domingo, 2 de maio de 2010

Manifesto para a Educação da República

Transcrevo o Manifesto para a Educação da República, que foi em 2002 entregue ao Presidente da República (Jorge Sampaio), assinado por cerca de 20 000 cidadãos, e que foi referido no programa "Plano Inclinado" da SIC-Notícias por Guilherme valente. O manifesto encheu, quando saiu, as primeiras páginas do "Público" e do "Diário de Noticias" mas foi, infelizmente, ignorado. Um exemplo das reacções do "eduquês" encontra-se neste texto.

"Todos os estudos nacionais e internacionais sobre a educação dos portugueses convergem para a conclusão incontroversa de que a República está a educar mal os seus filhos. É essa a razão fundamental por que os portugueses continuam a não ser capazes de produzir a riqueza que consomem. É ainda por essa razão que Portugal se está a afastar dos padrões civilizacionais dos países com quem decidiu partilhar um futuro comum.

Os países desenvolvidos renovaram os seus sistemas de educação e de formação profissional em pontos de viragem da sua história. Portugal não seguiu esse exemplo, nem quando descolonizou, nem quando passou a integrar a Comunidade Europeia. Em vez da intervenção profunda e coerente que então se impunha, os sucessivos governos optaram por encarar os problemas educativos à medida que surgiam, envolvendo-nos numa densa teia de interesses e irracionalidades da qual não conseguimos ainda desenvencilhar-nos.

Abriu-se a escola a um maior número de crianças, como era a obrigação dum regime democrático. Mas mesmo esse sucesso é mais aparente do que real, já que somos o país da comunidade com a maior taxa de abandono escolar. Por outro lado, os estudantes que resistem ao abandono recebem, de um modo geral, uma educação muito deficiente a preços excessivamente elevados. Isso faz com que Portugal seja hoje um dos países da União que proporcionalmente mais gasta com a educação e, ao mesmo tempo, aquele que piores resultados obtém. Assim, a melhoria das condições económicas e sociais que foi conseguida em condições bastante favoráveis corre o risco de se perder, desbaratando-se uma oportunidade que dificilmente se repetirá.

Além disso, a indevida referência à democracia na designação do sistema irracional de gestão imposto pelo Estado às escolas e, em particular, às universidades, desacreditou a verdadeira democracia, passando os cidadãos a associá-la com a ignorância, a demagogia, o egoísmo e, sobretudo, com a indisciplina e a irresponsabilidade.

Portugal vive presentemente momentos de ansiedade perante o desmoronar de grandes expectativas nacionais. Os portugueses julgaram — alimentou-se-lhes esse sonho! — que podiam aceder sem esforço aos elevados padrões civilizacionais dos países mais desenvolvidos da Europa. Ao verificar que isso não é verdade, sentem-se defraudados e cépticos.

De um modo geral, o sistema de ensino e de formação profissional não fornece aos portugueses as ferramentas intelectuais que lhes permitiriam tirar proveito das enormes oportunidades de bem-estar que as sociedades pós-industriais oferecem à humanidade e evitar os riscos a elas inerentes.

Ao integrar a União Europeia, Portugal mergulhou num grande espaço económico onde o conhecimento é o principal factor de desenvolvimento. Não sendo menos dotados do que os outros povos, podemos atingir graus de desenvolvimento equivalentes se for proporcionada educação semelhante. Podemos ser um país mais rico se estivermos dispostos a suportar o esforço intelectual intenso e prolongado que é actualmente necessário para adquirir, aplicar e criar conhecimento, muito particularmente o conhecimento científico.

Por isso, é urgente mobilizar as instituições e os cidadãos para a grande batalha por um sistema educativo que possa contribuir para o progresso da sociedade portuguesa. Em particular, é preciso mobilizar as elites, recorrendo aos portugueses formados em contextos educativos de maior exigência intelectual e profissional, que estarão certamente dispostos e motivados para dar o seu contributo ao esforço decisivo que pode tornar Portugal uma comunidade informada, qualificada e empreendedora.

Neste quadro, apelamos ao senhor Presidente da República para que mobilize para a batalha inadiável da educação as instituições e os cidadãos, o Governo e a Assembleia da República, as escolas e as associações científicas, profissionais, empresariais e sindicais.

Problemas concretos tais como os objectivos e a articulação dos vários graus de ensino, a avaliação do desempenho dos estudantes, dos professores e das escolas, o apoio aos estudantes, os currículos e a acreditação dos cursos e das instituições, a qualificação académica e profissional, a formação inicial e continuada, o acesso ao ensino superior, o financiamento e a gestão das escolas, em particular das universidades, e o impacte da escola na inovação e na produtividade têm de passar a ser encarados em conjunto, de um modo coerente.

Solicitamos ao senhor Presidente da República que utilize os meios constitucionais ao seu dispor para promover a consciência e o esforço convergente dos competentes órgãos de soberania e dos cidadãos na construção de um sistema educativo que, à semelhança do que acontece noutras sociedades, forme intelectualmente e qualifique profissionalmente os Portugueses. Para que possamos ser, finalmente, o país por que todos ansiamos."

4 comentários:

Ruben David Azevedo disse...

Reflexão interessante, ainda que falha de medidas concretas. Aborda vagamente alguns aspectos da educação como a avaliação do desempenho, mas um manifesto digno desse nome, sobretudo se subscrito por individualidades com autoridade na área, deveria conter um plano estruturado. Claro que este manifesto não era dirigido ao governo, mas ao PR cujo único contributo possível seria o de consciencializar e sugerir.
Continuo a pensar que a educação em Portugal está enferma, sobretudo depois de uma série de aparentes reformas postas em prática pelo actual governo que tiveram o condão de a nivelar por baixo. Uma espécie de fervor estatístico associado a um fervor universalista contaminado pela ideologia, está a conduzir o ensino público em Portugal ao facilitismo, à pobreza de métodos e conteúdos, à total falta de humanidade no sentido de integral formação do ser humano como entidade plural. Por outro lado, a classe docente é cada vez mais pobre e padece da cada vez maior precariedade laboral. Os professores já não são "mestres", mas meros burocratas a quem é pedida a mecânica aplicação de métodos e programos igualmente pobres, emanados por um cada vez mais centralizado Ministério da Educação.
Obrigado pela atenção
Excelente blog.
Ruben Azevedo
http://cenaculodofilosofo.blogspot.com

Freire de Andrade disse...

Obrigado por divulgar este importante texto. Na altura da sua publicação não lhe dei a devida atenção (talvez por os filhos já não andarem na escola e os netos ainda não, puro egoísmo, portanto). Mas depois de assistir ao programa Plano Inclinado em que o Professor Guilherme Valente o referiu, fiquei com imensa curiosidade. Ainda bem que tenho agora acesso ao documento.

Rui Baptista disse...

Das coisas que mais confusão me fazem é o papel assumido pela Fenprof nesta conjuntura: atrelar-se a este manifesto, que eu definiria como uma última boia de salvação de um ensino em verdadeiro esbracejar de náufrago aflitivo.

Pior do que isso. Depois de criticar o manifesto oferecer-se, com um discurso de sindical por "excelência" de arrastamento de massas, qual raposa esfaimada para tomar conta do galinheiro...

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Que o dever imediato por atividade: é causa.


Explico - posto que padrões denominar-se-á seguindo o método científico da chamada exigência intelectual.


Este, disponibilizado na integra por recurso de captação emergente.

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