domingo, 27 de outubro de 2019

Que sentido de "humanidade" se coaduna com o dever de educar?

Entramos no currículo escolar, seja ele português ou de um outro qualquer país de matriz ocidental, e o que vemos, o que não podemos deixar de ver? A substituição da finalidade última que é a perfectibilidade humana (a mesma que fundou a escola moderna, ainda que se tivesse, por demasiadas vezes, desviado dela) pelo objectivo pragmático de produção de capital humano, o tal produtor-consumidor. A palavra "humana/o" consta nas duas circunstâncias (ao ponto de este objectivo se dizer humanista), mas o sentido, numa e noutra, é completamente distinto. 

Aqueles que assumem a responsabilidade de educar, com destaque para directores e professores, têm uma especial obrigação ética de perceber isso e, na medida das suas possibilidade, reorientar a sua acção. Efectivamente, a sua acção não pode pautar-se pelas exigências pontuais de uma sociedade que ostenta, com progressiva ênfase, a sua "ignorância orgulhosa", e o seu desejo crescente de produzir múltiplos "eu-etiqueta" (Carlos Drummond de Andrade).

Por estas razões, vale a pena ler um texto de Valter Hugo Mãe, publicado hoje no Jornal de Notícias com o título A ignorância orgulhosa.
Maria Helena Damião e Isaltina Martins
" (...) A Europa edificou a Pessoa Universal, essa que se faz como espírito inteiro, de profunda ética, conquistada ao conhecimento e sustentada pela razão e pela lucidez. A Europa criou seu cidadão com vocação para o esplendor do Direito, um indivíduo com aptidão cultural para ser justo, ensinado pela ressonância do Iluminismo, consumado nessa admirável fórmula que a França legou ao Mundo. 
A pessoa europeia, graça máxima do conhecimento, corrompe-se agora. Curiosamente, no auge da informação, desce drasticamente o conhecimento e, com ele, a ética. 
O orgulho pelo espírito justo é desprezado, o essencial do humanismo relegado para convicções ideológicas. A ignorância orgulhosa ganha terreno, admitida naturalmente pelos ignorantes, que sempre estiveram aí, e tolerada pelos cínicos, o típico contemporâneo. 
A pessoa europeia é reduzida ao consumo, periga na condição de cidadã e resume sua inscrição ao que pode, ou não, comprar. Não serve para muito mais. 
Sabe mal interpretar o tempo, age por reação elementar, acusa uma covardia constante, destitui-se paulatinamente de sensibilidade, desculpa-se a si mesma culpando entidades abstratas numa lógica de conspiração que leva sobretudo à demissão, a recusa de qualquer compromisso. 
A outrora Pessoa Universal da Europa é hoje uma figura atomizada, perdendo o brio nos grandes feitos históricos, incapaz de ativar o conhecimento deixado nas suas bibliotecas e escolas, cada vez mais próximas de lugares de simples entretenimento (...)
Quando arriscam a vida, as pessoas que sonham com a Europa não sabem da quase inevitável tragédia que os espera. Sonham, como a Europa sempre sonhou e, exatamente por isso, se tornou símbolo de esperar melhor. Por que razão agora se torna mais obsceno? (...)
E porque assistimos impávidos, como se não fôssemos mais capazes de regressar à cidadania e a morte dos miseráveis viesse apenas ao encontro de mais um hábito de consumo, o de consumirmos o terror alheio. 
Estamos, na verdade, a extinguir nossa identidade. Se não acordarmos, em algum tempo seremos um bicho completamente diferente daquele que teve a possibilidade de se tornar gente."

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