De entre a multiplicidade de ideias incompreensíveis, sem qualquer fundamento científico ou, até mesmo, do senso comum, que, de modo recorrente, surgem nos documentos curriculares orientados para a "educação do futuro", está a de que as pessoas nascidas na passagem de século ou depois disso são completamente diferentes das do passado. É como se, de um momento para o outro, por geração espontânea, uma nova espécie de humanos tivesse emergido e se apresentasse pronta.
Evidentemente que não é assim: à nascença somos, potencialmente, iguais aos nossos antepassados, mesmo daqueles que distam de nós séculos, milénios. Isto não significa rejeitar a evidência de adaptação do nosso cérebro ao funcionamento das novas tecnologias da informação e da comunicação, em particular à troca imediatista que potenciam. Mas tal tem a ver com a plasticidade neuronal e não com uma qualquer mutação ocorrida há uns anos na nossa natureza.
E tal como a nossa natureza não mudou substancialmente, a nossa condição também não. Para percebermos isso, e não nos deixarmos arrastar por ideias educativas peregrinas, é importante que estudemos, além de Biologia, História, Literatura, Arte, Cultura Clássica. Estas disciplinas, entre outras, confrontam-nos tanto com as grandezas como com as misérias de que a humanidade é capaz, de que somos capazes. Sem elas como poderemos compreender o que pensarmos, o que sentimos, o que fazemos no presente? Como poderemos ter a ideia de continuidade com o passado? Como poderemos projectar-nos no futuro?
Esta nota é a propósito de um texto publicado ontem com o título Presos entre o espelho e o eco, assinado por Maria José Ferreira Lopes, com formação académica em Humanidades. Ele ilustra na perfeição a imutabilidade humana, os meios de concretizar as nossas tendências mais ancestrais pode mudar, mas as tendências mantêm-se.
Maria Helena Damião e Isaltina Martins
"Eco e Narciso parecem o par representativo de bastantes utilizadores das redes sociais: ele apenas se vê a si próprio; ela, mesmo tendo ideias generosas, vê-se obrigada pelas circunstâncias a fazer like e a replicar o pensamento de outros.
(...) apesar do deslumbramento criado pelos avanços da tecnologia, a essência da Humanidade não mudou, e até os detalhes potencialmente datados do passado podem encontrar paralelos no presente. Mais ainda, e mesmo colocados todos os caveats e mutatis mutandis, acabamos por verificar que a experiência contemporânea permite distinguir, em histórias aparentemente gastas com interpretações e recriações sucessivas, novas camadas significativas.
O passado enriquece o presente, mas o presente também permite um enriquecimento da vivência passada (...).
Narciso (...) trata-se provavelmente da figura mais nomeada no contexto dos media para caracterizar a vida social deste início de milénio, tendo em mente sobretudo os membros da chamada Generation Y (ou Millennials) e da subsequente Generation Z.
De facto (...), os nascidos a partir da última década do século XX foram marcados quase desde a nascença pela omnipresença e crescente multifuncionalidade do telemóvel e da Internet. Poder fotografar-se – vendo-se ao espelho, portanto – em qualquer circunstância, e de imediato exibir essa imagem urbi et orbi do modo que se achar melhor é uma das mais apreciadas funções dos dispositivos móveis
Contudo, vem com custos associados, como a experiência diária e os media nos mostram (...). A pergunta que surge constantemente é: quais serão os efeitos a médio e longo prazo?
A prevalência do que a Psiquiatria chamou “distúrbio narcísico da personalidade” (...) irá aumentar e associar-se a patologias mais graves? E o que sucederá com a incidência dos estados depressivos? Quando se considera o protagonismo actual de Narciso, parece que a infeliz ninfa Eco, vítima da insensibilidade do belo jovem, teve uma posteridade menos brilhante (...).
[A] história dos dois merece uma breve visita, para se verificar a sua incrível actualidade, seguindo, naturalmente, a versão mais marcante, contada por Ovídio nas Metamorfoses, dois mil anos atrás. Desde logo, o Narciso ovidiano (Met., 3, 339-510) é o protagonista de uma metamorfose e responsável pela de Eco: ele transforma-se numa flor branca e amarela, o narcissus poeticus; ela, numa reverberação pétrea, típica dos lugares ermos.
A trágica ruína do jovem caçador – sim, ele era, aos seus dezasseis anos, um stalker de animais tão obcecado como eficiente (...) –, causada por um evidente narcisismo, é anunciada à sua pobre mãe pelo principiante Tirésias com palavras adequadamente ambíguas: chegará a uma idade avançada “se não se conhecer a si próprio” (v. 348). O adivinho reportava-se a um conhecimento apenas superficial, completamente distinto do “conhece-te a ti mesmo” inscrito no templo de Apolo em Delfos.
Incapaz de sair da sua auto-suficiência, mesmo antes de se “conhecer” no espelho das águas, desprovido de empatia e simpatia, Narciso praticava o que poderíamos chamar, em termos actuais, um ghosting geral: ignorava, por vezes com acinte, todos os que se apaixonavam pela sua extraordinária beleza, mas estava certo de que era irresistível. Se Eco implodiu de dor, tornando-se num eco, outros amaldiçoaram-no pela arrogância injusta. O castigo divino a esta evidente hybris, mais narcísica que todas as outras, não se fez esperar e seguiu a linha da pena de Talião: fê-lo amar e “nunca possuir o ser que ama”, espelhando a pobre Eco, que tentara abraçá-lo em vão (v. 405).
É neste contexto que ocorre o episódio da pausa durante uma caçada e do arrebatamento pela imagem reflectida nas águas. Na versão das Metamorfoses, o belo Narciso fica como petrificado, “incapaz de se mexer”, qual “mármore de Paros” (vv. 418-419), com todo o seu ser concentrado no olhar. Ainda não podemos falar numa espécie de selfie constante, pois, de início, o efebo está convencido de que contempla alguém distinto de si. Só depois de expressar veementemente a sua dor por não conseguir alcançar a criatura reflectida pelas águas é que Narciso vê “realmente visto”: “Oh! Mas ele sou eu! Percebi!” (v. 463).
A indiferença absoluta que revelava na relação com os outros tem agora como reverso um bloqueio do instinto de sobrevivência, que o leva a ignorar as necessidades vitais: como um adicto, ele não come, não bebe, não descansa. À consequente fragilidade junta-se o desvanecimento irreversível da beleza que constituía a razão de viver de Narciso; a identificação com a imagem das águas acentua-lhe a certeza de que a morte de “ambos” é inevitável. Os seus momentos finais são terríveis: quando o reflexo desaparece momentaneamente devido às lágrimas caídas na água, Narciso automutila-se em desespero, acentuando a destruição da sua beleza; ao contemplar os estragos, agoniza até desfalecer e transformar-se numa flor.
Mas nem depurado pelo sofrimento Narciso tem redenção: até enquanto caminha junto às águas sombrias dos Infernos, ele continua a buscar o reflexo da sua beleza. Este Narciso obcecado com a sua imagem e com o ecrã das águas, qual adicto às selfies e aos jogos electrónicos, é pertinentemente acompanhado pela graciosa figura de Eco no enquadramento contemporâneo.
A ninfa era generosa, mas esse traço simpático, que a afasta radicalmente de Narciso, esteve na origem da sua desgraça. A sua tentativa de distrair Juno, quando esta perseguia as ninfas assediadas pelo omnipotente Júpiter, foi responsável pela perda da sua voz individual. Eco deixou de poder expressar os seus pensamentos e passou a apenas repetir os dos outros. Essa perda da voz própria acentuou a agressividade da rejeição por parte de Narciso, mas é evidente que nem a mais sedutora mensagem poderia levá-lo a abrir-se a alguém. Simbolicamente, é ela que tem a última palavra, ao repetir o “Adeus!” com que o agonizante efebo se despede do mundo superior (v. 501).
Esta reverberação demonstra que ela não tinha perdido a sua essência compassiva, nem tão pouco o amor que a consumiu, sem lhe tirar o altruísmo, até a metamorfosear em pedra dúctil à voz dos outros. Quem sabe se um deus justo não poderia tê-la recuperado para o mundo dos vivos, de modo a manter essa humanidade profunda, disfarçada pela sua imagem de ninfa dos bosques.
Eco e Narciso, mutatis mutandis, parecem o par representativo de bastantes utilizadores das redes sociais: ele apenas se vê a si próprio; ela, mesmo tendo ideias generosas, vê-se obrigada pelas circunstâncias a fazer like e a replicar o pensamento superficial e fragmentário dos outros, sem o poder discutir; entre os dois – um cego e um mudo –, o abismo da incomunicabilidade. E quem será a vingativa Juno?
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