sábado, 26 de março de 2011

Sobre a neutralidade educativa - 1

Os documentos curriculares de carácter nacional e os que são construídos em contexto escolar recomendam sistematica e vivamente a educadores e professores que adoptem uma atitude de neutralidade absoluta, abstendo-se, assim, de orientar os seus alunos em qualquer sentido.

Recomendação que é sobretudo vincada em áreas curriculares onde se faz referência directa a valores e que envolvem, a cada passo, opinião dos alunos. É o caso, no 1.º Ciclo do Ensino Básico, do Estudo do Meio, da Formação Cívica, da Educação Sexual...

Trata-se de uma recomendação que, em rigor e antes de mais, se revela impossível, porquanto traduz, por si só, uma opção educativa: a de se ser neutro, deixando ao outro ou aos outros uma infinita liberdade de afirmarem as suas opções.

Esclarecido este aspecto conceptual, devemos avançar mais um pouco para percebemos em relação a que aspectos devem os educadores e professores manter-se neutros e em relação aos quais não podem, de modo algum, adoptar essa atitude. O filósofo Fernando Savater ajuda-nos a perceber este último aspecto:

"É compreensível o temor face a um ensino sobrecarregado de conteúdos ideológicos, face a uma escola mais preocupada em suscitar fervores e adesões inquebrantáveis do que em favorecer o pensamento crítico autónomo. A formação em valores cívicos pode converter-se, muito facilmente, em doutrinamento para uma docilidade bem pensante, que levaria ao marasmo se chegasse a triunfar; a explicação necessária dos nossos principais valores políticos pode, também facilmente, resvalar para a propaganda, reforçada pelas manias castradoras do «politicamente correcto» (…).

Daqui que alguma «neutralidade» escolar seja justificadamente desejável, face às opções eleitorais concretas, oferecidas pelos partidos políticos, face às diversas confissões religiosas, face a propostas estéticas ou existenciais que surjam na sociedade. Terá de ser uma neutralidade relativa, sem dúvida, porque não pode recusar a consideração crítica dos temas do momento (que os próprios alunos, frequentemente, irão solicitar e que o mestre competente terá de fazer, sem pretender situar-se fora, mas declarando a sua tomada de posição, enquanto fomenta a exposição razoável das outras) ainda que deva evitar converter a sala de aulas numa fastidiosa e logomaquia sucursal do Parlamento. É importante que na escola se ensine a discutir mas é imprescindível deixar bem claro que a escola não é um foro de debates nem um púlpito.

Não obstante, essa mesma neutralidade crítica corresponde, por sua vez, a uma determinada forma política, perante a qual não é possível ser neutral no ensino democrático: refiro-me à própria democracia.

Seria suicida que a escola renunciasse a formar cidadãos democratas, inconformistas mas em conformidade com o que o modelo democrático estabelece, inquietos pelo seu destino pessoal mas não desconhecendo as exigências harmonizadoras do público. Na desejável complexidade ideológica e étnica da sociedade moderna (…) fica a escola como o único âmbito geral que pode fomentar o apreço racional por aqueles valores que permitem a convivência conjunta aos que são satisfatoriamente diversos. E essa oportunidade de inculcar o respeito pelo nosso mínimo denominador comum não deve, de modo algum, ser desperdiçada.

Não pode nem deve haver neutralidade, por exemplo, no que corresponde à recusa da tortura, do racismo, do terrorismo, da pena de morte, da prevaricação dos juízes ou da impunidade da corrupção em cargos públicos, nem tão-pouco na defesa das protecções sociais da saúde ou da educação, da velhice ou da infância, nem no ideal de uma sociedade que corrija o mais possível o abismo entre opulência e miséria. Porquê? Porque não se trata de simples opções partidárias mas sim de benefícios da civilização humanizadora que já não é possível renunciar sem se incorrer em concessão à barbárie.

O próprio sistema democrático não é algo natural e espontâneo nos seres humanos, mas sim algo conquistado, através de muitos esforços revolucionários no campo intelectual e político: portanto, não pode ser dado como certo, mas deve ser ensinado com a maior persuasão didáctica compatível com o espírito de autonomia crítica. A socialização política democrática é um esforço complicado e resvaladiço, mas irrenunciável (…).

A recomendação racional de tais valores não deve ser uma mera litania edificante que, no melhor dos casos, acabará por aborrecê-los. Será preferível mostrar como conseguiram ser historicamente imprescindíveis, e o que ocorre onde, por exemplo, não há eleições livres, tolerância religiosa ou os juízes são venais. Seria absurdo mostrar às crianças as falhas do mundo em que vivemos (…) [sem lhes inspirar] uma prudente confiança nos mecanismos previstos para emendá-las."

Referência completa: Savater, F. (1997). O valor de Educar. Lisboa: Edições Presença (A obra foi republicada pelas Edições Dom Quixote em 2006).

1 comentário:

maria joão carrilho disse...

Mostrar o mundo como ele é.O aluno há-de ser capaz de o interpretar e escolher.

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