domingo, 6 de junho de 2010

QUE TERÁ ACONTECIDO? (2)


Havia também o Reis Costa, que mencionei no início mas de que só agora falo, porque era um professor simultaneamente fascinante e terrível. Detestava, à primeira vista, certos alunos (os gordos, os ricos, os que lhe pareciam exageradamente pimpões e protegidos pelos caprichos dos deuses) e amava, também à primeira vista e de modo ostensivamente parcial, os menos protegidos. Quando concedia a sua benesse, fazia-o incondicionalmente e distribuía favores, chovesse ou fizesse sol. De modo igualmente radical, espargia a sua aversão um pouco arbitrária. Mas era susceptível de “conversão”: um gesto de inesperada independência ou integridade da parte do aluno até aí detestado provocava no Reis Costa uma reviravolta espectacular, ruidosa e quase dostoievskiana. Abraçava o aluno (“Rapaz honesto! Rapaz sério! Bravo!”) e tomava-o logo sob sua protecção. E concedia-lhe justiça, mesmo que lhe não fosse possível conceder amizade. Exibia, com fulgor e imparável sedução, um saber literário vivo, empolgante, multifacetado, sôfrego, vital – e comunicava-nos, quase instantaneamente, o desejo de irmos ler o Oliveira Martins, o Antero, o Régio, o Pessoa... Psicólogo arguto e diabolicamente bem informado, perscrutava-nos com uma avidez que nos deixava embaraçados e quase paralisados. Mas logo adoçava a sondagem, mudando abruptamente de agulha e falando-nos, com minúcia, densidade e encanto, da melancolia do Oliveira Martins, ou dos tumultos interiores do Antero. Nele, a literatura era vida, mas vida ali ao pé, fazendo-se à nossa frente e não remetida ao pó dos compêndios. Assim vivíamos, com ele, as vidas cheias do Tolstoi, do Anatole, do Stendhal, de tantos outros. E era também ele – do lado do liceu oficial porque, do lado do ensino particular, o Rola Pereira, amigo de Pessoa e Sá-Carneiro, encarregava-se disso – quem nos ia iniciando nos bardos do primeiro e do segundo modernismos...
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O Reis Costa foi meu professor de Francês e só me vendeu mercadoria portuguesa fora das aulas. Mas, como professor de Francês, quantas aulas fingiu que não dava, “substituindo-as” (fechando janelas e pedindo segredo cúmplice) por contar-nos o último filme que vira no Scala ou no Gil Vicente, com a condição de a narração ser feita... em Francês! Mordíamos a isca, sôfregos de ouvir a história: o Francês não era embaraço, na boca daquele mestre fluente e sedutor. Assim nos íamos fazendo também fluentes, um pouco como quem brinca!

Mas o festim, o festim mesmo – foi o Cardigos dos Reis, que nos apareceu, no sétimo ano, em vésperas de universidade, a ensinar-nos ciências geográficas, isto é, o Universo. O Cardigos era a majestade, a austeridade, a precisão, a sedução intelectual, o porte hierático, a ironia, o vigor da palavra – personificados. Expunha com uma espécie de força displicente, abrindo mundos, com a energia da palavra fortemente recortada e atraindo-nos com um saber preciso e aguçado, traçado de sarcasmo não corrosivo, que nos deixava a água na boca de uma sugestão de que o melhor estava ainda por contar... nas aulas seguintes. Sabia ser contundente, mas era também generoso. Lembro-me de, durante uma prova escrita de um exame de Biologia, nos ter vindo rubricar as páginas sobre que debitávamos, furiosamente, o nosso saber. Rubricou e, arqueando a sobrancelha contundente, foi logo dizendo: Agorra é que é debitarr palavrrras exdrrrúxulas...” Tinha, para além de tudo, a sedução de ter estado preso, o que, aliás, desdramatizava. Demolia, com brio, o livro de Geografia adoptado, da autoria do Boléo (que era, efectivamente, uma vergonha) e propôs, com coragem afrontosa, que usássemos o compêndio do Álvaro de Moura (o Boléo era, para cúmulo, o Director dos Serviços de Educação e deve ter ficado pior do que uma barata). O Cardigos intimidava, mas seduzia ao mesmo tempo, e este quente-frio, manipulado com mestria e estilo impecáveis, tornava-se irresistível. Olhávamos para o Cardigos como para um Deus inesgotável e, antecipando o futuro universitário, só acalentávamos um projecto: sairmos daquele templo do saber iguaizinhos ao Cardigos!

Penso nisto tudo, naqueles tempos de crescimento interior, de aquisição voraz de conceitos e de emoções, em que chegávamos à universidade armados até aos dentes, por via de um ensino entusiasta e comunicante, oriundo de mestres competentes, intensos e cativantes e...leio agora os jornais e tento descodificar o desastre que se nos patenteia – e pergunto: quando começou a derrapagem? Porque não é possível, dado o panorama que se nos oferece, que tudo isto seja de origem recente! Que o professor tenha assim sido destronado dos píncaros onde era maximamente visto até este anonimato humilhante e esterilizante... é difícil aceitar que isto tenha acontecido da noite para o dia. O professor existia poderosamente, era um senhor no conceito da sociedade, tinha visibilidade fundamentada num carisma, num saber e num actuar que nos captavam o olho e a imaginação. Ou serei eu que sonho acordado? Julgo que não.

Leio os jornais, as revistas, as entrevistas, mergulho num entrechocar de argumentos e de razões e de explicações – e fico céptico. Acho que a sondagem profunda não está ainda feita. Há culpas grandes de um lado e do outro, há coragens de ver e de agir que não foram assumidas. Derrapou-se muito, derrapou-se há muito e derrapou-se em profundidade. Convidem-se os professores a associar-se ao exame necessário, na busca sincera do momento em que a queda começou. Entre os que peremptoriamente acusam – de um lado e do outro – e visivelmente gostam de acusar, noto um discurso altaneiro, impregnado de certezas que me perturbam. Como se pode fazer investigação séria, seja do que for, quando se é tão invulnerável à dúvida e ao cepticismo? Nunca, na história do conhecimento humano, se avançou apoiado no dogma e na certeza. O cepticismo, no reino do conhecimento, está para além dele ... No teor de certezas que se atiram frequentemente à cara dos ministros (ou dos professores, em sentido contrário...), como se fossem pedras, gostaria de ver, aqui e ali, a sombra de uma dúvida, o estremecer de uma incerteza. Bom começo isso seria, para uma sondagem mais fecunda. Por isso, volto à minha pergunta: que terá acontecido?

P.S. Estou perfeitamente consciente de que estive a falar de um ensino de outros tempos, que se fazia dentro de um regime político inaceitável, que enchia o referido ensino de coisas indigeríveis: o livro único, o compêndio de história do Matoso, a Mocidade Portuguesa, a disciplina de Organização Política e Administrativa da Nação, etc. etc. Que, apesar disso, dessa enorme obstrução, uma certa e indiscutível qualidade e carisma prevalecessem – é o que me deixa perplexo. Que teria acontecido? Acho que, além do mais, a qualidade insigne de tantos professores achava meio de se sobrepor, tantas vezes, à monstruosidade do regime e dos seus apoderados. Havia um bom ensino, apesar de.
Eugénio Lisboa

3 comentários:

Anónimo disse...

Não sou professor, mas fui aluno. Da minha primária (1980) ao secundário e complementar (1992) confesso que encontrei professores igualmente "entusiastas" do que explicavam e é destes que guardo melhor memória. Os meus piores professores foram no entanto já na Universidade. Que sendo pública e cheia de aclamadas virtudes estáva refém de compadrios e "clubes de amigos" onde o valor e qualidade eram segundas medidas.
Penso que começou a descambar em 1990, nas grandes universidades públicas com milhares de formados em educação para uma população que já então não crescia e que se encontrava em exodo para o litoral... Acho que foi aí.
João Silva

Anónimo disse...

Então como agora... havia cada nódoa! JCN

Anónimo disse...

Ai! se eu fosse contar o que, nos anos cinquenta,se passou na minha Faculdade pelo que respeita a certos aleijões morais do respectivo corpo docente! Que Letras... aquelas! JCN

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