sábado, 5 de outubro de 2019

O QUE É VER?


Segunda parte da minha entrevista á artista plástica Margarida Alves sobre a visão?         
 Margarida Alves - A minha segunda questão entra precisamente nesse ponto da matéria escura, da matéria que não dialoga com a luz. A matéria escura o que é? Por que é que falamos dela?
         Carlos Fiolhais - Vou tentar explicar o que é a matéria escura e também o que é a energia escura. Começo pela primeira.  Todo o Universo é feito, como disse, de matéria. A matéria é feita de partículas e as partículas tendem a estar juntas. Dito de uma maneira muito simples, a partículas “gostam” umas das outras,  expressando esse “gosto” de maneiras diferentes. Há quatro tipos de forças fundamentais que fazem juntar as partículas. À escala do muito grande, a força que manda é a força da gravidade:  essa força agrega os átomos para formar estrelas que por sua vez se agregam em  galáxias. As estrelas nascem em conjunto, razão pela qual  as galáxias são tão antigas como as estrelas. O termo “agregação” é muito importante no Universo, pois a matéria prefere estar agregada. As. Forças, ou se se quiser a energia que vem a dar no mesmo,  são o que permite essa agregação, isto é,  há um “diálogo” entre as partículas de  matéria através de forças. Não há, felizmente, muitos blocos fundamentais: só há os quarks, os electrões  e outras partículas muito leves que completam o conjunto de blocos que conhecemos, os neutrinos. Tanto quanto sabemos, toda a matéria é feita de  quarks, electrões e neutrinos.  Essas partículas estão sujeitas  a quatro forças fundamentais, que são as forças gravitacionais, responsáveis pela formação e manutenção de estrelas e galáxias, as forças electromagnéticas,  que são responsáveis pela formação e manutenção dos átomos e moléculas, pois ligam os electrões aos núcleos atómicos e ligam os átomos entre si,  e, por último, as forças que mantêm os núcleos atómicos, as forças nucleares, ou são  responsáveis pela sua transformação (falamos de radioactividade). Há dois tipos de forças nucleares: a força nuclear forte e a força nuclear fraca. A primeira assegura a coesão dois quarks entre si nos protões e neutrões  e a coesão dos protões e neutrões  no núcleo atómico ao passo que  a segunda é responsável por certas formas de desagregação do núcleo. Portanto, há forças que são disruptivas, que contrariam a agregação. Temos, portanto,  três tipos de partículas e quatro tipos de forças. Já conseguimos unificar alguns desses tipos de forças:  a teoria que descreve  o electromagnetismo foi unificada com a teoria das forças nucleares fracas e esta teoria conjunta  foi depois unificada com a teoria que descreve as forças nucleares fortes. Falta apenas a unificação final com a força da gravidade, um desafio que parece muito difícil.
            Os físicos tentam, na sua busca do entendimento do mundo, perceber a regularidade. Eles estão treinados para isso, para perceber a ordem do mundo. Há muitos problemas  a respeito  desta ordem, senão os cientistas não teriam emprego… Há cada vez mais cientistas porque há cada vez mais questões por resolver. À medida que respondemos a questões, as respostas trazem novas questões. A descoberta científica parece  um empreendimento sem fim, não parece que esteja à vista o fim da ciência, mas isto não é uma questão da ciência,  mas sim da filosofia. A ciência vai avançando e o que nós verificamos é que tem cada vez mais avanços para fazer. Um dos trabalhos que a ciência tem neste momento é precisamente o da compreensão  da matéria escura: olhamos para as galáxias, e nós, conhecendo a força da gravidade, a força que preside à relação entre as estrelas, não conseguimos explicar todos os aspectos delas. Vejamos o que faz a força da gravidade: o Sol relaciona-se com a Terra através da força da gravidade, pois  é a ela força que faz a Terra girar à volta do Sol, que faz com que completemos uma volta ao Sol de cada vez que fazemos anos. É a força da gravidade que mantém a órbita terrestre. Se esta força,  por algum qualquer efeito “sobrenatural” deixasse de existir, a Terra sairia da sua órbita disparada, seguindo em frente com a velocidade com que estava em vez  de curvar para andar em órbita circular do Sol. 
            A nossa Galáxia, a Via Láctea, um objecto com uma forma em espiral bastante plana, tem no centro um objecto sobre o qual sabemos pouco.  É algo  muito denso. O Sol, desde que nasceu há cinco mil milhões de anos,  já deu mais de duas dezenas de voltas em torno desse centro, tal como a Terra já deu muitas voltas, milhares de milhões de voltas, em torno do Sol. A nossa visão do centro da Galáxia  é prejudicada pelo conjunto de estrelas intermediárias, mas deve tratar-se de um buraco negro gigante. Andamos a tentar perceber melhor o que aí existe.  Olhamos não só para a nossa Galáxia como também para outras que podem ter centros semelhantes. As mais perto são as Nuvens de Magalhães, e, mais longe, há uma galáxia muito grande, semelhante à nossa mas bastante maior, chamada Andrómeda.
            Os físicos interrogam-se como é que, a partir da força da gravidade, as galáxias têm as formas que têm. Numa escultura há a intenção do artista. De algum modo, o Rodin quando olhou para um bloco de mármore, pensou no “Pensador”. Imaginou  o “Pensador” lá dentro e ele só teve de tirar o mármore que está a mais para ficar só o “Pensador”. Na Natureza, as coisas não são assim. O tempo é o “grande escultor”. As “esculturas” são feitas naturalmente pelas forças naturais e temos de perceber como é que essas forças fizeram isso ao longo de milhões de anos. No caso das galáxias, chegamos a uma contradição: as forças gravitacionais, a força de Newton que julgamos  conhecer bem,  deve funcionar para assegurar a agregação, mas há matéria gravitacional que não emite luz, isto é,  não conseguimos explicar o movimento de rotação da galáxia e a  luz que ela  emite.  Todas as galáxias estão em rotação e, para percebermos esse movimento, invocamos a força gravitacional. Mas, quando o fazemos, verificamos  que tem de  lá matéria que tem efeito gravítico mas  não tem efeito  luminoso. Não vemos a luz que esperávamos ver! Existe uma matéria que não está na forma de estrelas, dentro e à volta da galáxia. As galáxias  têm uma espécie de halo invisível.  Existe, portanto, uma parte do  mundo para a  qual a evidência é apenas indirecta, existe uma força que diz que está lá, mas existe uma outra força que diz afinal não está.  Esta contradição terá um dia de ser resolvida. À matéria invisível  chamamos  matéria escura: é  matéria que lá está pois é preciso explicar gravitacionalmente o movimento na galáxia, mas não está pois nós não a vemos através da luz.  Acontece que  a maior parte da matéria é matéria negra: o que falta é bem maior do que aquilo que se vê. Estamos confrontados com  um mistério e ninguém faz ideia do que  poderá  ser  a matéria negra. Poderão ser partículas novas e por isso colocamos novos detectores na Terra e no  espaço. Até agora, há muitas teorias, mas ninguém detectou nada do que essas teorias prevêem.

Margarida Alves – E a energia escura?

            Carlos Fiolhais- A energia escura é uma outra história. Falei do Big Bang,, a explosão inicial  que  colocou o Universo em  expansão.  Houve uma singularidade no tempo há catorze mil milhões de anos e nós descobrimos isso porque vimos que as galáxias se estavam, em geral, a afastar  umas das outras. É o espaço que está a crescer entre as galáxias. Vimos sempre a partir do nosso ponto de vista: vemos  a partir do sistema solar, mas, se estivéssemos noutro sítio, veríamos a mesma expansão, pois as galáxias  estão em todo o lado a afastar-se umas das outras. A única maneira de explicar isto  é postulando um início particular: usamos a metáfora da “explosão inicial”. Tal como numa explosão, o que vai mais longe vai com maior velocidade. As galáxias que estão mais longe de nós estão a afastar-se de nós com uma velocidade maior. As que estão no limite dos catorze mil milhões de anos-luz, estão a afastar-se de nós com a velocidade máxima, que é a velocidade da luz, 300.000 quilómetros por segundo. Foi uma explosão violentíssima aquela que ocorreu no início do mundo! Ora chegou-se à conclusão, mais uma vez usando luz e olhando para certas explosões estelares chamadas “supernovas” (conhecemos a energia libertada em  certo tipo de supernovas), em galáxias distantes, que  as galáxias  não só se afastam umas das outras,  como também as mais distantes afastam-se a uma velocidade ainda maior do que se deveriam afastar, devido ao Big Bang. O  Universo está em expansão e essa  expansão é acelerada. Este facto é mesmo muito estranho! A força da gravidade deveria travar o efeito da explosão inicial, deveria amortecer a expansão, mas não é isso o que vemos. Por isso falamos  de uma força de  antigravidade, uma força que ajuda a  expansão e é importante a grandes distâncias. Não fazemos ideia nenhuma do que possa ser. Se a matéria escura é um mistério, a energia escura parece ser um mistério ainda maior.
            O que é a luz? A luz está associada à força electromagnética, é a manifestação dessa força. Um electrão e um núcleo atómico têm cargas opostas e relacionam-se através da emissão e recepção de  fotões, que são os “grãos” de luz. A  luz  é o que chamamos  “campo electromagnético,” o efeito  á distância das cargas. Falamos de energia escura como uma hipotética força, uma quinta força, uma nova forma de luz se quisermos. Enquanto na matéria escura estamos a falar de partículas de matéria desconhecida, na energia escura estamos a falar de um novo tipo de força, de uma luz desconhecida. O que as duas têm em comum é o termo “escura”, que traduz  o nosso desconhecimento. O que têm em comum é o mistério. Portanto, estamos hoje confrontados com dois grandes mistérios cósmicos. Eles  têm desafiado muitas mentes mas ainda não  temos respostas para eles.
            Vale a pena tirar algumas conclusões filosóficas: a matéria e a energia escuras significam que nós, antes de vermos, pressentimos o que vemos. Há, como disse, maneiras indirectas de ver e há também maneiras de pressentir o que se vai ver. Não tendo nós visto nem matéria escura, nem energia escura, nós pré-vimo-las, quer dizer, previmo-las. A palavra previsão é aqui adequada: Ainda não vimos, mas pensamos ver. Muitas vezes, quando não vemos, prevemos, isto é, ficamos à espera de ver. Isto leva-nos a uma questão epistemológica, que é o significado de “ver”. Ver não é só ver como os olhos. Hoje sabemos bem isso, pois os olhos são amplificados com instrumentos. Ver é captar a realidade de qualquer modo: quando captamos  a realidade com o raciocínio, estamos também a ver, numa acepção mais geral do termo.  Podemos ver mentalmente. É aliás muito curta a distância entre a visão  física e a  visão mental. É muitas vezes a visão mental que conduz à visão  física. Mas uma previsão baseia-se sempre nalguma visão anterior.  A partir do que vemos pensamos que deve estar ali mais qualquer coisa, e vamos procurá-la.  Em muitos casos só vemos porque previmos. Pode ser difícil ver, mesmo quando uma coisa está à nossa frente, se nós não estivermos à espera dela. Mas se estamos à espera, vemos logo. Pode até ser um objecto grande, mas se não estamos à espera dele não o reconhecemos. Algo semelhante no plano das relações interpessoais:  os nossos olhos por vezes não  vêem logo alguém que está à nossa frente porque não estamos à espera dessa pessoa.

2 comentários:

Rui Baptista disse...

Para além de outras e muitas qualidades o que mais aprecio no Professor Carlos Fiolhais é a maneira "fácil" como descomplica coisas difíceis. Qualidade só acessível a extraordinários Pedagogos.

Carlos Ricardo Soares disse...

Quando iniciei a leitura, pareceu-me muito texto. E logo para mim, que leio muito devagar. Mas, à medida que me aproximava do fim, para fazer render o texto, ou o meu interesse por ele, lia ainda mais devagar, fiz uma pausa, fui buscar um copo e prossegui. Não há textos extensos, concluí.
O Carlos Fiolhais ao divulgar a Física, na forma escrita ou falada, até consegue fazer-nos crer que ficamos sábios. Parece que está a contar uma história de ficção, que encanta adultos e crianças. Mas é inegável que olhar para o muito longe tem revelado ser um trunfo quando é preciso ver ao perto.
Este texto tem todos os ingredientes para desafiar a nossa imaginação e relativizar as escalas em que representamos os nossos problemas e as nossas fantasias. Passei muito(?) tempo a olhar as estrelas. Hoje, passo muito(?) tempo a olhar para as palavras, mas estas permitem-me ver estrelas.

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