sexta-feira, 14 de março de 2008

Mecânica quântica numa perspectiva diferente

Mais um post convidado de Luís Alcácer.

A teoria quântica é a teoria mais exacta da história da ciência. Explica o quadro periódico dos elementos e a razão pela qual as reacções químicas acontecem. Dá previsões exactas sobre a operação dos lasers e dos microchips e explica a estabilidade do ADN.

Para o cidadão comum, a teoria quântica é algo de misterioso. Os seus conceitos têm sido comparados à filosofia oriental e usados para explorar os segredos da consciência, do livre arbítrio e do paranormal. Cita-se o princípio de incerteza de Heisenberg, como o arauto do fim do determinismo. Os pós-modernos rejubilam pela subjectividade da realidade física. O adjectivo quântico torna-se sinónimo de poder mágico, como por exemplo, na chamada medicina quântica [i].

Embora de utilização rotineira por muitos químicos e físicos, a mecânica quântica é, de facto, uma teoria não intuitiva, difícil de explicar e de entender sem recorrer ao formalismo matemático, prestando-se a várias interpretações diferentes. A interpretação mais comum é a interpretação da escola de Copenhaga, devida aos seguidores de Bohr. Desde o início posta em causa por Einstein e pelo próprio Schrödinger, acabou por prevalecer.

Que problemas tem ainda a mecânica quântica?

Um dos problemas consiste em pretender usar indevidamente a teoria quântica no seu formalismo mais elementar, apenas aplicável a sistemas isolados e como um todo. Os sistemas reais, como átomos ou moléculas, são sistemas de muitas partículas, cuja individualidade é questionável. Os electrões num átomo ou numa molécula não são partículas individuais identificáveis. O seu comportamento é, talvez, melhor descrito como ondas que interferem umas com as outras.

O problema da dualidade onda-partícula está mal colocado. Einstein tinha razão ao dizer que era um disparate considerar duas descrições, um de onda e outra de partícula, para uma única realidade. A de partícula nitidamente não serve, pois há muitos fenómenos que contradizem essa hipótese.

É certo que actualmente se podem ter interpretações da teoria quântica logicamente aceitáveis, baseadas na descoberta e aceitação que ocorreu no período de 1975 a 1982, do efeito de descoerência, que é responsável por destruir os efeitos quânticos que, em geral, se perdem nos sistemas macroscópicos, apresentando assim um comportamento clássico.

É claro que a mecânica quântica tem a forma que tem por razões históricas. Foi assim que foi sendo criada, ao longo das três primeiras décadas do século XX. Certamente que a evolução poderia ter sido diferente, provavelmente chegando a conclusões coerentes com as actuais.

Quando foi descoberta a supercondutividade em 1911, por Kamerling Onnes [ii] ninguém fazia a mínima ideia de que tipo de fenómeno se tratava, e portanto ninguém iria descobrir que se tratava de uma manifestação macroscópica de um efeito quântico. Se tivesse sido medido, por exemplo, o fluxo magnético gerado num anel de material supercondutor por onde se fizesse passar uma corrente eléctrica, que persiste, mesmo quando se deixa de aplicar uma tensão, poderíamos observar que o fluxo magnético era quantizado.

Robert Laughlin [iii], defende, no seu livro que algumas das questões da mecânica quântica, difíceis de entender decorrem da natureza EMERGENTE [iv] dos fenómenos quânticos macroscópicos.

Robert Laughlin não é o único a defender uma perspectiva diferente da actual para a mecânica quântica. Carver Mead [v] é ainda mais radical no seu livro "Colective Electrodynamics" [vi]. Motivado pela ideia da simplificação e unificação do conhecimento, parte da natureza quântica da matéria para deduzir as leis da electrodinâmica, baseando-se em resultados experimentais que mostram como os electrões interactuam entre si. Carver Mead considera que é possível reformular os conceitos da mecânica quântica de um modo claro e compreensivo, a partir dos resultados de experiências relativamente simples.

As experiências de que Carver Mead fala são as mesmas que Robert Laughlin considera como geradoras dos conceitos mais fundamentais da mecânica quântica. São as manifestações quânticas macroscópicas que têm nitidamente carácter emergente.

A percepção correcta da realidade física difere de outras percepções erradas uma vez em que se torna mais clara à medida que a precisão das medidas aumenta. Através da precisão expõe-se a falsidade. O que se mede exactamente, como funciona o aparelho, como se analisam os erros, quais os factores incontroláveis que determinam o limite da reprodutibilidade, são mais importantes do que o conceito subjacente. A boa ciência tem de ser fundamentada em boas experiências. Assim, por exemplo, quando se fala de quantidades ou constantes universais devem realmente referir-se as experiências que as medem com maior precisão.

Um conjunto de experiências de elevada precisão tem na ciência um grande significado. Há uma ou duas dezenas de experiências desse tipo, dependendo de como se contam, e são todas veneradas [vii]. A maior parte dessas experiências só são conhecidas dos especialistas. Os valores das constantes universais actualmente recomendados são baseados nelas.

O quantum de fluxo magnético, Φ0=h/2e, pode ser medido com grande precisão pelo efeito de Josephson [viii].

KJ = 2e/h = 4,83597891(12) x 1014 s-1 V-1

A constante de Josephson [ix], KJ, (inverso do quantum de fluxo) relaciona a carga elementar e com a constante de Planck h, e pode ser medida com a precisão de 1 em 108 (um em cem milhões). O seu valor é independente do tamanho, da forma, ou composição do anel, desde que seja de material supercondutor (do tipo II) e esteja abaixo da temperatura crítica.

Quando combinada com a medição da constante de von Klitzing (efeito de Hall quântico [x]),


RK = h/e² = 2,58128056(12) x 104 ohms

dá os valores mais precisos até agora, da constante de Planck.


h = 6,62606896(33) x 10-34 J s

Isto é notável, uma vez que a constante de Planck está geralmente associada ao comportamento dos sistemas microscópicos, enquanto que o fluxo magnético num supercondutor e o efeito de Hall quântico são fenómenos colectivos associados a um grande número de partículas.

Outras grandezas igualmente fundamentais podem também ser determinadas a partir de experiências simples. A constante de Ridberg, que caracteriza a quantização dos comprimentos de onda emitidos pelos gases atómicos rarefeitos, e que são a base dos relógios atómicos, é conhecida com uma precisão de 1 em 1014 (um em cem milhões de milhões).


R = 10 973 731,568 527 (73) m-1

A carga elementar pode ser determinada com uma experiência de electroquímica:


e = 1,602 176 487(40) x 10-19 C

Estes valores mostram que se podem medir grandezas básicas que descrevem a realidade física com uma precisão enorme, sem lidar directamente com elas.

Se é assim, porque não partir destes fenómenos relativamente fáceis de compreender para edificar a teoria quântica, que levanta tantos problemas de compreensão e de interpretação, embora o seu edifício formal seja extremamente robusto e coerente?

Algum leitor se habilita?



Luis Alcácer

[i] Basta fazer uma busca no Google para encontrar vários sites, até em Portugal. por ex.: http://www.quanticamed.com/, O seguinte é um site que denuncia essa fraude: http://www.barrettdorko.com/articles/quantum.htm

[ii] Kamerlingh Onnes, observou, sem o esperar, que à temperatura de 4,2 K (-268,95 ºC) a resistência eléctrica, da amostra de mercúrio que estava a estudar, desaparecia abruptamente. Nas décadas que se seguiram, a supercondutividade foi observada em muitos outros materiais, mas só foi cabalmente explicada em 1957, por John Bardeen, Leon Cooper, e Robert Schrieffer que, pela sua explicação, receberam o Prémio Nobel de Física em 1972.

[iii] Prémio Nobel de Física de 1998, juntamente com Horst Störmer e Daniel Tsui por terem descoberto e explicado o efeito de Hall quântico fraccionário.

[iv] O conceito de emergência surge associado à complexidade. Já Aristóteles escrevia na Metafísica, que "o todo é algo de diferente e acima das suas partes, e não apenas a soma de todas elas.

[v] Professor emeritus de Engenharia e Ciência Aplicada no Caltech.

[vi] Carver Mead, "Colective Electrodynamics", The MIT Press (2002)

[vii] http://physics.nist.gov/cuu/Constants/index.html

[viii] O efeito de Josephson consiste no fluir de corrente eléctrica em dois supercondutores acoplados, separados por uma película muito fina de material isolador.

[ix] Os números entre parêntesis são a incerteza.

[x] Efeito de Hall quântico é a versão quantizada (com valores discretos) do efeito de Hall, que consiste na observação de uma diferença de potencial (voltagem) entre dois pontos de um material semicondutor por onde flui uma corrente eléctrica, gerada por um campo magnético aplicado perpendicularmente á direcção da corrente.

4 comentários:

paulu disse...

«Algum leitor se habilita?».

Bom, eu decerto que não, mas diria que quem pergunta coisas assim desafiou-se a responder. :)

E obrigado por mais este excelente artigo.

João Moedas Duarte disse...

Foi um prazer ler este artigo. Uma abordagem clara de um assunto dificil.

Cumprimentos e que venha a continuação..

Anónimo disse...

Este autor é no mínimo estranho.

Se por um lado metade do artigo é de fraca qualidade, com pouco conteúdo informativo e dá de novo uma perspectiva falaciosa da MQ, a segunda metade é francamente boa por abordar assuntos altamente relevantes para a Física actual e relacionados com o tema. A quantização do fluxo é realmente algo de extraordinariamente importante a nível conceptual e prático/experimental.

Infelizmente a primeira parte deixa muito a desejar.

«É certo que actualmente se podem ter interpretações da teoria quântica logicamente aceitáveis, baseadas na descoberta e aceitação que ocorreu no período de 1975 a 1982, do efeito de descoerência»

Mais uma vez, a descoerência não traz nada de relevante. Não resolve qualquer problema, não faz qualquer previsão. Na melhor das hipóteses deve ser considerada como uma questão de gosto.

Contrariamente ao que o autor proclama/proclamou não é aceite como a resolução do problema da medida.

Quanto à frase «Cita-se o princípio de incerteza de Heisenberg, como o arauto do fim do determinismo. Os pós-modernos rejubilam pela subjectividade da realidade física.»

De certo o autor está (ou deveria estar) familiarizado com o "free will theorem" http://arxiv.org/abs/quant-ph/0604079 e com os resultados experimentais mais recentes (ainda não pude averiguar da sua correcção) publicados em http://arxiv.org/abs/0704.2529

A descoerência não retira a estranheza de qualquer um destes dois resultados. Na realidade acaba por nem ter um objectivo algum.

P.S.: Ainda continuamos à espera da resolução pelo autor do problema da partícula quântica no potencial gravítico uniforme visto a matemática da mecânica quântica ser tão mais simples do que a da mecânica clássica.

Anónimo disse...

A propósito deste ótimo artigo...

Feliz Dia de falar como um físico!

"No dia do aniversário [sic - ah, esses físicos...] de Albert Einstein, você está convidado(a) a mostrar seu melhor jargão científico e sua melhor expressão de inteligência.

"Reuna-se [sic - então, né?] com amigos(as) em frente a prédios de Ciências Sociais ou Biológicas e espalhe confusão intelectual com discussões incompreensíveis."

Aqui: http://efeitoazaron.com/2008/02/21/dia-de-falar-como-fisico-2/

E aqui: http://ndimensional.wordpress.com/2008/03/14/020/

Mais exemplos de "como falar como um físico" níveis básico, intermediário e avançado: http://ndimensional.wordpress.com/2008/02/27/013/ , http://ndimensional.wordpress.com/2008/02/28/014/ , http://ndimensional.wordpress.com/2008/03/04/016/ .

(Os filósofos podíamos fazer o "dia de falar como um pós-modernista francês"... não tinha tanta graça, afinal não teria conteúdo *mesmo*, mas se a idéia for apenas espalhar terrorismo intelectual... =D)

Abs
Alex.

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