Segunda parte da minha entrevista á artista plástica Margarida Alves sobre a visão?
Margarida Alves - A minha segunda questão entra precisamente
nesse ponto da matéria escura, da matéria que não dialoga com a luz. A matéria
escura o que é? Por que é que falamos dela?
Carlos
Fiolhais - Vou tentar explicar o que é a matéria escura e também o
que é a energia escura. Começo pela primeira.
Todo o Universo é
feito, como disse, de matéria. A matéria é feita de partículas e as partículas
tendem a estar juntas. Dito de uma maneira muito simples, a partículas “gostam”
umas das outras, expressando esse “gosto”
de maneiras diferentes. Há quatro tipos de forças fundamentais que fazem juntar
as partículas. À escala do muito grande, a força que manda é a força da
gravidade: essa força agrega os átomos
para formar estrelas que por sua vez se agregam em galáxias. As estrelas nascem em conjunto,
razão pela qual as galáxias são tão
antigas como as estrelas. O termo “agregação” é muito importante no Universo, pois a matéria prefere estar agregada. As. Forças,
ou se se quiser a energia que vem a dar no mesmo, são o que permite essa agregação, isto é, há um “diálogo” entre as partículas de matéria através de forças. Não há,
felizmente, muitos blocos fundamentais: só há os quarks, os electrões e outras partículas muito leves que completam
o conjunto de blocos que conhecemos, os neutrinos. Tanto quanto sabemos, toda a
matéria é feita de quarks, electrões e
neutrinos. Essas partículas estão
sujeitas a quatro forças fundamentais, que
são as forças gravitacionais, responsáveis pela formação e manutenção de
estrelas e galáxias, as forças electromagnéticas, que são responsáveis pela formação e
manutenção dos átomos e moléculas, pois ligam os electrões aos núcleos atómicos
e ligam os átomos entre si, e, por
último, as forças que mantêm os núcleos atómicos, as forças nucleares, ou são responsáveis pela sua transformação (falamos
de radioactividade). Há dois tipos de forças nucleares: a força nuclear forte e
a força nuclear fraca. A primeira assegura a coesão dois quarks entre si nos protões
e neutrões e a coesão dos protões e
neutrões no núcleo atómico ao passo que a segunda é responsável por certas formas de
desagregação do núcleo. Portanto, há forças que são disruptivas, que contrariam
a agregação. Temos, portanto, três tipos
de partículas e quatro tipos de forças. Já conseguimos unificar alguns desses
tipos de forças: a teoria que descreve o electromagnetismo foi unificada com a
teoria das forças nucleares fracas e esta teoria conjunta foi depois unificada com a teoria que descreve
as forças nucleares fortes. Falta apenas a unificação final com a força da
gravidade, um desafio que parece muito difícil.
Os físicos
tentam, na sua busca do entendimento do mundo, perceber a regularidade. Eles
estão treinados para isso, para perceber a ordem do mundo. Há muitos problemas a respeito
desta ordem, senão os cientistas não teriam emprego… Há cada vez mais
cientistas porque há cada vez mais questões por resolver. À medida que
respondemos a questões, as respostas trazem novas questões. A descoberta
científica parece um empreendimento sem
fim, não parece que esteja à vista o fim da ciência, mas isto não é uma questão
da ciência, mas sim da filosofia. A
ciência vai avançando e o que nós verificamos é que tem cada vez mais avanços para
fazer. Um dos trabalhos que a ciência tem
neste momento é precisamente o da compreensão
da matéria escura: olhamos para as galáxias, e nós, conhecendo a força
da gravidade, a força que preside à relação entre as estrelas, não conseguimos
explicar todos os aspectos delas. Vejamos o que faz a força da gravidade: o Sol
relaciona-se com a Terra através da força da gravidade, pois é a ela força que faz a Terra girar à volta
do Sol, que faz com que completemos uma volta ao Sol de cada vez que fazemos
anos. É a força da gravidade que mantém a órbita terrestre. Se esta força, por algum qualquer efeito “sobrenatural”
deixasse de existir, a Terra sairia da sua órbita disparada, seguindo em frente
com a velocidade com que estava em vez de
curvar para andar em órbita circular do Sol.
A nossa Galáxia,
a Via Láctea, um objecto com uma forma em espiral bastante plana, tem no centro
um objecto sobre o qual sabemos pouco. É
algo muito denso. O Sol, desde que
nasceu há cinco mil milhões de anos, já
deu mais de duas dezenas de voltas em torno desse centro, tal como a Terra já
deu muitas voltas, milhares de milhões de voltas, em torno do Sol. A nossa visão
do centro da Galáxia é prejudicada pelo
conjunto de estrelas intermediárias, mas deve tratar-se de um buraco negro
gigante. Andamos a tentar perceber melhor o que aí existe. Olhamos não só para a nossa Galáxia como
também para outras que podem ter centros semelhantes. As mais perto são as Nuvens
de Magalhães, e, mais longe, há uma galáxia muito grande, semelhante à nossa
mas bastante maior, chamada Andrómeda.
Os físicos
interrogam-se como é que, a partir da força da gravidade, as galáxias têm as
formas que têm. Numa escultura há a intenção do artista. De algum modo, o Rodin
quando olhou para um bloco de mármore, pensou no “Pensador”. Imaginou o “Pensador” lá dentro e ele só teve de tirar
o mármore que está a mais para ficar só o “Pensador”. Na Natureza, as coisas
não são assim. O tempo é o “grande escultor”. As “esculturas” são feitas
naturalmente pelas forças naturais e temos de perceber como é que essas forças
fizeram isso ao longo de milhões de anos. No caso das galáxias, chegamos a uma
contradição: as forças gravitacionais, a força de Newton que julgamos conhecer bem,
deve funcionar para assegurar a agregação, mas há matéria gravitacional
que não emite luz, isto é, não conseguimos
explicar o movimento de rotação da galáxia e a
luz que ela emite. Todas as galáxias estão em rotação e, para
percebermos esse movimento, invocamos a força gravitacional. Mas, quando o
fazemos, verificamos que tem de lá matéria que tem efeito gravítico mas não tem efeito luminoso. Não vemos a luz que esperávamos ver!
Existe uma matéria que não está na forma de estrelas, dentro e à volta da
galáxia. As galáxias têm uma espécie de
halo invisível. Existe, portanto, uma
parte do mundo para a qual a evidência é apenas indirecta, existe
uma força que diz que está lá, mas existe uma outra força que diz afinal não
está. Esta contradição terá um dia de
ser resolvida. À matéria invisível chamamos matéria escura: é matéria que lá está pois é preciso explicar
gravitacionalmente o movimento na galáxia, mas não está pois nós não a vemos
através da luz. Acontece que a maior parte da matéria é matéria negra: o
que falta é bem maior do que aquilo que se vê. Estamos confrontados com um mistério e ninguém faz ideia do que poderá
ser a matéria negra. Poderão ser
partículas novas e por isso colocamos novos detectores na Terra e no espaço. Até agora, há muitas teorias, mas
ninguém detectou nada do que essas teorias prevêem.
Margarida Alves – E a energia escura?
Carlos
Fiolhais- A energia escura é uma outra história. Falei do Big Bang,, a explosão inicial que colocou
o Universo em expansão. Houve uma singularidade no tempo há catorze
mil milhões de anos e nós descobrimos isso porque vimos que as galáxias se
estavam, em geral, a afastar umas das
outras. É o espaço que está a crescer entre as galáxias. Vimos sempre a partir
do nosso ponto de vista: vemos a partir
do sistema solar, mas, se estivéssemos noutro sítio, veríamos a mesma expansão,
pois as galáxias estão em todo o lado a
afastar-se umas das outras. A única maneira de explicar isto é postulando um início particular: usamos a
metáfora da “explosão inicial”. Tal como numa explosão, o que vai mais longe
vai com maior velocidade. As galáxias que estão mais longe de nós estão a
afastar-se de nós com uma velocidade maior. As que estão no limite dos catorze
mil milhões de anos-luz, estão a afastar-se de nós com a velocidade máxima, que
é a velocidade da luz, 300.000 quilómetros por segundo. Foi uma explosão
violentíssima aquela que ocorreu no início do mundo! Ora chegou-se à conclusão,
mais uma vez usando luz e olhando para certas explosões estelares chamadas “supernovas”
(conhecemos a energia libertada em certo
tipo de supernovas), em galáxias distantes, que
as galáxias não só se afastam
umas das outras, como também as mais
distantes afastam-se a uma velocidade ainda maior do que se deveriam afastar, devido
ao Big Bang. O Universo está em expansão e essa expansão é acelerada. Este facto é mesmo
muito estranho! A força da gravidade deveria travar o efeito da explosão
inicial, deveria amortecer a expansão, mas não é isso o que vemos. Por isso
falamos de uma força de antigravidade, uma força que ajuda a expansão e é importante a grandes distâncias.
Não fazemos ideia nenhuma do que possa ser. Se a matéria escura é um mistério,
a energia escura parece ser um mistério ainda maior.
O que é a
luz? A luz está associada à força electromagnética, é a
manifestação dessa força. Um electrão e um núcleo atómico têm cargas opostas e
relacionam-se através da emissão e recepção de
fotões, que são os “grãos” de luz. A
luz é o que chamamos “campo electromagnético,” o efeito á distância das cargas. Falamos de energia
escura como uma hipotética força, uma quinta força, uma nova forma de luz se
quisermos. Enquanto na matéria escura estamos a falar de partículas de matéria
desconhecida, na energia escura estamos a falar de um novo tipo de força, de
uma luz desconhecida. O que as duas têm em comum é o termo “escura”, que traduz o nosso desconhecimento. O que têm em comum é
o mistério. Portanto, estamos hoje confrontados com dois grandes mistérios
cósmicos. Eles têm desafiado muitas
mentes mas ainda não temos respostas
para eles.
Vale a pena
tirar algumas conclusões filosóficas: a matéria e a energia escuras
significam que nós, antes de vermos, pressentimos o que vemos. Há, como disse,
maneiras indirectas de ver e há também maneiras de pressentir o que se vai ver.
Não tendo nós visto nem matéria escura, nem energia escura, nós pré-vimo-las,
quer dizer, previmo-las. A palavra previsão é aqui adequada: Ainda não vimos,
mas pensamos ver. Muitas vezes, quando não vemos, prevemos, isto é, ficamos à
espera de ver. Isto leva-nos a uma questão epistemológica, que é o significado
de “ver”. Ver não é só ver como os olhos. Hoje sabemos bem isso, pois os olhos
são amplificados com instrumentos. Ver é captar a realidade de qualquer modo:
quando captamos a realidade com o
raciocínio, estamos também a ver, numa acepção mais geral do termo. Podemos ver mentalmente. É aliás muito curta
a distância entre a visão física e a visão mental. É muitas vezes a visão mental
que conduz à visão física. Mas uma
previsão baseia-se sempre nalguma visão anterior. A partir do que vemos pensamos que deve estar
ali mais qualquer coisa, e vamos procurá-la.
Em muitos casos só vemos porque previmos. Pode ser difícil ver, mesmo
quando uma coisa está à nossa frente, se nós não estivermos à espera dela. Mas
se estamos à espera, vemos logo. Pode até ser um objecto grande, mas se não
estamos à espera dele não o reconhecemos. Algo semelhante no plano das relações
interpessoais: os nossos olhos por vezes
não vêem logo alguém que está à nossa
frente porque não estamos à espera dessa pessoa.
2 comentários:
Para além de outras e muitas qualidades o que mais aprecio no Professor Carlos Fiolhais é a maneira "fácil" como descomplica coisas difíceis. Qualidade só acessível a extraordinários Pedagogos.
Quando iniciei a leitura, pareceu-me muito texto. E logo para mim, que leio muito devagar. Mas, à medida que me aproximava do fim, para fazer render o texto, ou o meu interesse por ele, lia ainda mais devagar, fiz uma pausa, fui buscar um copo e prossegui. Não há textos extensos, concluí.
O Carlos Fiolhais ao divulgar a Física, na forma escrita ou falada, até consegue fazer-nos crer que ficamos sábios. Parece que está a contar uma história de ficção, que encanta adultos e crianças. Mas é inegável que olhar para o muito longe tem revelado ser um trunfo quando é preciso ver ao perto.
Este texto tem todos os ingredientes para desafiar a nossa imaginação e relativizar as escalas em que representamos os nossos problemas e as nossas fantasias. Passei muito(?) tempo a olhar as estrelas. Hoje, passo muito(?) tempo a olhar para as palavras, mas estas permitem-me ver estrelas.
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