e passam para os jogos de poder, a esperteza saloia e a tentativa de silenciar e eliminar quem pensa de maneira muito diferente. Em Portugal não há tradições de debate académico; as pessoas não sabem fazer isso. Tudo o que conhecem é uma simulação de debate académico, quando todos concordam e quando de qualquer modo se estão nas tintas para o que estão debatendo porque são matérias abstractas e académicas que não lhes dizem realmente respeito, pessoalmente; quando se tenta debater matérias que as pessoas consideram que realmente lhes dizem respeito e quando nesse debate há posições muitíssimo diferentes das deles, o único modelo nacional de debate é o pseudodebate político, cheio de retórica, seduções linguísticas, jogos de poder, desonestidade intelectual e pessoal. Desculpa, Sara. Nós ensinamos os alunos a debater de maneira intelectualmente proba, mas a generalidade dos nossos colegas não só não sabem como tal coisa se faz, como não estão minimamente interessados em fazê-lo. Na verdade, muitos deles nem conhecem a palavra “proba”.

Em segundo lugar, imaginemos que havia mesmo um debate honesto e uma tentativa de chegar a directrizes, programas e exames nos quais todos os profissionais da área se reconhecessem. Essa tentativa seria gorada, mesmo que fosse honestamente feita. Aquando da elaboração das primeiras Orientações para a leccionação dos programas, face à iminência dos novos exames nacionais de filosofia, alguns dos responsáveis que presidiram à sua elaboração vieram depois contestá-las, como se não tivessem participado delas. Fizeram-no porque são desonestos e não aceitam as regras democráticas da tomada de decisão. Para quem, como eu e outros colegas, esteve nessas reuniões, a dose de paciência necessária para aceitar as sugestões dos colegas era gigantesca, pois quase nada do que diziam tinha a mínima relação com qualquer bibliografia académica. A concepção que estas pessoas têm da filosofia é uma conversa fiada supostamente edificante — cultura geral pouco culta — e é isso que querem nos exames, programas e directrizes. Querem-no tanto porque genuinamente é isso que pensam que a filosofia é, e também porque essa concepção de filosofia tem a vantagem, para essas pessoas significativa, de nos poupar o trabalho de estudar bibliografias complexas, sofisticadas e que exigem esforço e dedicação. De modo que o mínimo denominador comum que seria de esperar que todos os professores de filosofia aceitassem — os clássicos, como Platão, Aristóteles, Agostinho, Anselmo, Tomás, Ockham, Buridano, Descartes, Locke, Hume, Kant, etc. — nunca serão aceites por uma parte significativa dos nossos colegas, porque desprezam a história da filosofia, não gostam das complexidades abstractas do pensamento dos grandes clássicos, e preferem qualquer coisa que seja mais ou menos parecida a ler o Público todos os dias (o grau máximo de sofisticação intelectual para muitos professores). Desculpa, Sara, mas o tipo de sofisticação intelectual que ensinas os teus alunos a cultivar e a prezar está ausente da maior parte dos nossos colegas, e é contra isso que eles se rebelam, e é por isso que nunca será possível encontrar um denominador comum no qual todos nos possamos rever.

A minha conclusão é que quando as diferenças de concepções são gritantes entre os profissionais de uma área, e dado que eu defendo o direito de os nossos colegas terem as concepções que muito bem entenderem da filosofia e do seu ensino (coisa que, curiosamente, eles não fazem relativamente a mim), não há sequer a possibilidade de um mínimo denominador comum. Tudo o que podemos fazer é criar condições para que todos os professores se reconheçam no sistema que temos e se sintam bem, quer queiram ensinar numerologia e astrologia (como há alguns casos), quer queiram fazer da filosofia um comentário vago do quotidiano sociopolítico, quer queiram doutrinar os jovens para serem religiosos, quer queiram dar-lhes a autonomia para saber pensar filosoficamente por si mesmos, como tu e eu.

Repara que eu acredito genuinamente que quem não concebe a filosofia como teorização e argumentação intensa e rigorosa sobre problemas reais insusceptíveis de resolução científica, e quem não pensa que ensinar filosofia é ensinar a teorizar e argumentar com autonomia, criatividade e precisão sobre problemas filosóficos, está histórica e objectivamente errado. Historicamente errado porque o género de teorização e argumentação intensa que defendo que está no âmago da filosofia se encontra realmente nos mais reconhecidos clássicos da filosofia; e objectivamente errado porque tal concepção de filosofia e do seu ensino não está de modo algum alinhada com o que se faz nos mais importantes centros académicos do mundo nem com a bibliografia publicada nas mais importantes editoras académicas do mundo. Só que as pessoas têm o direito de estar erradas, e têm o direito de agir, como profissionais encartados pelo estado, segundo as suas crenças erradas. Não vejo o que me poderia dar a mim a legitimidade para chegar ao pé de um colega que tem as mesmas qualificações estatais que eu — ou mais — e impedi-lo de ensinar filosofia como ele muito bem entende, só porque o que ele entende não está alinhado com a bibliografia da área nem com as práticas académicas relevantes.

Se eu tiver de escolher entre impor as minhas concepções aos meus colegas e defender o direito de eles porem em prática as suas concepções — que eu considero profundamente erradas e até pueris — o meu amor pela liberdade e o meu respeito pela autonomia dos outros, em particular dos colegas, obriga-me a nem sequer hesitar e a defender a liberdade e o direito à diferença.

4 comentários:

José Fontes disse...

Caro Professor Desidério Murcho:
É com enorme prazer e proveito que ultimamente tenho lido os seus Posts neste blogue.
Oxalá que por aqui continue com essa determinação, pois quanto ao rigor e clareza das suas posições e à qualidade substancial da discussão para que nos desafia nem me atrevo a comentá-los por não querer ser redundante e também por manifesta incompetência. Este interessante blogue estava carente de um «upgrade» por se ter deixado enredar na teia estéril e dicotómica de um pretenso debate acerca das culpas do estado comatoso da nossa Educação, traduzido na versão «clubística» da discussão (luta) entre anti-eduquêses e eduquêses (ou pretensos eduquêses, pelo menos na abusiva classificação feita a alguns dos segundos pelos primeiros).
Ora, como muito bem sabe, as coisas são muito mais complexas do que essa simplista dicotomia faz crer, infelizmente para a nossa Educação.
Estou certo de que passarei de um visitante muito esporádico (que raramente comenta) a um visitante assíduo (quiçá um comentador com alguma regularidade).
Quem sabe!

P.S. Um tributo à Prof. Sara Raposo (que não conheço): visito o seu blogue diariamente e lamento não viver perto da Escola Pinheiro e Rosa para poder lá matricular o meu filho, a fazer actualmente o ensino secundário, para que pudesse desfrutar do seu ensino na disciplina de Filosofia.

Cláudia S. Tomazi disse...

Primeiro ponto: um argumento não derrota-se, eis que corresponde a aprovação ou não, em considerando como idéia entre iguais.


...nunca haverá da parte dos responsáveis...
O termo aqui utilizado substima a circunstância da inteligência de quem é responsável.

...A capacidade para admitir a diferença radical num debate aberto e honesto é uma conquista de uma mentalidade civilizada que não existe no país;...

Certamente os humildes ão de compreender que todo o esforço delibera um acto que não agrada e não fideliza a idéia de liberdade.
Apenas não lamenta-se da perda, lamenta-se também por conquistas.

Armando Inocentes disse...

"nunca haverá da parte dos responsáveis ministeriais qualquer disponibilidade para discutir publicamente e de modo genuíno e civilizado ideias opostas."

Poderá haver como houve com os Congressos do Desporto... discutiu-se, discutiu-se, e depois o governo legislou como quis. Exemplo? O Regime Jurídico das Federações Desportivas... com o Estado a intrometer-se no movimento associativo!

Cumprimentos!

Desidério Murcho disse...

Muito obrigado pelas suas palavras, José Fontes!

NO AUGE DA CRISE

Por A. Galopim de Carvalho Julgo ser evidente que Portugal atravessa uma deplorável crise, não do foro económico, financeiro ou social, mas...