(...)
Margarida Alves - Gostaria de colocar
uma questão sobre a relação entre o tempo e a matéria, que é questão da flecha do tempo, do crescimento da entropia. Poderá falar acerca desta relação e
dizer se a vida pode ser vista como uma
inversão do crescimento da entropia?
Carlos Fiolhais - Sabemos que o
passado é diferente do futuro. Há uma
seta do tempo. Nós, seres biológicos, não podemos voltar atrás, e o Universo
também não pode voltar ao Big Bang.
Há um antes e um depois tanto na vida
como nos cosmos. Não se pode viajar no tempo, ou pelo menos parece ser
extremamente difícil fazê-lo. No espaço não se passa isso, podemos ir de um
sítio para o outro, para trás e para a frente. Portanto, o tempo é diferente do
espaço, apesar de ser tratado matematicamente na teoria da relatividade tal como
o espaço – Einstein usou o conceito de espaço a quatro dimensões, três de espaço e uma de tempo, uma ideia que alguns artistas também consideraram
naquela época. Uma peculiaridade do
tempo é a sua irreversibilidade. Portanto, uma questão fundamental é: de onde
vem essa irreversibilidade? Temos algumas respostas a essa questão, mas são
apenas parciais e nalguns casos desligadas. Quando analisamos as partículas
constituintes da matéria, os quarks, os electrões e os neutrinos e a relação entre eles, que é feita
como disse através das forças, chegamos à conclusão de que, na escala
microscópica, não existe tempo. As equações são reversíveis no tempo.
O tempo só
emerge quando temos um grande número de
partículas, quando a matéria é extensa, quando existe suficiente complexidade. Temos de
considerar não duas ou poucas partículas, mas
muitas. É uma propriedade global e não individual. No caso
de existir um grande número de partículas, podemos fazer um filme e verificar
que é fácil perceber qual é o princípio e qual é o fim: o tempo corre numa certa direcção e não volta
atrás. Este fenómeno é descrito por uma lei macroscópica, uma lei que diz
respeito a sistemas de muitas partículas, a “Segunda Lei da Termodinâmica.” Esta
lei introduz uma nova propriedade física chamada entropia, que nos permite
distinguir o passado do futuro: ‘num
sistema isolado, isto é, num sistema em que não entra nem sai energia, a
entropia, ou grau de desordem, tende a aumentar”. Pode haver flutuações
estatísticas, mas serão insignificantes se o sistema for suficientemente
grande, isto é, a lei só a aplica a
sistemas com muitos constituintes, sendo
uma lei estatística. A Segunda Lei
é facilmente observada no nosso dia a dia. Dou um exemplo: colocamos uma gota de tinta num copo de água e vemos que a tinta
se espalha rapidamente. A tinta que estava antes num sítio vai ocupar todo o
espaço da água e não voltará nunca a concentrar-se no mesmo sítio inicial. Um outro
exemplo: numa caixa com gás em que as moléculas do gás estão inicialmente todas
do lado direito e do outro lado, separado de início por uma parede, está o vácuo,
as moléculas irão ocupar o espaço todo da caixa e não vão nunca voltar á
situação inicial, criando o vácuo outra vez onde ele já esteve. Portanto,
existem, nos sistemas macroscópicos, situações de impossibilidade física.
Seriam viagens para trás no tempo, que
são impossíveis.
A questão
é: como é que se concilia a visão microscópica em que há reversibilidade com a
visão macroscópica em que há irreversibilidade. Qual é o tamanho necessário
para poder emergir a irreversibilidade? Parece, pelo que disse, que a
irreversibilidade é um problema de escala. É como se o tempo não existisse para
um indivíduo, mas existisse para a colectividade dos indivíduos. Estou a
utilizar o termo “indivíduo” não no sentido antropológico, mas sim físico. Para
uma só partícula não existe tempo, para
um conjunto delas já existe, como uma propriedade comum. Recusando a ideia
do tempo ligado a uma escala mínima, o
químico belga Ilya Prigogine introduziu nas equações do muito pequeno termos em
que a irreversibilidade já aparecia a
priori. Existem, portanto, várias propostas para o problema. ..
Enfim, o
tempo é um problema não só científico como filosófico: o que é o tempo? Este é um problema com o qual continuaremos confrontados, até porque há
várias modalidades de tempo. Há o tempo físico, medido pelos relógios, que é o que estou a tratar, mas há
também o tempo psicológico. Numa viagem,
por exemplo, se eu estiver a ter uma conversa
interessante com alguém, parece que o tempo não passa enquanto os quilómetros
passam. Não julgo que esse tempo seja redutível ao tempo físico.
Um parêntesis para acrescentar que a Segunda
Lei da Termodinâmica é interessante do ponto de vista sociológico porque houve,
nos anos 50 do século passado, a famosa
questão das “duas culturas.” O cientista e romancista inglês C. P. Snow afirmou
que a Segunda Lei da Termodinâmica era desconhecida das pessoas dos humanistas,
mas que era tão ignorante quem não conhecesse Shakespeare
como quem não soubesse a Segunda Lei. Uma pessoa pode aprender como são as mudanças nas sociedades humanas lendo as
obras de Shakespeare,
mas só pode perceber as mudanças no
mundo físico se souber a Segunda Lei.
O tempo físico
é ainda um mistério. Por que é que à pequena escala não há-de haver tempo?
Donde vem em última análise a diferença
entre passado e futuro? Mas o mundo é como é, e não é como gostaríamos que
fosse. Para o electrão, a vida poderá ser eterna, igual para a frente e para
trás no tempo. Para os seres como nós, a vida tem um termo, embora os seres
vivos não estejam de modo nenhum a violar a Segunda Lei da Termodinâmica. Há
construção de ordem nos seres vivos. Mas eles não são isolados, pelo que não se lhes pode aplicar a Segunda Lei. A
entropia pode diminuir em sistemas não isolados, e é isso precisamente o que
acontece nos seres vivos. A entropia diminui devido à interacção com o meio
exterior. Nenhum ser vivo pode ser vivo sem um “diálogo” permanente com o
exterior, que se faz de várias maneiras, em particular através da alimentação
que lhes fornece energia. Se experimentarmos não comer, não conseguiremos assegurar as nossas funções vitais, deixa de haver a possibilidade de manutenção
da nossa ordem biológica. Mas será que
não apenas é possível a ordem, mas existe um imperativo de ordem para
sistemas afastados do equilíbrio? Será
que há uma espécie de Anti-Segunda Lei para sistemas não isolados, isto é, que
a entropia tem mesmo em certas circunstâncias de diminuir?
Sabemos
pouco sobre sistemas complexos, nos quais
há trânsito de energia. Existirá alguma
obrigatoriedade os seres vivos funcionarem como funcionam? Só poderá
existir vida tal como a conhecemos na
Terra, com a sua maquinaria de proteínas, todas elas feitas a partir de um
código universal, gravado no ADN? Sabemos que existe uma grande unidade entre todos
os seres vivos que é assegurada pelo ADN. Por isso é que desconfiamos que houve
um primeiro ser vivo, que se reproduziu e iniciou o caminho para a actual
biodiversidade. O código da vida é o
mesmo em todo o lado, seja um eucalipto seja eu próprio. Plantas e animais
muito diferentes têm coisas comuns, por exemplo a constituição celular. Com as quatro letras do alfabeto da vida podem-se escrever infinitas combinações. A verdade
é que nós só conhecemos seres vivos na Terra, não conhecemos outros, pelo que
só podemos especular sobre outras possibilidades de vida, outras formas de
assegurar as propriedades fundamentais dos seres vivos (metabolismo,
reprodução, adaptação). Uma grande
questão da ciência neste momento consiste
em saber se existe vida fora da Terra e, em particular, se existe vida
inteligente. Se ela existir, será semelhante à que conhecemos? Se existe vida
inteligente, serão os ET capazes de fazer o que nós fazemos? Serão eles, por
exemplo, capazes de fazer arte? Eu
acredito que sim, que se há inteligência haverá arte: a arte é uma manifestação
de inteligência. A arte é uma tentativa
inteligente de apreensão do mundo. Através
da arte o artista captura o mundo e
comunica-o. As regras de captura e os modos de comunicação próprios da arte,
não sendo inteiramente livres, são mais livres do que as regras e modos próprias da ciência, que é outra forma de apreensão
do mundo. Arte e ciência não são de modo nenhum incompatíveis porque são
dimensões humanas que coexistem na mesma humanidade e que podem coexistir no mesmo indivíduo. Um indivíduo que seja capaz de exercitar o método científico pode
ter sensibilidade estética e pode ter capacidade artística. A sensibilidade estética é algo que nos caracteriza a todos os seres
humanos, é algo que partilhamos. Uma questão muito interessante é a origem
biológica da arte. Por exemplo, por que é que o nosso cérebro gosta de música?
Por que é que, em geral, o nosso cérebro
gosta de arte? Será que outros animais, em particular os primatas, também
gostam de música? São questões que estão a ser estudadas. Que inteligência têm
os animais? E que sensibilidade têm os
animais? Desmond Morris, o autor do Macaco
Nu, tem um livro traduzido em português, O Macaco Criativo, que mostra e discute pinturas feitas por
macacos. Alguma pintura experimental feita por seres humanos poderá parecer indistinguível
da dos macacos. Sabemos, porém, que os seres humanos têm características únicas
e é tarefa da ciência saber quais elas
são.
Isso leva-nos a um outro capítulo da
ciência, muito actual, que é o da inteligência artificial. É muito interessante
saber se algumas das capacidades do
nosso cérebro podem ser colocadas em novos instrumentos, aos quais chamamos
cérebros electrónicos ou robôs. Nós estamos a experimentar para ver o que é
possível. Uma coisa que já sabemos é que os robôs são capazes, tão bem como nós
e até nalguns casos melhor, de identificar
padrões. Os grandes avanços da inteligência artificial nos últimos anos consistem em larga medida no reconhecimento rápido e correcto de padrões. Nós temos, por exemplo, uma boa capacidade de reconhecer imagens.
Somos muito rápidos a ver e a processar imagens.
O nosso olho e o nosso cérebro evoluíram nesse sentido . As máquinas não eram
capazes de o fazer bem, mas agora, graças a avanços no hardware o nos software,
já são. Neste momento, elas já são mais
rápidas do que nós nessa tarefa. Cometem erros, como nós cometemos, mas mesmo no
caso de imagens científicas, como imagens de galáxias ou de pulmões, as máquinas já conseguem ver e classificar melhor do que nós. É
verdadeiramente extraordinário… O reconhecimento
do rosto humano é feito, neste momento,
pela inteligência artificial com relativa facilidade, o que leva a aplicações
securitárias como a omnivigilância, o
reconhecimento facial para acesso a cartas instalações, etc. Até já conseguem conhecer caras de primatas, de chimpanzés, um
é fulano e outro beltrano, só pelos retratos, apesar de serem muito parecidos. As
máquinas não fazem apenas o registo e a salvaguarda de imagens, mas são capazes
de comparações e de identificações sofisticadas.
O registo
fotográfico digital democratizou-se na actualidade através dos
telemóveis. Graças a uma evolução prodigiosa da técnica fotográfica, hoje
captam-se milhões de imagens em cada segundo. A fotografia forneceu um grande
contributo à ciência no século XIX, mas ela vem da ciência, uma vez que ela foi
conseguida através das lentes e sistemas ópticos. Desenvolveu-se uma arte a partir dessa técnica.
O mesmo aconteceu a seguir com as imagens em movimento, o cinema. Estas são artes completamente novas proporcionadas por
tecnologias oriundas da ciência. Há aqui claramente uma dependência da ciência
de novas formas de arte, o que constitui mais uma ligação entre ciência e arte.
No mundo digital, além do fácil processamento
de imagem acresce a possibilidade da sua cópia e envio rápido. Nas fotografias
analógicas era caro fazer cópias e era caro enviar as cópias. Agora é fácil
copiar e enviar. A Kodak acabou
porque hoje basta carregar num botão
para que uma imagem digital seja enviada para qualquer
sítio mantendo o original. Toda a gente
fotografa tudo e mais alguma coisa, mas provavelmente a maior parte das imagens
não voltará a ser vista por ninguém. Se estiverem nalgum registo acessível elas
poderão, porém, ser “vistas” por máquinas. Aliás, os smartphones já classificam fotografias, agrupando-as pelo espaço e
tempo em que foram tiradas, pelo tipo, pelo seu conteúdo, etc. Há não só uma
grande facilidade de captação de imagens como uma grande facilidade do seu armazenamento,
processamento e comunicação. A maior parte do espaço dos nossos discos de computador está, de resto,
ocupado com imagens, sejam elas fixas (fotografia) ou animadas (cinema). A Internet está repleta de
imagens: se atendermos ao tamanho da informação, é quase só imagens. veja-se o
êxito do Instagram, do Pinterest, ou mesmo do Facebook, aplicações onde as imagens dominam. Enfim, percebe-se esse êxito porque
os humanos são muito rápidos a ver imagens. . Uma pessoa olha para uma certa
imagem e percebe-a imediatamente. E o nosso cérebro é facilmente impressionável com estímulos
visuais. Um texto não: demora a ser lido
e percebido, tem de o ler até ao fim. Nós somos o que somos, conseguimos o que
conseguimos no mundo, não apenas por causa dos nossos olhos, mas também e
principalmente por causa do nosso cérebro. E o cérebro, para funcionar na sua
plenitude, criando e comunicando ideias, precisa da linguagem e, por sua vez, a linguagem precisa das palavras. A
fotografia é rápida, mas o entendimento
humano não pode ser feito com só com imagens. A literatura é lenta. A filosofia
é lenta. A política é lenta. Nós não podemos fazer filosofia só com imagem. Também
não podemos fazer política só com imagens, embora infelizmente seja isso que esteja a acontecer.
Margarida Alves - Falou da fotografia como uma das artes? Aí o
mundo é capturado a duas dimensões. E a tridimensionalidade?
Carlos Fiolhais - A captura da
tridimensionalidade é uma questão muito interessante. O nosso cérebro está preparado para perceber
a profundidade. Mas existem várias questões. Como é que o nosso cérebro captura
o 3D? E em que medida o 3D é relevante
para dar contas das formas espaciais, na ciência, para objectos de qualquer
tamanho, microscópicos ou macroscópicos?
E, na arte, é claro que a pintura capta, graças à perspectiva, a
tridimensionalidade, mas a escultura vive no espaço a três dimensões? Não há dúvida de que uma representação plana pode iludir. As fotografias podem iludir. Muitas vezes é
preciso considerar a profundidade.. Uma
imagem fotográfica por vezes não nos diz correctamente o que é uma certa coisa. A ciência sabe isso e cada vez mais tenta
extrair as suas conclusões a partir de
representações tridimensionais, imagens
estereoscópicas por exemplo.
Termino como
comecei: falei da Revolução Científica logo no início e vou terminar da
mesma maneira. Galileu olha para a Lua
com o telescópio em 1609. Isso passa-se mais ou menos um século e meio depois
de a perspectiva ter entrado na arte. A perspectiva nasceu no Renascimento italiano, o tempo que
precedeu a Revolução Científica. Leonardo
da Vinci, que faleceu há quinhentos anos, era um mestre da perspectiva, o seu
“Tratado da Pintura’” refere as leis da perspectiva. Antes dele, Filippo Brunelleschi, Leon Alberti e outros introduziram a perspectiva na
pintura, e essa mudança é uma nova forma de ver o mundo. Começar e ver o mundo
a três dimensões foi uma mudança anterior à Revolução Científica que lhe preparou o caminho. Há na perspectiva uma componente científica no sentido em que,
para captar a tridimensionalidade, é preciso usar a geometria. Alberti escreveu um tratado geométrico da perspectiva, De Pictura, e os artistas que o leram perceberam a
importância da nova técnica. A propósito da geometria, há todo um conjunto de
discussões que nos poderiam levar muito longe sobre a chamada “razão dourada”,
um número relacionado coma geometria a que alguns atribuem propriedades
místicas. Essa tentativa de matematização da estética é, na minha opinião, um caminho errado. Mas há muita gente que pensa
que é possível encontrar uma forma matemática para a estética,
explicam o Partenon e a Vénus de Milo com base na razão dourada. Acho que essas
tentativas são muito forçadas. Um dia o
arquitecto suíço Le Corbusier
encontrou-se com o físico Einstein e, como estava muito interessado pela razão dourada, perguntou ao sábio a sua opinião. Einstein teve uma resposta genial: “o senhor
está à procura de uma forma que torna o belo fácil e o feio difícil. Ora isso
dificilmente pode existir.” Por outras
palavras, o belo será para nós sempre difícil. No entanto, é fácil, muito fácil, para a Natureza.
1 comentário:
Sobre o conceito de tempo, lembro-me de Santo Agostinho que ao lhe ser perguntado o que era o tempo, respondeu (cito de memória): "Se não me perguntarem o que é o tempo, eu sei o que é o tempo; se me perguntarem o que é o tempo eu não sei o que é o tempo". Uma vez mais, o Professor Carlos Fiolhais descomplica o que é complicado, condição tão necessária aos verdadeiro pedagogos!
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