terça-feira, 1 de outubro de 2019

DOIS LIVROS, DUAS VISÕES DA EDUCAÇÃO ESCOLAR (E RESPECTIVAS PRÁTICAS)

Publiquei antes, neste blogue, uma nota sobre o livro de A. Royo Contra la nueva educación (aqui). Retomo-o, agora, para o comparar com o livro de C. Bona La nueva educación. Ambos foram publicados em Espanha, no espírito das novas reformas curriculares e na sua transposição para as práticas lectivas.

César Bona e Alberto Royo, são professores, respectivamente, do ensino básico e do ensino secundário, as suas idades diferente num ano, assim como a publicação dos seus livros. Terão tido uma formação profissional com pontos de contacto; as leis que sustentam e regulam o sistema educativo espanhol; as linhas curriculares que regulam a sua acção, pelo menos nos aspectos mais gerais, são as mesmas.

Estas aproximações não reduzem, porém, a distância conceptual que os separa no respeitante à educação escolar e ao papel do professor: os seus textos, e as muitas entrevistas que, a propósito deles, têm dado, ilustram bem o dissenso entre o que se designa por “educação tradicional” e “educação nova”, acentuado na passagem do século XIX para o XX e retomado, em todo o seu esplendor, na passagem do XX para o XXI.

Para melhor se perceber o supradito, atentemos, em cada um dos autores e dos livros.

Bona defende, com manifesto entusiasmo, alguns dos princípios atribuídos à “educação nova” com as actualizações que a mais recente lógica da globalização e das tecnologias imprimem. É nesta ligação, nada explícita, que o livro evolui, num registo marcadamente autobiográfico, tanto em termos de texto (organizado em trinta e três pontos) como de anexos (onde reproduz o esquema da sua sala de aula, trabalhos dos alunos, fotografias dos alunos e com eles).

Não é de somenos importância o facto de ter redigido a obra durante um ano de interrupção do ensino, na sequência de um dos vários prémios que recebeu (do Ministério da Educação, em reconhecimento pelo seu empenho no combate ao absentismo e insucesso) e da sua nomeação como o “melhor professor de Espanha” (em virtude da participação num concurso que elege o “melhor professor do mundo). Neste “cenário mediático”, como reconhece, tornou-se uma personalidade “influente” e “inspiradora”, realizando conferências, visitando a escolas e faculdades, participando em congressos de educação em vários locais, dentro e fora do país.

Quanto ao livro, Bona começa fixa-se na tese de que a escola tem de mudar e com a urgência que o compromisso em relação ao futuro próximo justifica: de facto, a construção de um “mundo melhor” passa inevitavelmente pela formação de seres íntegros, que possam expressar-se na sua plenitude e participem, de modo construtivo, na sociedade. E isso depende substancialmente da paixão que o professor nutre pela sua profissão e pelo que o rodeia. A inovação pedagógica implica, pois, diversas frentes, que o autor expõe numa estrutura do tipo “explicação-ilustração”: o conhecimento, de que o professor não é único detentor, deve estar ligado à vida e ser usado na resolução de problemas que ela coloca; a criatividade e o espírito crítico, o “aprender a aprender” e o “ser tecnológico”, devem ter lugar de destaque, bem como as atitudes e, sobretudo, as emoções; a resiliência e a flexibilidade são fins a ter em conta, a par da imaginação e da curiosidade.

Neste cenário, destinado a "promover a cooperação, educar por empatia", levam-se os alunos a conhecerem-se, a sentirem-se investigadores, a serem capazes de falar em público, a sentirem-se felizes. Isto em vez de os tornar “produtos avaliáveis”. Manter uma mente aberta, criar situações estimulantes, e estabelecer pontes com o meio, consolidam a possibilidade e a responsabilidade que os professores têm de dar voz às crianças.

Considerando o que acima disse, poder-se-ia pensar que Royo, por oposição a Bona, a quem, de resto, se refere, seria defensor dos princípios atribuídos à “educação tradicional”. Não é tão simples assim: detendo-se na discussão da antinomia, centra-se na preocupação que entende ser a de todos os professores – saber como tornar os alunos intelectualmente robustos, capazes de valorizar e apreciar os bens culturais.

Num registo mais académico, onde o cepticismo e alguma ironia marcam presença, examina os “dogmas” que dão corpo a uma “pedagogia oficial” (acolhida tanto por partidos de esquerda como de direita), que “despreza o conhecimento, apostando na felicidade ignorante e na empregabilidade de ocasião”.

Esta declaração, que consta na badana do livro, é continuada no Prólogo, assinado por Antonio Muñoz Molina, que se detém na identificação dos responsáveis pela dita pedagogia e nos seus contornos mais evidentes. Tais “dogmas” inspiram os títulos dos diversos capítulos: conhecimento em declínio, totalitarismo inovador, tecnologia e criatividade, tirania das emoções, empregabilidade, metodologias da moda; sem deixar de lado os múltiplos “charlatães” que os veiculam (com exclusão dos professores, apresentados, sobretudo, como vítimas), assim como as consequências das suas posições, nada neutras.

Reafirmando a importância da memorização, uma das capacidades mais perseguidas, mas que a escola deve promover com base em conteúdos disciplinares, nota a insistência na ideia de que estes, por se encontrarem na internet, não precisam de ser aprendidos. A abordagem didáctica estruturada, que não dispensa a atenção e o esforço, dará lugar à abordagem lúdica, apoiada nos interesses e necessidades dos alunos, com vista a promover o seu bem-estar, numa relação igualitária com o professor. Ora, estamos perante uma falácia que incentiva não só a ignorância como também o narcisismo. Na verdade, nem a motivação nem a curiosidade desaparecem quando o professor, adulto e culto, se empenha em que os seus alunos adquiram qualidades cognitivas, cívicas e morais que integram o perfil da pessoa educada.

É, de resto, essa a função do professor, se devidamente enquadrada no desígnio da escola pública ocidental, desígnio que importa manter naquilo que, não obstante as derivas pelas quais tem passado, revela de mais positivo. E entre o que revela de mais positivo conta-se a orientação para que todos os alunos, mais e menos favorecidos sob o ponto de vista social, consigam chegar às mesmas aprendizagens, equilíbrio que ficará em risco se substituirmos os conteúdos que sustentam o pensamento que permite aceder à crítica pela “felicidade imediata” e se convertemos os professores em animadores.

Ora, é a escola pública, com fins igualitários, que Royo considera estar em risco: o “permanente descrédito” de que é alvo, como estratégia para fazer valer o sistema privado, tem tido os seus efeitos, nomeadamente em termos do desânimo dos professores, que são, afinal, o seu sustentáculo. Por isso, diz, escrever o livro, ajudou-o a "não cair nesse desânimo", além de ser “um acto de resistência, de legítima defesa”.

Aonde nos conduz a dupla leitura em causa? A um impasse dada a circunstância de nos confrontarmos com duas interpretações de sentidos opostos face a uma mesma realidade, sem que se vislumbre uma saída? Poderá ser assim, mas o dever dos educadores, comprometidos com o actual debate educativo, suscitado pelas decisões tomadas nos sistemas de ensino ou que lhe são impostas, tentarão ir mais além. E para isso têm de procurar conhecimento sólido, válido, confiável.
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- Bona, C. (2015). La nueva educación: los retos y desafíos de un maestro de hoy. Barcelona: Penguin Random House Grupo Editorial.
- Royo, A. (2016). Contra la nueva educación: por una enseñanza basada en el conocimiento. Barcelona: Plataforma Editoria.

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

A educação não está errada, nem está certa. O ensino pode estar errado. Nem sempre. O que está eivado de inutilidades e inconsistências é o discurso sobre a educação e o ensino. Quando alguém se põe a falar sobre educação e ensino (eu só falo sobre os que falam) é um descalabro total. E parece que não têm consciência de que estão a falar "doutamente" de realidades que desconhecem. Falar de educação e de ensino é acessível a um robot capaz de processar todo o tipo de dados, mas não é acessível a uma pessoa, incapaz de processar os dados. É disto que se trata: processar dados.
Quanto à referência aos dogmas, fiquei tristemente esclarecido: afinal os dogmáticos são os outros.

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