quarta-feira, 9 de outubro de 2019

No Mar e no Morro

Alguns poemas de minha autoria, incluídos no livro, ainda inédito, No Mar e no Morro: 

 1

 Gostaria de dormitar, eternamente,
 Dentro do xaile negro da minha avó,
 Longe da poeira:
 Gostaria, só, de ouvir cair a enxada,
 Como chuva, e ouvir
 A chuva de inverno
 Bater na terra e na oliveira.

 A Sandro Penna

 2

 No teu olhar cor de sépia, vejo de modo claro o brilho do desejo. nas maçãs-do-rosto ruboresce-se o riso e ri-se o rubro do pudor. no rosa brando dos lábios desabrocha o cicio lúbrico dos ramos vernais em flor. na trança húmida de mar perdem-se os barcos azuis do elevado espanto pueril. e, na pele da mão em delírio, augura-se a profunda rota de um toque breve e subtil.

 3

 Sempre o peito, em tuas palavras.
 Não a palpitar,
 Mas num riso modesto
 A entregar as pálpebras.

 4


 Ergo-me agora como um velho choupo,
 Dobro de leve o tronco
 E abro os braços e a alma
 Ao voo excelso de uma cegonha branca,
 Nos campos e no brilho metálico
 Da água.

 Agora céu azul claro à ilharga da cidade,
 Clareira-colina,
 E a mágoa a ir ao encontro
 De um riso de sonho e vergonha.
 De um riso tão aberto lá atrás
 E tão sombra aqui,
 Tão distante e inatingível
 Como o alto voo da cegonha.

 5
 Aproxima-se o negrume desbotado da boina basca. o rumor da bicicleta e a inclemência do frio. aproxima-se o estalo do engaço na argamassa do pátio. a rachadela exangue no lábio. o adesivo no polegar enrolado. aproxima-se o fôlego da exaustão. o jorro de água assomando às maçãs-do-rosto. o grunhido debaixo da porta do curro de tábuas. as mãos quebrando sarmentos no crepúsculo hostil. o sopro chamando a chama à face. aproxima-se a trepidação da bucha. o gorgolejo do vinho. o calor da batata assada na cinza. o sopro aliviando a ponta dos dedos. o verdor do azeite embebido na côdea sombria da broa. aproxima-se o sopor do bule rente às áscuas. os pés chapinhando na bacia azul-céu. o creme das paredes do quarto. aproxima-se o baque do relógio de pulso na cómoda. a coroa de espinhos ensanguentada. os joelhos protuberantes aconchegados um ao outro. aproxima-se a concentração íntima. a gravidade da oração e a paz de um até amanhã se deus quiser. aproxima-se o ressono do coração. a eternidade do homem e a lágrima da bacia.

 Ao pai

 6

 O brilho áureo, entre chuvas plúmbeas, é que fere o meu olhar. a nora carcomida, e a gárgula desvalida, é que irriga o barro da minha inspiração. a serpente exígua, que talha o mutismo do cerro, é que aproxima a minha língua da tua pureza. o pendor das fúchsias é que abre os teus lábios róseos à purpúrea embriaguez. a retração das maravilhas é que é o prenúncio do lume do riso. a fraqueza das minhas mãos é que caminha para a loucura do teu aceno. A volta sempre inopinada dos luze-cus é que inicia a perseguição da íris terrosa. e a melancolia, presa à albumina da tarde, é que pousa nos lilases longínquos e sobressalta o meu coração.

Sem comentários:

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...