quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Histórias da evolução: linguagem

O nosso conhecimento da evolução do cérebro humano deve-se essencialmente a estudos comparados da neuroanatomia de espécies extintas. Pouco se sabe sobre a evolução da especialização do cérebro humano e das concomitantes capacidades comportamentais e cognitivas únicas embora se saiba que durante milhões de anos, a evolução do comportamento humano acompanhou a encefalização. Mas num ponto muito recente da História, que alguns situam há cerca de 50 mil anos, parece ter acontecido uma súbita explosão de criatividade e inovação, não acompanhada por evolução anatómica, que se traduziu no aparecimento de novas ferramentas e objectos artísticos cuidadosamente esculpidos ou pintados.

O que despoletou esta alteração radical no comportamento humano continua objecto de acesas discussões que, na minha opinião, apenas a genética molecular poderá ajudar a elucidar.

Há uns anos li o livro «O despertar da cultura humana» escrito pelo paleoantropólogo Richard Klein em colaboração com Blake Edgar. Richard Klein, da Universidade de Stanford, desenvolve no livro a hipótese de que uma modificação genética teria acontecido há cerca de 50 mil anos em populações da África Oriental que as transformou em inovadores criativos. Dotados de novas capacidades técnicas e cognitivas assim como de novas formas de interacção social e sentimento artístico, estes humanos teriam saído de África e num curto período de tempo suplantaram os descendentes da primeira vaga «Out Of Africa», como os neandertais na Europa e outras populações não modernas noutros pontos do planeta.

Klein sugere que a explicação mais plausível para a alteração de comportamento que aponta é uma mudança biológica que promoveu o «cérebro moderno». Como esta alteração comportamental não foi acompanhada de modificações morfológicas do cérebro, Klein considera que afectou as capacidades cognitivas e não a estrutura do cérebro. Para Klein, uma mutação neurológica é a hipótese mais plausível para explicar o desvio nas evoluções neuroanatómica e comportamental humanas. Klein sugere que a modificação neurológica pode ter sido o aperfeiçoamento da linguagem moderna, hipótese corroborada por um artigo de Svante Pääbo publicado na Nature no mesmo ano em que o livro de Klein viu o prelo.

Pääbo estudou a história evolucionária do FOXP2 comparando entre si as sequências do gene em pessoas de todo o globo e comparando o gene humano com as sequências encontradas no rato, no chimpanzé e em outros primatas. O estudo indicou que o FOXP2 permaneceu basicamente inalterado durante a evolução dos mamíferos mas sofreu uma mudança radical nos seres humanos, depois de a linha dos hominídeos se ter separado da linha que evoluiu nos chimpanzés.

As mudanças indicam que o gene tem estado sob forte pressão evolucionária nos seres humanos. A forma humana do gene, com as duas modificações cruciais, também parece ter-se tornado universal na população, sugerindo que confere alguma vantagem essencial. De facto, um gene praticamente idêntico em toda uma espécie acontece apenas quando uma nova versão de um gene confere uma vantagem tão grande que se dissemina por toda a população. No artigo de 2002, Pääbo e colaboradores estimaram que a disseminação ocorreu nos últimos 200 mil anos.

Mas a nova descoberta de Pääbo de que as mutações «humanas» do FOXP2 acontecerem antes de as linhagens Neanderthal e Sapiens se terem separado, há cerca de 370 mil anos, sugere que se de facto a linguagem e capacidades vocalizadoras foram um trunfo evolucionário, essa carta foi lançada umas centenas de milhares de anos antes do proposto por Klein.

Mas nem todos concordam com este aparecimento da linguagem assim como num estalar de dedos. Chomsky e colaboradores, por exemplo, sugeriram que muitos aspectos da linguagem humana são partilhados com os modos de comunicação de outras espécies e que apenas alguns pontos específicos são um produto (relativamente) recente da evolução do cérebro humano e são únicos ao Homo sapiens. Stephen J. Gould argumentava ser a linguagem um sub-produto do processo evolucionário e que boa parte do que nos distingue dos restantes animais são consequências colaterais do processo de encefalização.

De facto, o que nos torna diferente das outras espécies animais são as capacidades possibilitadas por um cérebro único no reino animal. O bipedalismo teve um papel crucial na expansão do neocortex humano já que não só a posição erecta possibilita mais estímulos visuais - o que implicava o desenvolvimento de uma maior cérebro necessário para processar este aumento de informação - como a maior versatilidade de movimentos implica uma expansão cortical, nomeadamente da área de Broca, para controlar estes novos movimentos. As áreas de Broca e Wernickes são os principais centros de linguagem humanos. Mas um estudo de 2006 publicado na Nature NeuroScience (reservado a assinantes) descreve que os macacos rhesus usam estas áreas no tratamento das vocalizações. Os autores propõem que os mecanismos neuronais necessários à evolução da linguagem humana estavam presentes no ancestral comum de humanos e restantes primatas.

Por outro lado, como já referi, até recentemente parecia que o homem moderno, isto é, não só moderno anatomicamente mas moderno em termos de comportamento, só apareceu há aproximadamente 50 000 anos, mas uma série de descobertas tem indicado que esta capacidade cognitiva estava presente há pelo menos 100 mil anos e parece ter evoluido com o próprio homem. De facto, a datação dos artefactos encontrados em Skhul indica que as duas conchas aí encontradas têm mais de 100 mil anos e que as de Oued Djebbana podem ter 90 mil anos.

«O nosso artigo suporta o cenário que humanos modernos em África desenvolveram comportamentos que são considerados modernos muito cedo, de forma que estas pessoas são não apenas biologicamente modernas mas igualmente modernas cultural e cognitivamente, pelo menos num certo grau» afirmou à World of Science um dos cientistas responsáveis pelo trabalho, Francesco d’Errico do Centre Nationale de la Recherche Scientifique, CNRS, em Talence, França.

Marian Vanhaeren, a outra cientista responsável, também do CNRS refere que «Comportamento mediado simbolicamente é um dos indicadores da modernidade incontestados e aceites universalmente. Uma característica chave de todos os símbolos é que o seu significado é atribuído por convenções arbitrárias socialmente construídas que permitem o armazenamento e transmissão de conhecimento».

Na realidade, se considerarmos as capacidades artísticas e os objectos simbólicos manufacturados pelo Homo Erectus de Bilzingsleben, esta modernidade cultural e cognitiva não surgiu apenas em África e data de há pelo menos 300 mil anos. Assim, se admitirmos que a evolução da linguagem foi o catalisador de um novo comportamento social/simbólico, a presença de um FOXP2 «humano» no Neanderthal é consistente com artefactos com centenas de milhares de anos cuja função última parece ter cariz simbólico e não prático.

3 comentários:

Unknown disse...

Mais um post excelente!

Esta série sobre a evolução humana é mesmo cinco estrelas :)

Algo que gosto muito é a forma como o post explica sem explicar como funciona a ciência, como vamos reconstruindo o puzzle juntando pacientemente a peças e como às vezes uma nova peça muda a imagem global que íamos construindo na nossa cabeça.

Também acho que a genética molecular vai dar uma ajuda inestimável. estou com imensa curiosidade para saber o que se passa com o GLUD2 no Neanderthal...

Armando Quintas disse...

Interessante post no entanto ficam no ar algumas questões?
Realmente o ser humano ou os seus antepassados vieram de africa unicamente ou evoluiram em vários pontos do mundo ao mesmo tempo?
Se vieram de africa porque foi em africa que evoluiram? O hominidio do qual sairam não existia noutro sitio, porquê?
Quanto à linguagem temos que atender vários aspectos, a cerebralização e esta processo-se a par da evolução do pibedismo, do aumento da massa encefálica e da utilização do fogo e redução do esforço fisico do maxilar, a linguagem surgiu porque era necessária, se o homem não vivesse em comunidade e não necessitasse de comunicar como necessita ela ou não existia ou seria diferente.
A linguagem complexifica-se à medida que o homem evolui e precisa de encontrar formas de descrever o mundo e de o explicar, formas estas cada vez mais complexas.

paulu disse...

Se bem entendi, assim se esfuma a hipótese de Klein segundo a qual o "gene da criatividade e inovação", ou FOXP2 modificado, ou lá como lhe chamam, teria permitido ao Sapiens bater até à extinção o seu primo Neanderthal...

Também tenho curiosidade em saber em que outro treco estará então o busílis. Se nesse GLUD2, ou noutro qualquer. E não é só curiosidade científica: a história tem contornos de até pode dar em telenovela das oito. "Cherchez le gène", diria Dumas?

Gostei muito de ler este post :)

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